Luiza Brina desenreda faixa por faixa o disco “Tenho Saudade Mas Já Passou”

13/11/2019

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Brenda Vidal

Por: Brenda Vidal

Fotos: José de Holanda/ Reprodução

13/11/2019

Em Tenho Saudades Mas Já Passou (2019), Luiza Brina sintetiza e reflete, com refino, sobre sua trajetória musical sem bloquear espaço para a inovação. O terceiro e mais diverso disco solo da cantora, compositora e instrumentista embala nos compassos minuciosamente desenhados as inquietações e os questionamentos em composições sobre a incerteza, o amor, a resistência e espiritualidade.

Sob o fértil terreno da música popular brasileira, Luiza também apresenta seu mapa musical, cheio de linhas curvas que saem das cordas do violão e do baixo, que ela também assume nesse registro. O álbum é de muitas parcerias: direção artística de César Lacerda, produção musical de Fernando Rischbieter, além de participações de Fernanda Takai, Lay e Lio da Tuyo, Ceumar, Ronaldo Bastos, Julia Branco, Marcelo Jeneci, entre outros.

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Íntimo e convidativo, Luiza Brina está inteira e de peito aberto, e convida você para mergulhar nesse universo no faixa a faixa que segue abaixo. Ouça e leia:

1.”Como será que a música começa”
Acho que toda canção é uma espécie de pergunta que carrega em si, generosamente, as respostas necessárias a cada ouvinte. Um pouco daquilo que disse José Miguel Wisnik, em “Assum Preto”: “Quando ouvi o teu cantar/ Me lembrei nem sei do quê/ Me senti tão só/ Tão feliz tão só/ Só e junto de você”. Tenho pensado muito sobre essa força que existe na música popular, principalmente no contexto atual do Brasil. Sobre como o acesso à essas perguntas e respostas que a canção e o cantar proporcionam a cada um pode ajudar a safar das coisas ruins, a encontrar respostas, a transformar tanta coisa. Enviei essa melodia e harmonia para a Ceumar. Sou fã da Ceumar. E ela adivinhou tudo, perguntando e respondendo tudo o que eu imaginava para essa música, para a introdução desse disco. O arranjo e a instrumentação apontam de alguma maneira os caminhos do que vem a seguir. Na base, um piano virtuoso do Davi Fonseca, a bateria ultra criativa do Yuri Vellasco, eu no violão. No meio disso, vão surgindo os sintetizadores e sons manipulados pelo Fernando Rischbieter, produtor musical do disco, jogando com os mistérios escritos pela Ceumar, e apontando os ouvidos para um lugar simbólico de uma música do futuro. A faixa termina com as flautas das instrumentistas cariocas incríveis Karina Neves e Aline Gonçalves, minhas companheiras da banda BOREAL. Sempre que ouço essas flautas, nesse final, me lembro dos arranjos mais antigos dos discos do Chico Buarque, dessa vez, sugerindo um encontro com esse ponto de partida, a MPB, a nossa história.

2.”Quero Cantar” ft. Tuyo
A Julia Branco é, além dessa talentosa cantora e compositora, uma grande amiga e parceira. A gente conversa muito sobre nossas inquietudes, por sermos artistas desse tempo, jovens, mas nem tanto, cheias de anseios, inseguranças, desejos. Conversamos muito também sobre o cantar, como isso é gostoso, como é necessário, como é revolucionário soltar a voz, se colocar no mundo. Ela me enviou uma letra em inglês e eu a musiquei. Na letra inicial havia frases como: “I don’t know how to express my feelings to you”/ “I’m 31 and I still don’t know exactly what to do”/ “I can’t pay my bills on time” [ “Eu não sei como expressar meus sentimentos para você”/ “Eu tenho 31 e continuo sem saber exatamente o que fazer”/ Eu não consigo pagar minhas contas em dia”]. O César Lacerda, diretor artístico do disco, propôs que tentássemos fazer uma versão dessa canção em português para a gravarmos. Eu e a Julia traduzimos então a letra do inglês para o português e a concluímos com esse refrão, como solução: “Eu quero cantar, posso carregar a minha vida inteira aqui na minha voz”. Na gravação, contamos com a participação das meninas maravilhosas da Tuyo, a Lay Soares e a Lio Soares. Elas são impressionantes, muuuito afinadas, muito rápidas no entendimento da música. O encontro no estúdio fluiu como nunca, elas trouxeram toda uma cor para a faixa. 

3.”Queremos Saber”
Amo Gilberto Gil. Amo como ele mistura espiritualidade, política, ficção científica, amor, tudo presente numa mesma canção e em tantas canções, cada vez de uma maneira. “Queremos Saber” é uma canção que me marcou muito; a conheci em 2001, na voz da Cássia Eller. Mais tarde me viciei na versão do Gil, de 76, no disco O Viramundo. Aí conheci a versão linda do Erasmo [Carlos], no disco Banda dos Contentes também de 76. Aprendi a tocá-la e desde então ela tem sido uma espécie de canção que me acode, me dá esperança, e hoje ainda mais, nesse contexto triste em que o Brasil se encontra. Acho impressionante como essa canção do Gil, gravada e regravada em diferentes décadas ainda faz muito sentido. Espero que logo mais consigamos acessar todas essas questões que a canção aponta, e espero também que neste momento de agora, com essa regravação, ela possa nos ajudar a iluminar os desejos de um Brasil que dê certo.

4.”Acorda para ver o sol”
Parceria com Ronaldo Bastos. Talvez só essa frase já bastasse aqui. Que alegria, que honra, ter uma melodia letrada por esse cara tão importante para a nossa música popular. Desde que começamos a parceria, fico me lembrando das músicas que ele já fez. São músicas que sei cantar de cor desde muito tempo. De “quando um certo alguém desperta o sentimento é melhor não resistir e se entregar” a “para quem quer se soltar, invento o cais, invento mais que a solidão me dá”. Como se não bastasse essa honra de compôr com o Ronaldo, descubro que ele é uma pessoa doce e generosa. Fizemos então essa canção de amor, de acordo com o Ronaldo: um amor leve, um amor de bicicleta. Tudo isso começou em casa, um dia, eu assistindo a um filme do Almodóvar e tocando violão, ao mesmo tempo. Fui ficando inspirada e a melodia veio surgindo com a harmonia. Enviei pro César, que respondeu: essa letra tem que ser do Ronaldo Bastos. Eu na hora duvidei da possibilidade: como fazer isso?  Mas nessa direção artística, o César me deu um abraço gigante, generoso. Durante todo o processo do disco, ele me ajudou a confiar nos sonhos. Enviamos a música pro Ronaldo, o Chico Neves, amigo muito querido, nos ajudou com a intermediação. E deu certo, foi assim. Participação da Fernanda Takai. Sim, ainda tem essa: dueto com uma ídola. Fernanda não nasceu em Minas, mas é gigante cantora e compositora que representa a música mineira de uma geração. Imagine minha alegria ao cantar em dueto com ela! Mais um sonho realizado numa mesma canção. 

5.”Esmeralda”
Acho que é urgente, nesse momento, mais do que nunca, que a gente se atente para a preservação do Brasil das florestas e seus povos, dos sertões, das águas, do nosso meio ambiente tão rico. Essa canção é um chamado para isso, é uma viagem por esses lugares. Canto essa musica sempre desejosa de que todos possam olhar para esse Brasil com cuidado, com amor. A letra é do parceiro querido Gustavito Amaral. O Marcelo Jeneci, muito conhecido como cantor e compositor, participou da faixa trazendo seu talento como músico instrumentista, com uma sanfona deliciosa. 

6.”De Cara”
A letra é do César Lacerda, quem também fez o feat nessa faixa. Foi inspirada numa história: uma amiga entra no elevador de um prédio do Leblon, último andar. Em seguida entra uma cantora famosa. Elas descem até o térreo, naquele silêncio, a amiga bastante envergonhada. Quando a porta do elevador se abre, a cantora levanta os óculos escuros da amiga e diz: sabia que eram azuis. E sai. Por isso gosto de brincar que essa é uma canção de amor de elevador. Mas a música retrata também um amor que deu certo, uma paixão possível, gostosa, entre duas mulheres. Gosto muito da formação instrumental de câmara dessa faixa: piano, voz e violinos. Eu nunca tinha escrito arranjo para violinos. Nos meus outros dois discos, escrevi muito para sopros e para violoncelo. No curso de composição, escrevi peças eruditas para violinos. Mas foi a primeira vez que experimentei essa formação na música popular, foi um desafio que me deixou feliz.  

7.”Seu Dom”
Tenho muita dificuldade em me expressar com as palavras. A música é meu canal de expressão onde as coisas fluem melhor. Mas nessa canção me arrisquei como letrista. Inicialmente a compus evocando um alguém-amor que não deu certo. Mas tenho gostado de cantá-la imaginando que o personagem para quem canto é o bolsonaristão – o presidente e tudo o que ele representa e carrega. isso porque a música começa com “você que tem o dom de me esquecer e me fazer lembrar o seu dom nas noites frias” e conclui: “só vai restar amor em mim sem você”. Gosto muito do arranjo dessa faixa. Gosto dos espaços de silêncio claro entre as notas, gosto do acento deslocado do tempo 1 para o tempo 2, mas de uma maneira simples. Tem um piano desafinado charmoso, proposital. Para além do trio, essa faixa conta com a participação especialíssima do Jonas Hocherman nos trombones e tubas, trazendo toda uma elegância.

8.”Estrela Cega da Turquia”
Primeiro de janeiro de 2016, às 04h19 da manhã recebo um email com essa letra do Thiago Amud para uma melodia que eu havia enviado a ele. 2016 foi o ano em que viralizou uma imagem muito trágica de uma criança síria morta em uma praia da Turquia, vítima de um naufrágio de um barco de imigrantes. Essa letra traz à tona essa drama migratório que estamos vivendo no mundo há tempos. É, pra mim, a faixa mais diferente do disco, com relação à instrumentação e arranjo. Nos reunimos em uma tarde eu, o Thiago Amud, a Joana Queiroz e o César Lacerda, e concebemos juntos as linhas gravadas. Criamos esse arranjo pensando em cinema, em imagens. O barco, a clarinetista na praia ninando a criança, o mar, a areia… quero muito fazer um clipe para essa canção. Foi a primeira vez que estive em estúdio com a Joana Queiroz, fiquei impressionada, ela é uma instrumentista gigante. Admiro igualmente o Thiago. Foi muito especial pra mim ter esses dois tocando comigo nessa faixa.   

9.“Oração 11”
Comecei a fazer uma série de canções com esse título “Oração” e com essa idéia de trazer para a música, as diversas maneiras em que a espiritualidade se manifesta na vida humana, seja nas letras, seja nas influências dos ritmos. A música em contexto espiritual sempre me tocou muito, desde criança isso me impacta. Então comecei essa série em 2010. Hoje são, ao todo, 11 orações. “Oração 11” aconteceu assim: Brisa Marques me contou que estava gostando de escrever coisas relacionadas à suas experiências com a espiritualidade. Eu estava, no momento, estudando os violões do Edgardo Cardozo. Sou apaixonada pela música dele. Fiz uma melodia em cima de uma levada que criei no violão, inspirada pelos violões mágicos do Edgardo. Enviei então a melodia cantada em cima desse violão para a Brisa propondo que fizéssemos juntas então a “Oração 11”. Ela me respondeu com essa letra tão esperançosa, tão bonita. E estamos precisando disso, né? Vivendo nessa panela de pressão que está o Brasil, precisamos de força, acho que precisamos de cantar e lembrar, sempre: se é pra nascer, sobretudo aqui, vale existir!

Luiza Brina (Foto: José de Holanda)

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13/11/2019

Brenda Vidal

Brenda Vidal