Marina Sena já trocou de pele algumas vezes desde que o seu nome surgiu no cenário da música nacional, por volta de 2019, à época ao lado de A Outra Banda da Lua e do Rosa Neon. Na entrevista que segue, a artista mineira, nascida em Taiobeiras, conta que o apelido da família Sena era “Os Cascavel”, pelo tanto que os seus membros costumavam trocar de pele e de cidade.
Aos 26 anos, morando em São Paulo, ela diz que está vivendo uma vida e tanto. Nas suas palavras, não há nada a perder, o que vier é lucro — e o lucro veio. Após debutar em carreira solo com o aclamado De Primeira (2021), Marina apresenta Vício Inerente (2023), consagrando-se como uma legítima artista pop.
Atravessado pela intensidade de trabalho que tomou conta de sua rotina, o segundo disco solo dela põe o texto e o canto à serviço da dança, e apresenta uma nova pele ao seu público. O número crescente de seguidores que acompanham suas redes sociais estão testemunhando a transformação da artista. Segundo Marina, eles estão acompanhando a criação de uma diva.
Olhando pra trás, como você avalia o ciclo do De Primeira na tua vida?
Loucurada, né? Loucurada máxima. Mas assim… Eu sou uma pessoa que sempre criei minhas oportunidades. Sempre dei um jeito de que realmente acontecessem as coisas que eu queria. Tipo, de eu me jogar mesmo pras coisas com paixão, sabe? Eu sou uma pessoa apaixonada, e sinto que eu me joguei com muita paixão no De Primeira. Eu amo muito fazer isso, e eu sei fazer isso. O De Primeira me empoderou demais, me mostrou que eu não estava viajando, eu sei mesmo fazer isso. E aí, agora, no Vício Inerente, cheguei muito mais preparada.
O De Primeira foi como se fosse um intensivão de popstar, tipo: “Você quer saber o que uma popstar faz? Então toma aqui”. E eu matei no peito tudo que tinha para fazer, com a cara e com a coragem. Apresentar uma categoria do Grammy? Vou lá, vou demais. Não sabia nem o que estava fazendo, mas vou fazer do mesmo jeito. É aquele famoso “vai com medo mesmo, amiga”. Você sempre vai estar com medo, todo mundo vai ter medo o tempo inteiro, mas aí você vai lá e fala assim: “O quê? O medo vai me travar? Não!”.
A vida é uma só, não tem nada a perder. Eu não tenho nada a perder, sinceramente. Tudo que eu tenho é lucro, tudo que eu consegui na minha vida, é lucro. Eu já tô ótima, tô super realizada com a minha trajetória. Eu não tenho pressa de nada, pra mim, as coisas vão acontecendo no tempo delas e eu tô tranquila, só seguindo um fluxo. O De Primeira foi essa escola pra chegar muito mais preparada no Vício Inerente, em termos de comunicação, de performance, de postura, de alinhamento musical, estético, de tudo. Foi no De Primeira que eu pude experimentar muita coisa.
O que você sente que mudou em você de lá pra cá e o que nunca vai mudar?
Mudou o meu paladar, né? Depois que você come a melhor picanha, você nunca mais quer comer a picanha meia boca. Isso realmente muda, inclusive é uma coisa que eu tinha medo quando a minha carreira começou a dar certo. Meu pai falava assim: “Se você não tem geladeira em casa, você não pode gostar de água gelada”. Se não, você vai ter que ir lá no vizinho pedir água gelada? É melhor você beber água natural, né. E aí quando você sente um novo sabor, você fica assim: “Meu Deus, agora eu vou querer esse sabor toda hora? E se um dia eu não tiver mais?” (risos).
Realmente mudou o paladar. Paladar pra roupa, paladar pra comida, pra tudo, até pra água com gás. Hoje em dia, eu sei reconhecer uma água com gás melhor que a outra. Eu jamais teria essa questão na vida: “Ai, qual água com gás?”. Era qualquer água, de preferência que nem fosse com gás, porque eu não gostava. Agora não, já gosta de água com gás e já gosta da melhor água com gás, porque não é qualquer água com gás (risos).
Isso é louco. Eu gosto dessa experiência, é uma experiência muito massa que eu tô passando, de descobrir novos sabores, que eu não sabia nem que existiam, mas que são bons pra caralho. Meu Deus, como quem tem dinheiro tem sorte, viu? Porque é muita coisa boa que come, né?
E todo o resto, todos os acessos que vêm.
E todos os acessos. Eu tô realmente reparando tudo isso, tipo: “Caralho, olha isso aqui que eu tô acessando e que eu nem sabia que existia”. Se você não tem o dinheiro, a informação nem chega em você, só chega depois que você tem. Antropologicamente falando, eu fico meio que estudando, tipo: “Olha os acessos que quem tem esse dinheiro na conta tem…”. Quanto mais você vai ganhando dinheiro, você fala: “Gente, ainda tem mais coisas que vocês não contaram!” (risos).
É infinito.
É infinito. Mas uma coisa que eu não quero que mude nunca em mim é esse meu pé no chão, de entender o valor das coisas. Não é porque eu acessei que eu não compreendo o que eu era, o que eu acessava, e o que isso significa. Eu tenho que entender o que estar acessando essas coisas significa, e por que tem tanta gente que não acessa. Eu não quero perder essa noção.
Você tem acessado cada vez mais o cenário da música pop, mas você é uma artista que circula por várias cenas, se conecta com artistas de vários estilos, desde a Gal Costa até a Anitta. Como que você vê isso?
É porque, na realidade, eu gosto de coisa boa. Eu gosto de pessoas que fazem música, que se preocupam e que gostam daquilo e viajam. Se vejo um artista que viaja muito em música, eu sei que a gente tem algo em comum, que é o amor pela música, pela arte. Todas as pessoas que eu me relaciono são pessoas que têm muito amor pela música que fazem, de qualquer estilo musical. Eu gosto de me conectar com qualquer pessoa mesmo.
Tipo, Gal, desconheço alguma pessoa que amou mais a música do que Gal Costa. Acho que é a pessoa que mais traduziu em arte o amor que ela sentiu por aquilo que estava fazendo. É surreal. E isso me afeta, me emociona completamente, o jeito que ela amava aquilo, e que está vivo até hoje e vai ficar pra sempre. Para o resto da nossa existência, esse amor vai existir, a gente vai ouvir, vai celebrar esse amor. E a Anitta é apaixonada por música, conhece tudo, todas as músicas que toca, ela conhece. MPB, tudo, tudo, tudo. É uma pessoa que realmente pira em música, viaja em música, gosta de ouvir música boa. Ela tem esse amor pela música, e é isso que me interessa. E a pessoa ser legal, ser massa, ser sangue bom.
Mas realmente, eu vim de um ambiente mais alternativo e passei em diversos lugares. Agora vai ter o feat: eu, Simone, Mc Daniel e Péricles, que é um sertanejo. E eu amo isso, porque eu sou do interior além de tudo, e eu vivi a música sertaneja desde criança, nos forrós, sanfoneiro, não sei o quê. No interior, o sertanejo é “o” rolê. E faz todo o sentido você escutar sertanejo quando você está no interior, porque tem tudo a ver, é como se fosse o queijo e a goiabada.
Eu amo, e conheço artistas do sertanejo que são apaixonados demais pelo que fazem, que se deixar ficam o dia inteiro com o violão na mão fazendo música. Eu gosto de me relacionar com pessoas que são assim, porque eu sou assim, e aí eu vou querer falar de música o dia inteiro, tem que ter assunto.
Hoje, cada vez mais, e ainda mais no cenário pop, tem uma hiperexposição da vida do artista. Como você lida com esse processo de transformar a tua vida em um produto, que é consumido ao mesmo tempo que a tua música?
Ó, teve um momento ali no De Primeira que eu fiquei bem low profile, na real, que eu não postava nada. Porque eu estava meio introspectiva mesmo. Eu estava mal, não estava bem. Essa coisa de ter explodido o “Por Supuesto”, aí vem o hate, eu não conhecia isso. Foi estranho, fiquei: “É isso que eu quero pra minha vida mesmo?”. No primeiro ano, fiquei bem estranha, eu não me reconhecia de tanto que fiquei desconectada da Terra. Fiquei um tempo sem chão.
Depois, fui me acostumando. Você vai respirando, entendendo, colocando o pé no chão de novo, tipo: “Tá tudo bem, só vai e faz seu rolê, faz sua música, não tira o pé do acelerador”. Mantém até você internalizar e falar assim: “Beleza, vou manter o pé no acelerador e que se foda”. Você vai aprendendo. A cada degrau que você sobe, são novos aprendizados. E aí você vai aprendendo no trajeto. Essa coisa do “vai com medo mesmo”, né?
Depois de um ano, comecei a ficar melhor e aterrizar. Agora tenho mais tranquilidade para expor a minha vida. Por que não? Eu só tô vivendo, não tem por que eu não dividir com as pessoas que gostam de mim. E eu percebi que muita gente gosta, tem tanta gente que se importa mesmo comigo, e isso é doideira, é gostoso, é massa. E eu sinto essa necessidade de dividir, até porque acho que meu jeito de viver também é arte, tudo faz parte da artista que eu sou. O meu jeito de viver a vida, de encarar minhas coisas, acho que pode ser massa que as pessoas saibam, pode ser interessante mesmo.
Estar onde você está hoje, mudou a sua forma de compor?
Com certeza, eu acho que seria estranho se não mudasse. Eu acho que é como toda situação na minha vida. Tem uma coisa que meu pai já me contou, não sei se é verdade, porque cada hora ele conta uma coisa, mas ele fala que os Sena o apelido é meio que “Os Cascavel”, porque troca de pele e muda de cidade. E aí eu fico olhando pra minha trajetória, e penso que eu já troquei de pele várias vezes. Quando saí de Taiobeiras e fui para Montes Claros, e a gente fundou A Outra Banda da Lua, eu troquei de pele. Eu virei outra pessoa, adquiri uma nova persona, me empoderei de outras qualidades minhas. Quando eu saí d’A Outra Banda da Lua e fui para o Rosa Neon, troquei de pele de novo, porque é outro som, é outra pessoa.
O final d’A Outra Banda da Lua e o início do Rosa Neon foram juntos, aí quando eu ia pro Rosa Neon, eu era uma pessoa, e quando eu ia para o palco d’A Outra Banda da Lua, era outra pessoa. As roupas, o cabelo, a maquiagem, tudo mudava. Fiquei meio confusa na época. E A Outra Banda da Lua era muito visceral, né? Só quem viu, viu! Os shows d’A Outra Banda da Lua naquela época, meu Deus. Era muito sangue no olho que a gente tinha, socorro. Eu saía exausta do show, só queria uma cama, deitar e dormir, porque era um desprendimento de energia cabuloso. No Rosa Neon era mais light, até porque tinha quatro vocalistas, então a gente dividia as coisas. Era bem suave, tipo, era outra coisa, mudava tudo.
E agora você está em um outro momento totalmente diferente dos dois.
Totalmente diferente. Eu troco de pele mesmo, gente. Daqui a pouco eu tô trocando de pele de novo. Não sei nem mais que pele que eu vou arrumar, mas é isso.
E como tem sido o seu trabalho de incorporar a dança como uma segunda linguagem do seu trabalho?
Eu sempre tive uma relação forte com a dança, fiz seis anos de balé quando era criança, depois, quando fiz 18 anos, voltei a fazer balé clássico, e fiz vários workshops, de hip hop, de funk, já fui em festival de dança… Sempre tive uma relação fortíssima com a dança, só que eu nunca tinha tido a oportunidade de ter essa estrutura para dançar, de ter realmente um pensamento por trás da dança, ter um raciocínio, ter um [corpo de] balé…
E também meu jeito de me apresentar é bem específico, então precisava ter um balé que se conectasse com aquela sensação, que é muito específica minha. É um jeito de agir muito específico meu, então precisava que esse balé se conectasse com esse jeito de agir meu. E aí foi um estudo que a gente fez com a Fernanda Fiuza, que é minha diretora coreográfica. No processo do Vício Inerente, foi mais legal ainda, porque foram vários coreógrafos e ela fazendo a direção coreográfica. E eu percebi um universo de linguagens corporais, que a gente aderiu ao palco.
Sinceramente, eu fiquei emocionada, fiquei encantada. E como no De Primeira, eu já estava com balé, eu comecei a ter uma relação muito mais forte com a dança. Porque aí minhas amigas todas são dançarinas, basicamente é isso. A gente anda junto, né? Tipo assim. E aí eu comecei a conviver muito com esse universo da dança mesmo e comecei a querer fazer músicas que eu pudesse dançar, que tivesse a ver com o que eu quero dançar. Isso foi uma coisa que mudou bastante o meu jeito de compor. Antes eu compunha muito a ver com o que eu queria falar, com o que eu queria cantar, mas agora não. Agora, também é o que eu quero dançar.
E como foi o processo do Vício Inerente? Quando vocês começaram a compor e gravar de fato?
Então, a gente começou a compor no processo do De Primeira, a gente foi compondo no decorrer dessa história. Eu e o Iuri [Rio Branco, produtor de De Primeira e Vício Inerente], a gente estava morando junto na época, e aí a gente ficava o dia inteiro, quando tinha tempo, fazendo música. Na madrugada, bêbados, era meio jogado mesmo, que, pra mim, é o jeito que funciona. Eu gosto de fazer música assim, do nada. Se me deixar uma semana em um lugar pra compor, eu não componho. Agora, se me der 15 minutos para compor, eu componho.
Não teve um momento em que vocês pararam e focaram só no disco?
Não, fomos fazendo e fazendo.
E como foi a gravação?
A gente gravou aqui em casa mesmo! A gente tinha um estudiozinho, gravou tudo aqui, fez tudo em casa. E aí depois o Iuri só foi lá para Los Angeles mixar. Foi bem caseiro mesmo. A gente comprava uma cerveja, ficava ali.
E sobre a sua escrita, o quanto de ficção você traz pra suas letras e o quanto é real?
Nada é ficção (risos). É tudo verdade. Só que, óbvio, quando você vai fazer poesia, é tipo marketing, você exagera, você traz metáforas. Acho que a riqueza máxima da escrita tem a ver com o quão você é capaz de fazer metáforas. Eu sei que a pessoa é malandra quando faz uma metáfora foda. Aí você pega uma situação que você pode ter vivido tempos atrás. Não necessariamente eu estou vivendo agora e vou escrever agora, pode ser que eu só consiga raciocinar agora sobre aquilo que eu vivi lá atrás, e só consigo escrever sobre isso agora. E aí é o rolê das metáforas, mas é tudo verdade.
A capa do disco é você na cidade, nos prédios, essa dimensão super urbana, mas tem também o objeto da concha ali, representando o lado mais orgânico. Como você nutre esse lado morando em São Paulo? E como esses sentimentos vão pra sua música?
Olha, eu não sei, mas dá certo (risos). Tem vários momentos que fico doidinha, fico estranha, fico mais desconectada, acho que todo mundo que mora aqui em São Paulo também passa por isso. Você fica meio sufocado, né? Você não sabe mais aonde você estava indo, mas uma hora volta a noção.
Eu procuro estar sempre rodeada de pessoas que seriam minhas amigas independente de eu ser Marina Sena. Eu gosto de ter essas pessoas perto de mim, muito, que já eram minhas amigas antes de eu ser a Marina Sena, que me lembram que eu sou Marina de Oliveira, que eu sou filha de Bete, filha de Zezão, meu pai tá lá criando galinha, minha mãe, [trabalhando no comércio de] lingerie, aquela coisa. Lembrar da vida real.
É muito fácil se esquecer.
Demais, gente. Distração, coisa pra te levar, tem demais.
E como você está sentindo a recepção do disco?
Nossa, incrível. Percebi que o meu público aderiu completamente, compreendeu o que eu tô vivendo, mesmo quem tem o De Primeira como favorito. As pessoas estão junto comigo na engrenagem, estão compreendendo que o artista não pode ser cover de si mesmo. Ou pode, se ele quiser, mas não é o meu caso, eu não vou ser. Mas eu estou trazendo o meu universo, o que eu tô vivendo na minha vida pessoal, pro palco, porque tem tudo a ver.
O que eu vivi no De Primeira, que era aquela coisa meio debutante, uma menina deixando de ser menina e virando mulher. Eu era uma pessoa extremamente crua, eu não passava nem um batom na boca, tipo assim, eu era crua. E aí no De Primeira eu aprendi a ser uma diva, que se monta, se maquia, foi ali que eu aprendi. E as pessoas acompanharam essa minha evolução. E aí eu cheguei no Vício Inerente, tipo assim: “Tô rica, tô famosa”. E aí é uma outra estética, e as pessoas vendo isso acontecer. Eu acho que é interessante essa narrativa.
E como você se imagina a longo prazo?
Vou te falar, acho que eu me imagino trabalhando tanto que já começa a me dar uma preguicinha (risos). Porque eu trabalho muito, 24 horas mesmo, trabalho o dia inteiro. Eu amo, vou sem dó nem piedade. Mas assim, pô, uma prainha… Pensa um sol, água de coco… Sabe? Eu sempre fico dividida, entre fazer nada… ou fazer tudo! Mas me imagino trabalhando muito, continuando esse rolê mesmo, imagino uma continuidade disso, de narrativa de crescimento. Tipo assim, a criação de uma diva mesmo, sabe? A criação de uma diva pop.
Porque acho que é esse o meu processo, e as pessoas estão assistindo. Eu acho que eu vou continuar exatamente nesse processo de como se forja a si mesma. Porque é eu mesma, não tem ninguém me forjando, não tem ninguém falando: “Ah, você tem que fazer isso e aquilo”. É eu mesma tomando consciência e criando as minhas oportunidades.
E em termos de música, você se imagina indo pra outros lugares?
Com certeza, eu sou doida, qualquer hora eu faço um negócio aí que vocês não vão nem imaginar. Faço um disco de jazz. Eu amo jazz, né? Meu sonho.
Um disco de reggae.
Um disco de reggae, enfim, vai endoidando aí, mas eu sou pop mesmo, porque eu não consigo fazer um disco de reggae. Eu consigo trazer o reggae na minha música, mas eu não consigo ir lá e fazer um disco “de” reggae, sabe? Eu acho que isso é uma característica da artista pop mesmo, de trazer influência de qualquer sonoridade e fazer isso de um jeito específico do pop.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição 139 da revista NOIZE, lançada com o vinil de “Vício Inerente”, de Marina Sena, em 2023.
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