Resenha | A vanguarda incessante do Metá Metá

25/07/2016

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Nicolas Henriques

Por: Nicolas Henriques

Fotos: Divulgação

25/07/2016

Estava uma noite fria demais a da última sexta-feira, dia 22, quando rumávamos ao Sesc Belenzinho para acompanhar o show de lançamento do terceiro álbum do Metá Metá, M M 3, lançado no final de maio. O ar cortante entrava seco nas narinas e camadas de agasalhos não pareciam suficiente para atravessar o caminho do metrô até o local do show. Assim que chegamos, a boa precaução fez entrarmos direto no espaço do show, mais quente, porém ainda vazio. Com o passar do tempo, o calor ali instaurado era também formado pelas pessoas (e pelo vinho, daqueles de caixa que parecem que vão continuar com você nos dias seguintes, mas, olha, nem dor de cabeça dá, está aprovadíssimo o vinho do Sesc), que se aglutinavam frente ao palco, todos levemente ansiosos para acompanhar o show do trio Juçara Marçal, Thiago França e Kiko Dinucci, que, desta vez, eram acompanhados pelo baixo de Marcelo Cabral e a bateria de Sérgio Machado.

O Sesc é conhecido pela sua pontualidade. Normalmente um show lá não atrasa mais que dez, quinze minutos, salvo raras exceções. Nessa sexta, a pontualidade foi inglesa: eram exatas nove e meia da noite e a banda inteira já estava posicionada. Todos parados, em um silêncio sepulcral, quase imóveis, não fosse Thiago levar, com certa calma, o sax à boca. Parece que tal gesto, de apenas segundos, quebram a noção de tempo, enrola-se por horas, tamanha a suspensão absoluta da inércia e calmaria que se dá no primeiro sopro caótico, inaugurando ali o que seria um preparativo para alguma guerra de Ogum. A guitarra de Kiko açoitou o ar logo em seguida, enquanto baixo e bateria trabalharam como hemácias em nosso corpo. Faltava apenas ela, Juçara, toda de preto com colares de contas marrons, começar seu toque cristalino. “Mano Légua” abre o show. Uma porrada.

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Não tive nenhum outro raciocício maior do que essa constatação simples, que não busca diminuir o Metá Metá, mas mostrar como o som deles é, de fato, revolucionário: se existisse qualquer filosofia que explicasse o que é o rock e para onde ele iria num futuro após seu nascimento, provavelmente os teóricos apontariam para algo que chega perto, mas ainda sem sucesso, para o que o Metá Metá faz. É pesado, visceral. Subversivo, contracultural, revolucionário. Tem um quê de futuro, uma vanguarda incessante, mas com extremo respeito e homenagem a história. Mas a história que não se conta. Se o rock como tentam nos mostrar está cada vez mais morto, podemos dizer que ele não é mais essa coisa que saiu da garagem. Talvez ele seja hoje a resposta de um grito gutural da África. Talvez seja outra coisa. Mas, se alguém consegue chegar perto de uma materialização do rock hoje, acredito que esse alguém seja o trio do Metá Metá.

Quando “Mano Légua” acabou, Thiago França começou a solar a segunda música sem dar um segundo de descanso. A bateria lembrava tambores de antepassados. Clima abaixa, levemente soturno. A voz de Juçara ressoou pura tal qual água de nascente na música mais calma do álbum novo, “Três Amigos”. Enquanto sua voz fluía, Thiago e Kiko são as pedras que buscam quebrar toda sua resiliência e curso. A música acabou, assim como sua quase paz.

O saxonofe transformou-se num rompante de som e fúria, anunciando “Angoulême”. O bridge dessa música brinca com um puro estado de barulho e ruídos, falhas de conexão em uma era tida como hiperconectada. No show esse bridge se construiu como o estado bruto da quebra de contato entre nós. Se antes poderiam nos dizer que vivemos uma subtração do real diante da frivolidade do virtual, no palco, ali, não havia dúvidas de que todos nós vivemos diante de uma desconexão completa com a existência. A banda trouxe o aviso: Tem comida mas não come / Tem morada mas sem chave pra entrar.

Seguindo a própria ordem do álbum, a próxima música era “Imagem do Amor”. Entre palavras que fere desleais e impele imortais, fiquei com a sensação de que estava vendo o Metá Metá completar um ciclo. Um ciclo do caos, da quebra e desconstrução de bases. De releituras que, mais do que simples traduções literais, são transcriações. Do quasi-samba poderoso do primeiro álbum ao rock do terceiro, passando pelo tom afrojazzístico do segundo vivemos todos sons de nossos verdadeiros ancestrais. Sons dos negros, com letras sobre as religiões afro-brasileiras, com personagens que tendemos a marginalizar, símbolos de uma sociedade que, por tanto tempo, pregou (e ainda prega) serem sinais de azar e malefícios. É uma cavucada na ferida de nossos preconceitos; olhar de volta para o espelho e só agora entendê-lo quebrado há séculos. É quase o ciclo de um resgate histórico que busca encontrar sua completude. Posso de novo estar redondamente errado, mas, durante a minha pira, senti que o Metá Metá estava ali nos mostrando que sua trilogia é sobre a nossa construção como Brasil e brasileiros; e de como nossa desconstrução identitária deve ser revista: devemos resgatar a riqueza interminável de nossas origens africanas e indígenas. Começou, sob luzes vermelhas, “Angolana”.

Ao fim de “Angolana” revisitamos os álbuns anteriores da banda para entendermos o lastro que ela vem construindo. A melhor maneira de manter a força taurina e o soco continuar com luva de chumbo, o dedilhar da guitarra de Kiko denuncia “Oyá”. Com ela sinto que brasilidade é um fígado sendo mostrado a nós entre dedos ensanguentados. Mostram-nos para todos esse órgão e mastigam. Com força. Falam que é assim o som de hoje se nós não tivéssemos destruído tanto a história. Se não tivéssemos tanto apego pelo esquecimento dos oprimidos. A força da música era transe para todos na plateia, que constroem suas danças com suas próprias histórias: pessoas pulam num axé, se remelexem num jazz, sacolejam as cabeças como headbangers num show do Slayer. Praticamente todos movimentos são permitidos quando a desconstrução se mostra. Ao mesmo tempo que era força de vulcão que ouvíamos sair da boca de Juçara, estava diante do show mais pesado que fui no ano.

Após a sequência tonitruante que mal conseguimos respirar, a banda se voltou para plateia. Kiko Dinucci seguiu apresentando o merchandising da banda, como o excelente chaveiro para o trabalhador, que nada mais é que aquelas correntes de crachá de firma. Não sei, mas acho que eles podem ser ótimos para possibilidades de match na reserva canalha da mesa no quilão. Quando o momento #ad termina, pequeno respiro, a banda voltou sua concentração para cantar “Cobra Rasteira”, com a suave voz de Kiko liderando. Como eram momentos mais calmos, pude perceber inclusive que a iluminação era simples. Também pudera: diante de tamanha complexidade no som, nenhuma pirotecnia faria frente. Na verdade, eram desnecessárias. Que fiquem para o Coldplay. (Nada contra, tenho até amigos que gostam da banda. Não sei como, mas existem essas pessoas.)

Uma luz roxa desce iluminando Juçara, que cantou a suavidade de “Ossanyn” numa voz diáfana que se foi longe quase como canto de sereia a encantar marinheiros terrestres. Logo em seguida, para quebrar a placidez, a banda começou “Toque Certeiro”, seguida de um batuque pesado, mais acelerado que no álbum, convidando às palmas todos ali presente. Thiago solou sob uma luz azul, enquanto, na plateia, guardas do Sesc se sentindo pertencentes a nossa ostensiva Polícia Militar agressivamente proíbiam pessoas de fazerem suas próprias cabeças.

A banda começou “Obá Kossô”, a última do álbum, seguindo rigidamente a ordem, quebrada apenas pelo início com “Mano Légua”. Devo dizer que durante essa música fiquei reparando na monstruosidade que era ver Sérgio Machado tocar a bateria. Provavelmente Terence Fletcher, o professor de Whiplash, choraria e aplaudiria ao ver uma cena dessas. Enquanto a banda inteira solava e Juçara ditava o ritmo com maestria, olhávamos-nos embasbacados, como se estivéssemos admirando uma maravilha do mundo, uma obra de arte. Não entendemos Metá Metá na primeira ouvida, existe um ruído, certa entropia que nos convida a refletir e pensar em como entrar dentro daquilo. Quando enfim conseguimos, estamos em Angkor Wat. Em Gizé. Em uma transamazônica construída. Na Ilha de Páscoa.

Começa “Obá Iná”. Abram caminho para o rei. Que força é essa música. “Não há justiça sem sofrer” é das frases mais bonitas que podemos ouvir. É uma aula que nos convida a fugir da dialética entre opressor e oprimido. De criarmos um novo mundo, de ressurgirmos. Da base tomar seu poder e criar algo que fuja do que o topo da pirâmide hoje tem para se sustentar. É um chamado. Dos mais belos que temos. Não nos curvemos.

A banda sai, mas nem dá tempo de sair direito, pois a plateia já clama com força pela sua volta. Com uma jam session e mais um solo de bateria assustador, a banda encanta com “Rainha das Cabeças”. Música que convida a pequenas transes para acompanhar a voz de Juçara. Quando a música termina, entra, num contínuo sem respiração, “São Jorge”, sinal de esperança, como um pedido para termos temperança, para entendermos que o momento é de bala que vem, de porrada que aparece por todos os lados, mas que, como a música quer nos acalmar e nos lembrar, com sorriso derrubaremos tropas inteiras e que, mesmo sentindo o golpe do destino, não caíremos. Vamos continuar guerreando no lombo de nossos cavalos.

Ao fim do show, o arrebatamento que estava consolidado e deixado-nos no mais puro torpor é prontamente cingido pelo frio inclemente da noite e da volta ao metrô. Mas a certeza de que acompanhar o show desse novo álbum do Metá Metá não só é uma obrigatoriedade para todos, como também será a forma de você chegar a última das minhas reflexões e, talvez, concordar comigo: com o caos e a desconstrução propostos por Juçara, Kiko, Thiago, Marcelo e Sérgio, temos, no Metá Metá, hoje a banda mais relevante do país.

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25/07/2016

Sou pesquisador e escrevo resenhas de shows pagando de crítico musical porque gosto muito de música e minha verdadeira intenção era ser multi-instrumentista ou vocalista de alguma banda. O problema é que falta habilidade para tocar até campainhas mais complexas e meu alcance vocálico lembra uma taquara rachada.
Nicolas Henriques

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