Micha narra faixa a faixa sua estreia solo: “Reparo”

28/05/2021

Powered by WP Bannerize

Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Leo Eloy | Estúdio Garagem

28/05/2021

Na verdade, esta não é exatamente uma estreia. Natural de Guarulhos(SP), Micha vem atuando desde 2006 como músico, compositor, produtor, diretor musical, documentarista, educador e antropólogo. Destacando os trabalhos ao lado da banda NÃ, Samba barbarismo e do rapper Acauã, já são 13 álbuns feitos. Mas seu lançamento mais recente, Reparo, lançado há uma semana pelo selo El Rocha Records, mostra uma nova face do artista que, pela primeira vez, encabeça um álbum solo.

Pensando bem, a palavra “solo” talvez também não dê conta de descrever com precisão o projeto. Contando com a produção musical de Fernando Sanches, Reparo reúne um time extenso de instrumentistas: Marco Nalesso (guitarra, viola e synth), Luis Felipe Lucena (baixo elétrico, violão e voz), Thiago Babalu (bateria), Renato Ribeiro (guitarra e xilofone), Rodrigo Ribeiro (trompete), Rafael Cirilos (teclado e synth), Fernanda Broggi (voz), Julio Dreads (voz e teclado) e Thiago Pereira (baixo acústico).

*

“Eu sou pela dialética, pelo ambíguo, pelo contraditório”, diz Micha, e de fato: o que se ouve no álbum é uma conversa intensa entre ideias e sonoridades em constante provocação. Por vezes, soa épico e documental (“Deus Nos Proteja Das Pessoas De Bem”), noutras é singelo e doce (“Alastrada”). Há tanto a busca por uma forma possível de música romântica quanto a intenção de cantar os tempos de hoje.

Cíclico, sutil, Reparo foi tecido na justaposição, trabalhando com a opacidade, a conexão e a ruptura. Há nele de math rock a reggae, de Hurtmold a Tonico e Tinoco. É o que Micha nos conta abaixo, comentando as nove faixas do disco. Confira:

Reparo (2021) – Faixa a Faixa

1 . “Arremessar o Riso

Queria fazer um refrão popular, pensado pra minha mãe cantar quando ela acordava bem cedo pra fazer nosso café da manhã, com o rádio ligado, bem alto na cozinha, enchendo a casa de vida. Achamos tão bonito que encerramos o texto só com o refrão mesmo. E colocamos uns solos cantando a melodia no meio. Um refrão para ser cantado em dupla, como as duplas que meu pai tanto amava – Milionário e José Rico, Tonico e Tinoco. Por isso cantamos sobre a saudade. Já a segunda parte é pira nossa. Aumenta o volume nessa hora. E é uma tese sobre o desejo. Saudade e desejo, pra começar o disco.

2 . “Aquela Velha Calça”

Aqui é onde a gente traduz, da melhor maneira, nossa vontade de conciliar empatia com estranhamento, como Brecht gostava. Math rock brasileiro, discípulos do Hurtmold que somos. Contudo, mais próximos dos primeiros discos do Cidadão Instigado, buscando construir uma musica romântica possível através de uma linguagem de criação particular. O tema é uma declaração de amor, só que pra um amigo, ou amiga. Amor platônico, amor pela amizade, libido no convívio, no companheirismo. E é um amor tabagista, música pra comercial da Philip Morris, quando podia. Porque eu sempre quis fumar, ser fumante, acho lindo quem fuma, acho elegante, acho cinema, literatura, acho tudo que eu não sou. Por isso nunca consegui fumar.

3 . “Deus Nos Proteja Das Pessoas De Bem

Nosso som épico, pique Freddie Mercury, como disse Dante Rui. ‘Todo mundo é pessoa’, é um refrãozinho antigo que eu tinha guardado. Aqui cantamos em forma de mantra, circular e infinito. Na segunda parte, cantamos o título da música, arranjo em três vozes, delicioso, macumbeiro. O país se acabando sob o comando das pessoas de bem, deus nos proteja. Na terceira parte, dou meu texto síntese sobre o Brasil, no future for us, mas vibrando na vontade que não se estanca. Aqui a canção foge pra longe, escapa, se esquiva. Por fim, a quarta parte, fruto de um estilhaço, ruptura, que anuncia calmaria, acalanto. Queria cantar igual ao Raul Seixas, porque acho ele um cantor foda. Eu tenho medo peguei da sua música “Para Nóia”.

4 . “Coco de Josefina”

Minha parceria com Luis Felipe Lucena. Mandei o texto pra ele, já com essa melodia. Ele recortou algumas palavras, inventou uma melodia e colocou um violão em cima. Maravilhoso o resultado. Aqui, apresentamos uma teoria sobre relação para além da ideia de composição. Canção feita a partir de justaposição, opacidade, conexão e ruptura. Luizão, como gosto de chamá-lo, é protagonista no disco. A presença de suas linhas de baixo são marcantes. Jogou com a camisa 10, acertou, errou passes, caminha em espiral, ginga como se não fosse, mas sempre mira no alvo.

5 . “No Fundo dos Seus Olhos”

Minha música favorita do disco. Solar, aventureira, feita pro Bacurau II, avisem o Kleber Mendonça, por favor. Minha melhor performance como cantor também – nesse dia, o Fernando tava dando um workshop de gravação. Eu tinha público, precisava impressionar. A conexão entre as duas partes é leve, como se natural, favorecendo pra quem dá o texto. Aliás, de uma paixão quente, pra você cantar pra quem você gosta. Aqui a palavra queima. Saudade e desejo retornam, no meio do disco, já carregado com outros sentidos.

6 . “Reparo

O canto de uma mulher, que abre a faixa, tirei de um filme da Dácia Ibiapina, Palestina do norte: o Araguaia passa por aqui, um curta feito com moradoras do município de Palestina/PA que testemunharam a chacina contra insurgente feita pelo estado nos anos 70, conhecida como Guerrilha do Araguaia. Uma voz linda, melodia triste, dicção potente, convincente. Queria juntar isso a um canto de rua, pra ser cantado em coro, com vontade, pra ser compartilhado sem preocupação com afinação, ou pra ser assobiado na esquina, ou mesmo mantra pra lavar a louça. Acredito que o reparo é isso, essa junção, encruzilhada.

7 . “Alastrada”

Texto meu, musicado, poema de amor, poema encantado, fuga do tédio, em direção ao mormaço, à paixão alastrada. Tirei a base de um vinil do Quinteto Violado, quando termina o lado e a agulha fica rodando na sobra, sabe? O som é cíclico, com uma síncope sutil e complicada. Nalesso criou a viola tentando entender isso e ficou incrível. Tema de filme, anota aí. Parece que o Leo já tem o roteiro. O texto é recheado de citações, feito de bricolagem, recortes, abreviações, pensamentos e parcerias. Tem escritos da Maria Carolina para o instagram, Pierre Clastres, Manoel de Barros. Porque o amor é como o mar aberto, sempre se pode ir bem mais além.

8 . “Até a Voz Falhar”

Guriatã é uma palavra sonora e poética, invenção do nosso português afropindorâmico. Aprendi porque é o título do filme de Renata Amaral, sobre Humberto do Maracanã, compositor e cantador genial que habitou um Brasil que vibra. Depois descobri com Maria Bethânia que é o nome de um pássaro que canta até morrer. Em algumas regiões do nordeste, é mesmo um eufemismo para a morte: “e tal pessoa virou guriatã…”. A Fernanda Broggi canta sozinha, canta com clareza e exatidão, canta com comprometimento, com alegria e delicadeza. A primeira parte dobro o coro com ela, em busca de um leleleiê épico, feito para os Beatles cantarem. Na segunda parte, Nalesso botou uma guitarra Lulu Santos, como ele mesmo disse. Acreditamos nele, botamos o texto entre os refrões e fomos felizes.

9 . “Vento Verbo”

Primeira música que a gente gravou, no início do ano de 2020. A gente trabalhou bastante as passagens, pra não deixá-las óbvias, pra conectar as partes como reparo. O arranjo de vozes ficou lindo. O perpétuo desequilíbrio entre beleza e barbárie se mostra nessa faixa. Foi ótimo fechar o disco com essa música, porque ela sintetiza muito do que eu penso sobre a arte e sobre a vida. E fecho o disco com essa ideia da fresta na porta do quarto do futuro. Cheguei a cogitar que esse disco seria sobre o futuro, mas não na chave do futuro otimista burguês. Porque eu sou pela dialética, pelo ambíguo, pelo contraditório. Recolher dos escombros o rosto nu por trás da máscara exuberante. O futuro é uma fresta.

Tags:, , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,

28/05/2021

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

Ariel Fagundes