Três dias de som e liberdade: Morrostock completa 10 anos com edição impecável

05/12/2016

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Leonardo Baldessarelli

Por: Leonardo Baldessarelli

Fotos: Ariel Fagundes

05/12/2016

Faltando poucas horas para o festival Morrostock 2016 acabar, era impossível não notar o brilho nos olhos do idealizador e principal responsável pelo evento, Paulo Zé Barcellos. Conversando com ele, ao lado do camarim onde os caras do Boogarins se preparavam para seu show, dava para entender por que os sorrisos e o choro contido de alegria tomaram conta de toda a equipe de organização naquela hora. “Alguns problemas com as últimas duas edições nos fizeram manter o pé no chão e planejar melhor, nos preocupando com várias coisas que às vezes ignoramos. E acho que essa foi uma das maiores razões desse sucesso”, conta. E quando fala em sucesso, Zé não exagera. Mais de duas mil pessoas compareceram ao Balneário Ouro Verde, no interior de Santa Maria (RS), ocupando a maior parte do espaço periférico do lugar com barracas – e o local tinha a estrutura ideal para receber toda essa gente. Inúmeros banheiros, lixeiras e sinalização bem definida – bastava meia hora circulando por lá para entender todo o espaço e evitar se perder. Não faltou cerveja, não faltou comida, não faltou o que fazer (houveram desde oficinas até passeios guiados pela região e um rio lindo que contornava todo o local) e, óbvio, não faltou boa música. São coisas que parecem básicas para qualquer evento desse porte, mas que são de causar inveja até para grandes festivais nos dias de hoje.

O Morrostock começou de forma independente lá em 2007, sempre crescendo e apostando em nomes novos do som nacional. Segundo Paulo Zé, foi uma série de coincidências positivas que permitiram a exata 10ª edição ser a maior de todas – desde a disponibilidade de datas para diversas grandes bandas do independente até o prêmio da Mostra Funarte de Festivais, conquistado pelo Morro no ano passado, que deu fôlego financeiro ao festival e possibilitou que os ingressos seguissem acessíveis (no mesmo nível de preço que um show solo dos principais headliners em Porto Alegre, por exemplo) e a ocupação de um espaço maior e melhor. A ideia central do festival, porém, não mudou: conectar ao público bandas que estão começando e alguns nomes consagrados, pensando na construção da cultura, da consciência política e da liberdade. Todos os artistas convidados na edição de 2016 eram independentes: “Gente pró-ativa, nomes que trabalham muito para o crescimento da cena como um todo; bandas que podem usar o festival como plataforma, afinal, é assim que ele deve ser ‘usado’ por elas”, como comenta Zé. Além disso, fechamentos conceituais fortes definiram cada dia do evento: a sexta ficou para o rock do Rio Grande do Sul, desde o clássico até o mais atual; o sábado foi dos novos sons brasileiros e latinos, com artistas admirados por público e crítica; e o domingo representou o mergulho completo na psicodelia. Só de ver o line up, já dava pra perceber como o evento seria significativo quanto à representatividade da cena atual; vivendo ele e podendo ver gente criativa de tudo que é canto do mundo se juntar no interior do Rio Grande do Sul, então, deu para sentir a história acontecendo.

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As apresentações foram divididas em dois palcos: o Pachamama, principal, que ficou no campo de futebol do Balenário e permitia um público enorme; e o Pacal, mais ao fundo do lugar, do lado do restaurante e dos principais caixas de fichas para cerveja e comida em geral. A posição do palco alternativo, aliás, permitiu que muitas pessoas entrassem em contato com bandas menores mesmo que de relance, na passagem pela parte dos fundos. E muita gente acabava parando para conferir o som, tanto que o lugar ficou cheio quase sempre.

A programação do Morrostock começou na sexta, basicamente o “dia do rock gaúcho”. Bandas clássicas como Bixo da Seda, Os Replicantes e Identidade botaram o público para cantar, e ainda teve o grande Julio Reny com um show carregado pela canção gaúcha das décadas de 80 e 90. Dois shows, porém, se destacaram: o trio instrumental Pata de Elefante, reunido depois de três anos de hiato e levando um som redondo pro palco Pachamama – num momento especialmente nostálgico para quem viveu a cena porto-alegrense na virada da década; e o Cartolas, com um show cheio de hits (pelo menos, entre os gaúchos) e mostrando o novo e extremamente performático vocalista Deluce – deu pra cansar de ouvir pessoas o comparando com Mick Jagger, mas num sentido não tão positivo.

Dia mais diversificado e explodindo de bandas, o sábado teve 20 shows entre os dois palcos. No principal, o começo veio no meio da tarde com a performance arrasadora do Bloco da Laje. O conjunto carnavalesco de Porto Alegre apresentou faixas próprias e transformou o lugar numa celebração completa à liberdade. Com uma sensualidade irônica e pesada, não faltou nudez e o tom de protesto pela diversão que sempre caracterizou os caras. E, pra quem tava acostumado a vê-los na rua, a qualidade do som impressionou. Os arranjos ganharam mais destaque com todo o sistema disponível, mostrando que o trabalho dos instrumentistas não deve nada a bandas de dentro da cena nacional. Além disso, logo na terceira música a apresentação se estendeu para o meio da plateia, com muitos integrantes se misturando ao público e convidando todos a dançarem e interagirem. “Pregadão”, especialmente, foi um ponto altíssimo: com o Jesus se despindo aos poucos e se jogando na plateia. Uma performance marcante não só para o festival, como também para o Bloco, que se afirma cada vez mais como uma das principais entidades da música porto-alegrense atual.

Na sequência, três shows vindos da cena paranaense: a cantora Raíssa Fayet, numa apresentação levada muito pelas possibilidades da voz e pela canção; a banda Orquestra Friorenta, num show descontraído, brincando com a sexualidade e usando figurino um tanto bizarro (e difícil de explicar – dá uma olhada aí na galeria de fotos); e a Trombone de Frutas, jazzy e com uma pegada instrumental mais pesada, misturando ritmos brasileiros estilos sofisticados do rock gringo – você já deve ter ouvido de várias bandas com essa mesma descrição, mas a Trombone impressionou bastante pelas composições, arranjos e a performance apaixonada. Depois disso, a Bandinha Di Dá Dó, que conta com o próprio Paulo Zé como baterista, subiu ao palco para mostrar seu rock circense que já conquistou muitos fãs por aí num show perfeito para quem queria pular e dançar sem parar. Com um som divertido, interagindo o tempo inteiro com o público e várias voltas ao palco, eles abriram espaço para uma série de shows muito esperados, começando com Ava Rocha. E, como quem já conhece os shows da cantora deve imaginar, a cantora não decepcionou.

Ava é conhecida por sua entrega completa ao som e à plateia, e ainda ganha o acompanhamento de uma banda sensacional, que leva sua música para lugares distantes e traz de volta em poucos minutos, sempre por meio de improvisos. Apoiada nisso e em suas constantes danças e movimentos, sempre em sintonia com a música, toda a canção da artista recebe um teor ainda mais hipnótico no show, e no Morrostock não foi nada diferente. Desde a abertura com “Boca do Céu” até a forte “Auto das Bacantes”, as emocionantes “Hermética” e “Mar ao Fundo”, o hit “Transeunte Coração” e o bis com “Você Não Vai Passar”, foi uma apresentação para assistir impressionado, deixando-se levar pelo poder e pela pegada de Ava Rocha.

Depois do ritual de Ava, foi a vez de se preparar para a apresentação mais esperada da noite: Liniker e os Caramelows.

Se em muitos outros shows o público e suas danças, sua vibe sempre positiva e sua dedicação ao som chamavam tanta atenção quanto a banda que estava no palco, esse não foi o caso da cantora e sua banda. A introdução linda de “Remonta”, com a voz de Liniker ressoando sozinha pelo ar, já dava uma boa noção do espetáculo que viria pela frente: funk, soul, rock e a representatividade imensa de tudo o que Liniker canta e performa explodindo do palco para todo o Balneário. Foi a apresentação com o maior público reunido, que se apertava o mais próximo possível do palco, dando a impressão de que não houvesse quem não estivesse de olho no que a artista fazia. E, ao mesmo tempo em que o som funky fazia a galera inteira dançar, o estilo agitado de Liniker fazia com que a atenção dificilmente desviasse de sua figura. Outro destaque do show foi a banda, entregando um som lindo, numa mix extremamente alta, quase se igualando à voz da cantora. Quanto às faixas, o disco Remonta (2016) foi apresentado quase na íntegra, ressaltando, obviamente, o hit “Zero”, que fez todo mundo cantar aos plenos pulmões.

Depois do show absurdo de Liniker, a Apanhador Só teve o trabalho de manter o ritmo do público, mas começou com um dos poucos momentos deprê de todo o festival: a banda precisou passar o som em cima do palco porque simplesmente não houve tempo para isso antes, num processo que demorou cerca de meia hora. Também foi um dos poucos shows que tiveram um som mais complicado, com alguns problemas de mixagem que foram se resolvendo ao passar das músicas – mas eram coisas que fugiam do controle dos integrantes. E o que mais impressionou foi como a força das canções do grupo e a sintonia com o público tornaram muito fácil superar tudo isso. Numa mistura equilibrada de faixas do disco de estreia e de Antes Que Tu Conte Outra (2013), não faltaram pequenos hinos que boa parte da plateia sabia cantar de cor: de “Um Rei e o Zé” a “Cartão Postal”, passando por “Mordido”, “Bem-Me-Leve”, “Vitta, Ian, Cassales”, “Nescafé”… enfim, quase o set inteiro. E isso deixou explícito mais uma vez o quão longe os caras já chegaram. Foi uma apresentação extremamente simbólica, principalmente como o fim de ciclo que ela representou.

Já bem longe na madrugada de sábado para domingo, a debandada foi inevitável após o show da Apanhador, mas o bom público que ficou para ver as três atrações internacionais que fechavam o dia não teve do que reclamar. Os uruguaios da Cuatro Pesos de Propina mostraram seu estilo latino, misturando punk, ska e reggae, que também já tem muitos fãs pela região e fez a galera se mexer. O Proyecto Gomez Casa foi uma grande surpresa, apresentando uma formação de trio totalmente mergulhada em música eletrônica e techno, com dois sintetizadores, baixo, bateria e controladores MIDI, basicamente. Os violões presentes em quase tudo o que os caras já fizeram em estúdio só apareceram em playback, quando não foram totalmente dispensados do arranjo. Liderada por Rodrigo Gómez, a banda apresentou na íntegra os EPs de 2016 Construcción 1 e 2, além de alguns sons antigos que se encaixam melhor no clima sintético. Por fim, a noite terminou quando já era quase dia com o som do Sonido Satanas – vestidos completamente de vermelho e com a presença de um “diabo” no palco, o trio mostrou sua cumbia explosiva, totalmente mesclada com música eletrônica e muito contagiante. Um show que definitivamente poderia ter sido um pouco mais cedo.

Desde o meio da madrugada de sexta até as primeiras horas de sol de domingo, o sol havia dado as caras por poucos minutos no Balneário, sendo que vários momentos foram de uma chuva intensa. Junto com o último dia do evento, porém, o astro rei chegou, e foi a hora perfeita – era o dia da psicodelia, das viagens sem sair do lugar e das cores bonitas. No Palco Pacal, a Supervão abriu a tarde com uma mistura de noise, post punk, música eletrônica, funk e tudo o mais que você pode imaginar. No palco principal, os caxienses da Catavento quebraram tudo com seu rock psicodélico pesado e ruidoso, mas cheio de refrões épicos. Depois teve os catarinenses da Os Skrotes tocando um som instrumental contemplativo, jazzy e um tanto pós-rock, que manteve a galera atenta e hipnotizada; os argentinos da Inmigrantes vieram com seu indie psicodélico e pop, empolgando principalmente com o hit “Graffiti”, bastante conhecido do público gaúcho; e o fim de tarde chegou com a lenda Wander Wildner y Sus Comancheros, mesclando sons do álbum novo Wanclub (2016) com clássicos como “Bebendo Vinho”, “Eu não consigo ser alegre o tempo inteiro”, “Eu Tenho Uma Camiseta Escrita Eu Te Amo” e o cover de “Um Lugar do Caralho”.

Com o sol já escondido pelas montanhas, a expectativa começou a subir para o último show de todo o festival, e o Boogarins não demorou a aparecer no Palco Pachamama. Exatamente às 19h, a banda engatou os primeiros acordes de uma pequena introdução, que logo deu lugar à voz de Dinho e ao som de “Avalanche” – e daí pra frente foi uma hora e meia de um mergulho profundo no som hipnótico e psicodélico da banda. Como quem já foi em algum show dos caras sabe, cada música supera em muito sua duração original nos shows, sempre ganhando grandes improvisos – o baterista Ynaiã Benthroldo chegou a comentar num papo anterior à apresentação que tem shows de 50 minutos da banda em que eles tocam só 4 músicas (no caso do Morrostock, foi bem mais). A maior parte do repertório veio do álbum mais novo, Manual (2015), incluindo as explosões sonoras de “6000 dias (Ou Mantra dos 20 Anos)”, “Tempo” e “Mário de Andrade/Selvagem”. Como viagem sonora, porém, talvez nenhuma faixa tenha superado a versão estendida de “Cuerdo”, uma verdadeira aula de psicodelia e dinâmica – o quarteto brinca de um jeito absurdo com o volume dos instrumentos, deixou para Dinho o protagonismo de evocar os vocais nos momentos-chave. O mesmo Dinho que, aliás, sorria em cada improviso e praticamente agradecia ao resto da banda sempre que as faixas chegavam ao fechamento.

Uma pequena roda ~psicodélica~ se formou na frente do palco, com muitas pessoas sentindo o som da Boogarins de forma extrema e dançando com cada movimento sonoro. E, assim, lentamente, como os improvisos do Boogarins, o Morrostock foi acabando. A banda encerrou com uma “Lucifernandis” de quase 15 minutos e voltou para um (raro) bis, entregando a agitada “Erre” para enlouquecer todo mundo. Quando saíram do palco, a sensação de que algo incrível aconteceu ficou no ar, e o festival terminou com um show muito especial – chegando a soar como um grande resumo sonoro de tudo o que aconteceu nas 72 horas anteriores.

Além das atrações e da organização, o público foi outro grande destaque do Morrostock. Mais do que a simples limpeza de toda a galera (elogiada pela administração no último dia), a multidão conseguiu fazer com que o clima ficasse extremamente positivo a todo momento. Choveu, e não choveu pouco, mas o festival jamais ficou com um clima ruim por causa disso – muita gente estava pilhada o tempo inteiro.

O Morrostock 2016 foi gigante, e talvez fique marcado na história como o momento em que o evento entrou de vez para o mapa dos grandes festivais brasileiros. Para 2017, Paulo Zé ainda não consegue prever nada, mas promete algo tão grande quanto a edição nº 10 – porém, o idealizador cobra a manutenção das políticas públicas de cultura para que isso aconteça, as quais ele responsabiliza pelo crescimento não só do festival, como de toda a cena independente brasileira. “Com essas trocas de prefeituras, governos, espero que tudo siga, mesmo que um pouco diferente. O Prêmio da Funarte, por exemplo, foi essencial para o tamanho deste Morrostock, e se não tivermos algo assim no ano que vem provavelmente teremos que aumentar o preço do ingresso. Essas políticas culturais são muito importantes”, comenta. Para nós, só resta lembrar dessa edição como a maior do Morrostock até hoje e torcer para que o evento e toda a cena siga crescendo. Cena independente, que, provavelmente esteja no seu ponto mais forte em toda a história do país.

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05/12/2016

Redator de social media, jornalista, músico, emo, jogador de bocha, astrólogo e benzedeiro nas horas vagas. Um colono que se encontrou na cidade grande e agora pensa que sabe escrever sobre qualquer coisa.
Leonardo Baldessarelli

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