Morrostock 2019 | Pt.2 | Mulamba, Papisa, BIKE e a arte que marca a pele

20/11/2019

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Brenda Vidal

Por: Brenda Vidal

Fotos: Divulgação

20/11/2019

Atravessado por paradoxos e contradições, feito de sinônimos e antagonismos, diverso, imenso e dividido. O Brasil é um país complexo e está em uma fase, no mínimo, complexa. Quem, em pleno 2019, se animaria a reunir pessoas de diversas raças, gêneros, orientações sexuais, classes sociais e cantos do país em um Balneário afastado da cidade e sem sinal de telefone para viver quatro dias acampando, usando os mesmos banheiros e  administrando o mesmo espaço? 

As dificuldades não foram poucas, mas o Morrostock – e os vários “quems” que o formam – encararam esse compromisso mais uma vez. A 13ª edição do festival que rola no Balneário Ouro Verde, Santa Maria, Rio Grande do Sul, aconteceu entre os dias 14 e 17 de novembro e chegou com força revigorante. O ano de 2019 simboliza a renovação dos votos da organização com o compromisso de fazer a arte e a diversidade continuarem a se espalhar aos quatro ventos do país. Estivemos presentes e, daqui para frente, você acompanha a segunda parte da resenha que documenta a jornada pelo festival. A primeira parte você encontra aqui

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Para quem conseguiu participar desde o primeiro dia de Morro, o sábado, dia 16, era o terceiro dia no balneário, dedução que fazemos a partir de um cálculo básico usando o sistema cronológico padrão de dias da semana e duração de dias. Entretanto, quando se está imerso em uma experiência de acampamento em um festival de música, a duração dos dias e das horas parece ter menos o peso do ponto de vista dos relógios e calendários e mais o peso do ponto de vista de cada uma das 1800 pessoas que passaram pelo Morrostock. 

Acampantes descansam na sombra (Foto: Elizabeth Thiel/Divulgação)

Público deitado na grama (Foto: Elizabeth Thiel/Divulgação)

Os pés ficam até mais cascudos de tanto andar e o corpo todo já se acostuma com o repouso sobre colchões infláveis e sacos de dormir. As rotinas já estavam estabelecidas: o tempo para tomar banho de rio, o tempo para preparar o almoço, o tempo para participar das diversas oficinas gratuitas oferecidas no Morro – de ioga, reiki, ginecologia intuitiva, malabares, toque e dança de agbê/xequerê, entre outras. 

Banhos de rios já eram rotina (Foto: Elizabeth Thiel/Divulgação)

Malabares foi uma das atividades oferecidas pelos oficineiros (Foto: Elizabeth Thiel/ Divulgação)

O fluxo na entrada do festival continuava constante, inclusive com a chegada de muitas das atrações do sábado; outra coisa que também não para no Morrostock é a música. Às 10h, o palco Lago já iniciava as atividades com o show de Laural. Jordana Henriques, uma das apresentadoras do festival, também deixou sua marca no Lago com seu swing e simpatia. 

Como já de costume, o som também não demorou a ecoar pelo palco Pacal, que também ficou recheado de cantoras, musicistas e compositoras mulheres com as passagens de nomes como Napkin, Alice Kranen e Dandara Manoela, cantora que antes de subir no palco alternativo, fez uma entrada triunfal ao lado do grupo catarinense Cores de Aidê, às 17h. 

Plateia curtindo os shows do Pacal (Foto: Thales Renato Ferreira/Divulgação)

Por uma questão de manejo da programação, as “filhas de Aidê” subiram uma hora mais cedo ao Pachamama. Nem de longe essa alteração fez o grupo hesitar; majestosas, elas surgiram com saias nas cores de Aidê – azul, verde e vermelho -, e ostentando seus instrumentos: vozes, surdos, repiques, caixa, timbal, xequerê e o próprio corpo, como no caso da dançarina Fernanda. Ao lado dela, as demais integrantes mantinham a postura soberana de quem tem a consciência de que suas raízes ancestrais tem ligação direta com príncipes, princesas, reis e rainhas.

Cores de Aidê é formado 100% por mulheres (Foto: Elizabeth Thiel/ Divulgação)

Nascido como bloco de afoxé, orgulhosamente inspirado em nomes lendários como Bloco do Ilê Ayê e Olodum, o grupo de samba-reggae traz o protagonismo das mulheres pretas de antes, de hoje e de sempre, o que se torna ainda mais potente se levarmos em consideração o histórico apagamento da contribuição da população negra na construção e na cultura de Santa Catarina, estado no qual o grupo se formou.

Iluminadas pelo crepúsculo e com a proteção de Aidê – figura mitológica citada em cânticos de capoeira do Brasil como uma mulher negra africana escravizada que renuncia ao casamento com “o seu senhor”, que a oferece a liberdade em troca, e foge para o quilombo Camugerê – , elas iniciam sua apresentação cheias de ginga, afeto e força, recheada pelas canções do disco Quem é essa mulher? (2018). 

O samba-reggae ecoou com a percussão do grupo (Foto: Elizabeth Thiel/ Divulgação)

Com os vocais destemidos de Cauane e Dandara e a performance de Fernanda, enquanto uma espécie de personificação de Aidê, elas mesclam momentos de reflexão e de pura dança. Ao ouvir “Negra”, “Gira Mundo” e “Índia”, não tinha quadril que não balançasse, corpo que não girasse ou braço que ficasse parado. Cantando a liberdade dos ancestrais, elas também não esqueceram de cantar pela liberdade dos de hoje. Em momentos de profundo cunho político, elas ergueram as mãos em punho em alusão aos Panteras Negras e, no meio da apresentação, evocaram os nomes de Marielle Franco, Moa do Katendê – assassinado em 2018 após uma briga motivada por divergências políticas na época das eleições e com quem o grupo chegou a fazer oficinas musicais – e Ágatha, menina de 8 anos que foi morta por um tiro que partiu de Polícia Militar do Rio de Janeiro neste ano. Ao final, as mulheres de Aidê deixaram o público estupefato. Sabe aquilo do tempo ser ainda mais subjetivo? Ao cantarem o clássico “Faraó (Divindade do Egito)”, de Margareth Menezes, fomos transportados para um fevereiro de pleno carnaval.

Potência não faltou na performance de Cores de Aidê (Foto: Elizabeth Thiel/ Divulgação)

Na sequência, passos apressados se direcionavam ao palco Pacal para a apresentação das minas d’As Tubas. O quarteto gaúcho aglutinou muita gente na plateia, até o ponto de ficar difícil de enxergá-las no palco. Com sua mistura de bases eletrônicas, teclados, acordeon, violino, baixos, guitarras, elas apresentavam um espetáculo com forte apelo cênico. Com faixas de cunho feminista, elas emocionaram e também inflaram o público no fechamento com um medley de “Todxs Putxs”, de Ekena, “Mulamba”, de Mulamba, e “Triste, Louca ou Má”, de Francisco, el Hombre. O encerramento do Pacal ficou por conta do girl power da La Leuca e seu rock com camadas psicodélicas. 

No Pachamama, o protagonismo feminino ficava por conta do show da Papisa, de São de Paulo. Às 20h, abençoada pela mesma lua cheia que sempre acompanhava as atrações noturnas, Rita Oliva subiu ao palco ao lado de seu baterista e de sua baixista para iniciar sua performance baseada no álbum Fenda (2019). A aura mística tomava forma através de uma lua no palco, dos incensos acendidos por Rita e pela evocação da canção/mantra “Moiras” logo na largada.

Como uma bruxa sábia que sabe o momento de acelerar e desacelerar, Rita conduzia tudo sem pressa. Cada track era como um novo ingrediente de um feitiço que ela engrossava em fogo baixo, mas constante. A voz doce e suave passeava pelos ventos do balneário e convocou o público a um mergulho interior. Ao final de um show super sensorial, uma sensação de leveza e de magia impregnava os sentidos de toda a plateia.

As atrações que ficaram responsáveis por manter a chama do Pachamama acesa ao longo da noite de sábado deram ao céu estrelado um tom de surrealismo e lisergia. Às vezes a gente esquece, mas o cenário independente brasileiro possui uma veia de rock psicodélico pulsante, algo que já não é de hoje. A primeira a banda a hastear a bandeira do “Pscych Rock made in Brasil” foi a BIKE, de São Paulo. Extraindo toda a potência alucinógena da nossa língua, com versos em português, eles cerziram guitarras em loop, baixos cadenciados e baterias ritmadas com vocais escorridos. Nem precisa falar que a atmosfera era quase distópica, né? 

BIKE em ação (Foto: Thales Renato Ferreira/ Divulgação)

Com a saída dos meninos da BIKE, foi a vez da entrada sempre triunfal da Mulamba. A relação delas com o Morrostock não é de hoje, e cada retorno das curitibanas ao palco principal do festival soa familiar, mas não menos especial. Com figurinos vermelhos e tintas rojas avermelhando os rostos, elas já iniciaram o show com a autoridade de quem sabe como levar a plateia à loucura. Menos agudo do que apresentações anteriores, o que se viu no Pachamama foi um tom mais sóbrio e soberano. Em uma vibe de afeto, elas convocaram todos a erguerem lanternas e isqueiros em uma cena memorável do Morro 2019.  

Cacau de Sá frente a frente com o público (Foto: Elizabeth Thiel/ Divulgação)

Impossível não mencionar a força dos vocais de Amanda Pacífico e as sempre viscerais interpretações de Cacau de Sá. As já clássicas e políticas  “Mulamba”, “Vila Vintém”, “P.U.TA”, e as afetuosas “Interestelar” e “Desses Nadas” foram entoadas como hinos pela fiel plateia. As Mulambas já entram grandes, mas saíram gigantes do palco.

Mulamba agradecendo ao público (Foto: Elizabeth Thiel/ Divulgação)

Herdeiros da psicodelia nordestina, os paraibanos do Glue Trip começaram a sua delirante viagem por volta das 2h da madrugada. A lisergia tropical do grupo se transforma em camadas sonoras cadenciadas, gasosas e flutuantes. O setlist extraiu o melhor dos álbuns Sea at Night (2018) e Glue Trip (2015). Com forte apelo dançante, o show conduziu ao passeio dos corpos pelas linhas de guitarra e pelas batidas sintéticas inspiradas pelo synth pop. Destaque para o sotaque caloroso do vocalista Lucas Moura e para as performances de “La Edad Del Futuro” e “Fancy”. A sensação é de que o tempo passou depressa durante essa viagem em forma de show.

Lucas Moura e sua flauta transversal (Foto: Gil Tuchtenhagen/ Divulgação)

Lisergia tomou conta de quem assistiu ao Glue Trip (Foto: Gil Tuchtenhagen/ Divulgação)

Acompanhando os guerreiros que permaneciam acordados às 3h da manhã em uma noite fria no balneário Ouro Verde, a SUPERVÃO, de última hora, acabou parando no palco Pachamama, e mostrou que segura bonito um show no principal espaço do Morrostock. Ali, o trio fez jus aos títulos dos trabalhos das carreiras; suas batidas eletrônicas encontravam as luzes do palco e provocavam uma mistura atmosféricas capaz de cobrir o único satélite da terra e torná-la, finalmente, uma Lua Degradê (2016). Com a pegada sintética, o vocal oscilante e as guitarras “alopradas”, o público incorporava um estado de transe e agitação semelhantes aos causados por um Tempo Barravento (2017). Com o carisma do frontman Mário Arruda e toda a estética frita do trio, a SUPERVÃO mostrou que Faz Party (2019) como ninguém. Menção honrosa à presença das faixas “Social Animal”, “Lua em Gêmeos” e “Toneladas”. 

SUPERVÃO no Pachamama (Foto: Vinícius Angeli/ Divulgação)

SUPERVÃO fez todo mundo fritar (Foto: Vinícius Angeli/ Divulgação)

Sol, normalmente, é motivo de felicidade, mas quando o astro rei iluminou tendas e barracas na manhã de domingo, dia 17, dava um certo tom de lamento, afinal, o último dia de Morrostock havia chegado. Ninguém sabia como ele chegara tão rápido. O domingo era com “d” de despedida. No entanto, sem tempo para a tristeza: ainda tinha muito som para rolar. Do palco, do rio e dos acampamentos podia se ouvir o ritmo autêntico e inconfundível dos potiguares da Orquestra Greiosa. Sua mistura colorida de timbres nordestinos, guitarras ritmadas, pitadas de rock e de eletrônicos com aura de folia e brega ressoavam por todo o balneário como um convite irresistível. 

Orquestra Greiosa no palco

Orquestra Greiosa não deixou ninguém perder o rebolado (Vitória Proença/ Divulgação)

O quarto dia do Morrostock queria deixar uma lembrança doce e dançante na memória do público. Para deixar a energia no alto, a bola foi passada para a Bandinha Di Dá Dó, que sabe como manter a vibração lá em cima. Com suas invenções sonoras, música cigana e “clown music”, eles transformaram o Pachamama em uma lona grande o suficiente para comportar toda a efervescência da música circense. O sol das 13h que torrava tudo o que estivesse abaixo dele nem foi um impeditivo para os pulos que se viam da plateia. 

Bandinha Di Da Dó saltou em direção ao público (Foto: Elizabeth Thiel/ Divulgação)

O bairrismo do Rio Grande do Sul é bastante discutível, mas, a atração responsável por encerrar o ano do Pachamama é, de fato, um dos grandes orgulhos do estado: o Bloco da Laje. É fato que, desde a manhã, via-se muita, mas muita gente aproveitando qualquer brecha para receber o grupo como ele merece ser recebido: com roupas, adereços e maquiagens em azul, amarelo e vermelho, as cores do brasão do coletivo. Mais uma vez, parecia que todos tinham sido transportados para o outro feriadão: o de carnaval. 

Um grande corredor se abriu para a passagem da bandeira do bloco (Foto: Thales Renato Ferreira/ Divulgação)

Atração-Amizade de longa data do festival, o Bloco veio com novidades com o show após o lançamento do álbum visual 4 Estações (2019). Com muita ansiedade da plateia e mais tarde do que previsto, os brincantes oficiais do carnaval de Porto Alegre subiram ao palco com suas cores, seus metais, suas percussões, sua bandeira, seu estandarte e sua presença cênica. E, bom, quando o Bloco da Laje comanda, não há quem não saia do chão. 

Público em êxtase no show do Bloco (Foto: Elizabeth Thiel/ Divulgação)

A energia carnavalesca tomou conta. Com um calor daqueles, o jeito era abrir ou tirar a camisa, usa roupas de banho, ficar de pés descalços e tentar aliviar jogando água pra cima e em todo mundo. Com as músicas características do grupo, como “Cordão da Idade Média”, “Pregadão”, passando pela nova “O Que Tu Tem Cidadão”, os foliões cantavam junto, faziam ciranda e tornavam-se, também, brincantes. O final foi suado, quente e apoteótico, com pedidos de “mais um” e “imagina na largada!”, mostrando a euforia do público só de pensar na largada oficial do bloco no carnaval 2020. O Bloco da Laje pode até ser tricolor em sua bandeira, mas enquanto coletivo, mostra o compromisso em representar todas as cores de gente, de afeto e de expressão. 

Performance de “Pregadão” (Foto: Elizabeth Thiel/ Divulgação)

Se todo o carnaval tem seu fim, o Morrostock também segue a regra. A fenda no espaço-tempo que o festival abre, de repente, chega ao fim. A edição de 2019 foi tão harmônica e leve que flutuou pelos dias, nos pegando de surpresa ao nos darmos conta de que já tinha acabado. Pela convivência em comunidade, o respeito às diversidades, a união de diversos sotaques, timbres e ritmos, o Morro mostrou porque, mesmo em tempos desafiadores, precisamos renovar a fé na música e a fé na gente. Difícil colocar em palavras uma experiência tão visceral e, porque não, mística, ainda mais quando se tem a benção da lua cheia. No final, as marcas do sol, a poeira no sapato, e as eventuais picadas de mosquito se tornam registros capazes de nos lembrar que a utopia não foi mero sonho. 

Público do Morro no último dia (Foto: Thales Renato Ferreira/ Divulgação)

20/11/2019

Brenda Vidal

Brenda Vidal