Nação Zumbi, Chico, caranguejos, maracatus e uma tal de lama da Manguetown

04/04/2016

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Julia Ryff

Por: Julia Ryff

Fotos: Felipe Diniz

04/04/2016

Sábado, 02 de abril de 2016, 22:15h – Um tenso diretor geral se preocupa com a falta de público para a exibição do documentário Chico Science – um Caranguejo Elétrico, marcada para às 23h. Cedíssimo para os padrões cariocas do Circo Voador. Contrariando a tradição da casa, que geralmente chama uma banda de abertura, o filme faria às vezes e antecederia a atração principal. Do diretor José Eduardo Miglioli, refaz a história do malungo sangue bom Francisco de Assis França e sua genial criação: a Nação Zumbi. Logo depois, o grupo subiria ao palco para metralhar um público disposto a se deixar morrer pelo peso de uma tonelada do maracatu atômico Jorge Du Peixe, Lúcio Maia, Dengue, Pupillo, Toca Ogan, Gustavo da Lua e Tom Rocha. A noite faz parte da turnê de comemoração dos 20 anos do lançamento de Afrociberdelia, que pela primeira vez seria tocado ao vivo na íntegra. Estava tudo preparado para a Nação fazer o que sabe fazer melhor. Só que ninguém contava com o carisma transcendental de Chico Science.

Chico Science – um Caranguejo Elétrico, o documentário

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Disposta a escrever um texto sobre o show, o caminho toma uma curva inesperada quando sou levada pela mão até a salinha debaixo do palco onde o Circo Voador guarda seu acervo. “Você precisa ver isso!” diz Amanda Braga, uma das produtoras da ‘nave’. Lá, sou apresentada aos responsáveis pelo doc que seria exibido logo mais. Sem entender direito, começo as perguntas. “Podemos dizer que o filme é uma mistura de imagens perdidas, tesouros resgatados e um passeio pela memória afetiva da história da banda, com entrevistas, shows e cenas inéditas?” indago.

Quem responde é o diretor José Eduardo Miglioli: “dentre as múltiplas possibilidades que eu tinha de contar essa história, decidi focar na música, então reconstruí a narrativa como supostamente aconteceu. Tentei desvendar o cognitivo de Chico pra juntar as coisas. De onde vieram esses tambores? O Chico nasce, cresce, encontra o Jorge e começa a receber as influências do hip-hop, a fazer essa busca pelo rock, pelo contemporâneo. Em determinado momento, o Gilmar Bolla 8 leva Chico para conhecer o bloco percussivo afro Lamento Negro do qual fazia parte, que fica em uma das áreas mais pobres de Recife. E aí ele (Chico), tem a sacada de pegar a percussão rítmica africana e trazer para o hip hop, juntando essa matriz cultural ao contemporâneo. Era o esboço do conceito ‘Afrociberdelia’. O filme está estruturado em três capítulos: a lama, o caos e o legado” explica.

Um dos grandes desafios da produção foi organizar os quilômetros de rolos de imagens da banda e encontrar o que se supunha perdido. Alguns shows e jam sessions sabia-se que haviam sido gravadas, a questão era encontrá-las. Outras surgiam inesperadamente durante a pesquisa e ninguém sabia de quem eram ou de onde vinham. Foi preciso um ano inteiro e uma paciência hercúlea para organizar, separar, averiguar a procedência e então, licenciar os direitos de imagem.

“Eu tinha autorização da filha de Chico e da banda, mas eu tinha que ir atrás das pessoas que apareciam nelas (nas imagens). A gente tinha a filmagem da primeira turnê internacional, em Nova Iorque (a apresentação no Festival Summer Stage, no Central Park, onde também tocou Gilberto Gil), ok, essas pertenciam à produtora. Era a única coisa que a gente tinha certeza que poderia usar, mas e o resto? Então a gente começou a garimpar. Cada entrevistado dizia – ‘ah, eu tenho um material guardado’. Tá, mas a quem pertence? ‘Isso não sei, Chico passou um dia e deixou aqui…’ As pessoas queriam ajudar, mas como a gente ia saber quem era dono, a quem realmente pertenciam as imagens, qual a procedência?! E aí começou a agonia” explica a produtora (e santa!) Carolina Carvalho.

Foram muitas noites em claro e xícaras de café seguindo pistas, dicas e becos sem saída, levando a equipe quase às raias do desespero. Uma grande parte do material (vindo de uma câmera que a banda havia comprado em 1900 e lá vai bolinha) acabaria por ser encontrado (só Deus sabe como foi parar lá! ) no Circo Voador.

“Um dia estava almoçando com a Ana Almeida (empresária) quando alguém do Circo ligou e comentou que no acervo tinha algumas coisas. Comentei com o Zé (Miglioli), a gente pediu que enviassem, assistimos e não servia, não era o que a gente procurava. Ficamos naquela, sem saber direito o que fazer, até que a Amanda Braga lembrou de um material ‘perdido’ que ela, ao organizar as fitas, acabara encontrando. Era exatamente uma parte do material que a gente estava atrás, que todo mundo dizia que existia e ninguém sabia dizer onde encontrar, gravadas da câmera que a banda comprou na primeira turnê pela Europa!” completa a produtora.

Sábado, 02 de abril de 2016, 23:30h (cedíssimo para os padrões cariocas) – Um Circo Voador lotado, surpreendentemente estático e silencioso. Público de olhos vidrados no telão esticado no palco, fascinado com os passos daquele gigante carismático do espaço sideral versando sobre caranguejos, maracatus e uma tal de lama da Manguetown. Não sabendo direito como desvendar o significado de Macô mas se deixando levar pela guitarra psicodélica e os tambores ritmados. Um Circo sentado na arquibancada, nos bancos e no chão, saboreando a história de uma das bandas mais importantes e revolucionárias que já surgiu em terras brasileiras, composta por uns mague boys que moravam em uma distante Recife que, na época, mais parecia ficar em outro continente e ainda assim, faziam um som cheio de influências de bandas vindas do outro lado do globo (naquela tempo não havia internet, amiguinhos!).

E o show em comemoração aos 20 anos de Afrociberdelia? A catarse explosiva de uma bomba atômica que lava a alma, faz a gente voltar a ser criança, a dançar sem se importar com a beleza dos movimentos e voltar pra casa com um sorriso no rosto. O Circo Voador, mais uma vez, veio ao chão sob o ataque sem piedade da Nação Zumbi.

O documentário Chico Science – um Caranguejo Elétrico é uma parceria entre a RTV, Globo Filmes e TV Globo Nordeste e por enquanto não tem data para entrar nos grandes circuitos. A ideia do diretor é seguir a turnê da banda e fazer exibições antes dos shows.

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04/04/2016

Julia Ryff

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