Dá para acreditar que o disco dos Rolling Stones, Goats Head Soup, faz 50 anos em 31 de agosto de 2023? Embora a maioria dos críticos considere um disco menor, o álbum vendeu mais de 3,5 milhões de cópias somente na Europa e na América do Norte. Só que, mais do que isso, o disco criou uma mitologia própria.
A história do meu amigo Cristian ilustra lindamente essa mitologia. O Cristian tomou um ácido assim que chegou numa festa que acontecia num sítio nos cafundós do Rio Grande do Sul. Nem sei quanto tempo ele guardou aquele quadradinho estampado com a boca carnuda e a língua vermelha que formam o logo dos Rolling Stones. O problema foi que o meu amigo achou que o ácido não estava fazendo efeito, porque tinha guardado o material por muito tempo.
O seu lamento estava ficando tão repetitivo que ninguém reclamou quando o Cristian decidiu dar uma volta. “Vou trocar uma ideia com aquela mulher de chapéu e luvas pretas!”, ele caminhou para um canto escuro perto do banheiro. Ele ficou tão envolvido com a conversa que nem reparou nas risadas das pessoas que passavam por perto.Quando o DJ tocou Dancing with Mister D – a música que abre o Goats Head Soup – a mulher começou a falar sobre o disco. Ela começou perguntando ao Cristian…
Você sabe quem é o Mister D?
O meu amigo só sabia que a letra de Dancing with Mister D falava de uma figura macabra que fazia as pessoas se sentirem livres ao dançarem com ele. A mulher de chapéu e luvas pretas acrescentou que essa canção era a segunda parte do clássico Sympathy for de Devil. Afinal, o Mick Jagger canta o seguinte verso em Sympathy for the Devil: “I hope you guess my name” (eu espero que você saiba o meu nome). Já em Dancing with Mister D, ele canta assim: “I know his name, he’s called Mister D” (eu sei o seu nome, ele se chama Mister D). Claro que muita gente especulava que a letra “D” significava “devil”, “death” ou algo assim. De qualquer forma, essa música é um dos pontos altos do disco, junto com 100 Years ago, Silver Train, Star Star e, claro, a balada Angie.
Depois, ela perguntou ao Cristian se ele sabia…
Por que o disco foi gravado na Jamaica?
Ela explicou que o disco foi gravado na Jamaica, porque era um dos poucos países em que todos os membros da banda podiam entrar. Eles não voltavam à Inglaterra há anos, porque tinham sonegado impostos lá. Além disso, vários países se recusavam a dar um visto para o guitarrista Keith Richards, porque ele estava sendo processado em vários lugares por causa do vício em heroína. Aliás, ele estava tão transtornado por causa do vício que suas roupas sujas empesteavam a atmosfera do estúdio.
No livro de memórias da banda – According to the Rolling Stones – o Keith Richards relembrou aqueles quatro meses de gravação. “A Jamaica era um dos poucos países que podia receber todos nós. Naquela época, o único país que permitia que eu existisse era a Suíça, que era chato pra caralho para mim, porque eu não gostava de esquiar. Nove países tinham me chutado para fora. Obrigado a todos. Enfim, tudo era uma questão de como nos mantermos juntos (os membros da banda)”.
Depois da explicação, a mulher de chapéu e luvas pretas falou sobre…
As três capas do disco
Inicialmente, o designer John Pasche – o autor do logo dos Rolling Stone – pensou em fotografar uma sopa de cabeça de bode (“Goat head soup”, em inglês) para a capa do disco. Essa iguaria é um prato popular na Jamaica, onde a panela de pressão é utilizada para ferver legumes, testículos, pés, intestinos e, claro, cabeças de bode. A ideia foi executada pelo fotógrafo Phil Jude, que fez sua própria sopa em um caldeirão que evocava uma atmosfera de bruxaria. O problema foi que a gravadora achou a imagem muito pesada.
Aí o presidente da gravadora recorreu ao grupo de designers Hipgnosis, que tinham feito algumas das capas mais icônicas do Led Zeppelin e do Pink Floyd. O Mick Jagger e o Keith Richards gostaram de uma das ideias apresentadas pelos designers. Era uma montagem em que os integrantes da banda apareciam como centauros: metade humanos, metade cavalos. Eles também se entusiasmaram com a possibilidade de serem representados como metade humanos, metade bodes. Pena que a ideia foi abandonada após a sessão de fotos.
Aí o Mick Jagger pediu ao seu amigo, o fotógrafo David Bailey, para fazer a capa do disco. O fotógrafo teve a ideia de usar véus coloridos na cabeça dos integrantes. A princípio, Jagger protestou. Mas a verdade é que as fotos ficaram ótimas.
Finalmente, a mulher de chapéu e luvas pretas perguntou ao Cristian se ele sabia…
Por que o disco se chama Goats Head Soup?
A teoria da mulher de chapéu e luvas negras era que, ao mencionar essa iguaria no título, os Rolling Stones pretendiam exortar uma atmosfera “vudu”, de “feitiçaria”, coisas assim. Provavelmente, a inspiração veio da religião afro-jamaicana conhecida como Obeah, um culto que mistura elementos do cristianismo com crenças africanas.
Por vários séculos, os negros escravizados na Jamaica utilizaram os rituais mágicos da Obeah – que envolvem o uso de substâncias alucinógenas extraídas de sapos, cobras e raízes para evocar entidades sobrenaturais – com o objetivo de se protegerem ou aniquilarem os opressores. Durante o século XVII, o governador da colônia britânica, o bucaneiro Henry Morgan, chegou a mencionar em sua correspondência os “cultos africanos, perpetrados pelos negros, que podem causar a morte de feitores de escravos e senhores muito cruéis”.
A mulher de chapéu e luvas pretas considerava aquela referência ao Obeah mais uma prova de que os integrantes da dos Rolling Stones tinham recorrido à feitiçaria para alcançar os seus objetivos. Era fácil de acreditar naquela teoria, porque, desde o lançamento de “Sympathy for the Devil”, os Stones eram associados com coisas supostamente “satânicas”.
Por isso, o Cristian acreditou na teoria da mulher sem pestanejar.
No final daquela festa, chamei o meu amigo para voltarmos à cidade. Ele me pediu um minuto para se despedir da mulher de chapéu e luvas pretas. O problema é que não havia ninguém lá. Dá para acreditar que ele tinha passado a noite toda conversando sozinho? Óbvio que o meu amigo se perguntou se tinha vivido uma experiência sobrenatural ou se o ácido tinha batido sem que ele percebesse. Mas, assim como o envolvimento dos Rolling Stones com rituais mágicos, ele nunca soube ao certo o que aconteceu naquela noite. Mas foi um momento mitológico do meu camarada.
Acho que a música e a vida, quando são levadas às últimas consequências, criam a sua própria mitologia.
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Ouça abaixo a versão Deluxe do disco, lançada em 2020, que reúne sobras de estúdio, versões alternativas das faixas, incluindo uma música inédita, “Scarlet”, em parceria com Jimmy Page:
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