
Cantora, compositora, atriz e escritora, Letícia Novaes – Letrux – é uma artista multifacetada. Mesmo com sua importância no cenário artístico do Brasil, Letrux lembra que escolheu “ser alternativa para sempre”.
Em 2025, a carioca completa 20 anos de carreira. Para comemorar, traz apresentação inédita reverenciando a cena alternativa brasileira. Muitos grandes artistas que a influenciaram não se tornaram “pop” ou mainstream – e o resgate ao legado desses nomes é o pontapé inicial do projeto 20 Anos Alternativa.
Trata-se de uma viagem no tempo para o início do milênio. O repertório conta com 24 canções, lançadas entre 2000 a 2015. “Quero enaltecer uma cena que merecia mais atenção. São músicas e artistas geniais. Vamos bater palma para a turma alternativa porque todo mundo merece muito”, diz.
Esse não é o primeiro projeto que Letrux atua como intérprete. Nessa mesma temática, a cantora já trouxe o espetáculo Línguas e Poesias e Alfabeto Sonoro – em que todas as letras do alfabeto ganham uma canção.
Fora dos palcos, Letrux é madrinha da próxima edição do Women’s Music Event. O evento propõe discutir o papel e representatividade das mulheres na música brasileira. A conferência acontece entre os dias 12 a 15 de junho, em São Paulo.
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Também autora de Zaralha – Abri Minha Pasta (2015) e Tudo que Já Nadei (2021), Letrux se prepara para lançar seu terceiro livro, o Brincadeiras à parte. Com previsão de lançamento para o segundo semestre de 2025, a obra traz contos inéditos. Para ela, esse é um preparatório para um futuro romance.
Com voz autêntica, carisma e performance teatral, Letrux acumula 6 álbums – três com o duo Letuce e três sob o nome Letrux – e inúmeras apresentações, no Brasil e no mundo. Na carreira, a cantora fortalece um estilo lírico com suas letras políticas.
Os anos 2000 foram um período de efervescência cultural, em que reinava o otimismo e o alto astral, o que se refletiu nas produções musicais da época e da propria Letícia. As canções escolhidas para o projeto – incluindo Céu, Cícero, Silvia Machete, Ava Rocha, Anelis Assumpção, Karina Buhr, Thiago Pethit, Mombojó e muitos outros artistas – ganham um toque “letruxiano” para as apresentações.
Em entrevista à Noize, a artista fala sobre como se manter autêntica, dá conselhos para artistas da nova cena independente e disseca o 20 Anos Alternativa, com suas inspirações, escolha do repertório e expectativas para o show.
Quais músicas você pretende revisitar no show?
Foi um filtro da emoção. Por mais que algumas músicas tenham feito sucesso, entre 2000 e 2015 no cenário independente, algumas músicas não cruzaram meu destino. Então, eu escolhi 24 músicas e fizemos alguns medleys para caber tudo.
De 2000 a 2015, a Céu estava pintando, Mombojó, Ava Rocha, Karina Buhr e muitos outros. A playlist também traz bandas que não existem mais, como Binário, que era a banda do Lucas Vasconcelos, meu ex-parceiro de Letuce.
No início do milênio, ele tinha uma banda que tocava todo domingo na Praia de Ipanema, era um sonho. Das que não existem mais, também tem Tono, banda da Mãeana.
Tem muitas pessoas que ainda estão aí, e também tem músicas de pessoas que estão com outros projetos, mas aquele projeto se encerrou nos 15 anos iniciais do milênio. Mas a escolha foi puramente emotiva. Essas músicas estavam na minha playlist do coração.
Serão diferentes das versões que você toca no Línguas e Poesias, por exemplo?
O 20 Anos Alternativa é um projeto totalmente diferente do Línguas e Poesias. No Línguas e Poesias, eu também sou uma cantora intérprete, mas é algo voz-piano-violão.
No 20 Anos Alternativa eu estou com a minha banda, a mesma que gravou Letrux em Noite de Climão (2017), Aos Prantos (2020) e Mulher Girafa (2023), e é mais porrada, bateria, guitarra.
O Línguas e Poesias é um projeto paralelo, onde eu realmente sou intérprete, mas eu canto coisas mais famosas, como Yoko Ono.
No 20 Anos Alternativa eu só canto coisas brasileiras, de 2000 a 2015, do cenário independente, e fiz as nossas versões Letruxianas, maluquinhas e loucas para essas músicas. Tem Silvia Machete, Ava Rocha, Anelis Assumpção, Céu, Karina Buhr, Thiago Pethit, Mombojó, Banda Eddie, Cícero, que lançou um disco icônico há um tempo. Tem essa turminha toda e mais.
O que significava ser alternativa 15 anos atrás?
Há 15 anos, talvez eu tivesse uma pequena implicância com essa palavra, mas só porque era uma palavra que meus irmãos usavam: “Ah, lá vem a alternativa”, porque eu sempre fui quem eu sou [risos]. Mas nada como envelhecer e se tornar quem você realmente é, porque uma hora eu falei: “Eu sou alternativa mesmo”.
Há 15 anos essa palavra poderia ter algum peso um pouco esquisito, “Ah, não é bem isso que eu quero ser, mas me jogaram aqui nessa gaveta”. Mas, hoje em dia, o tempo passou.
Eu estou com 43 anos e não acho que vou começar, de repente, a fazer música para muita gente. Eu não me vejo como uma figura ultrapop.
Algumas músicas minhas são super universais, com temas banais, mas tem o comportamento também, não dá para negar que eu não sou a Anitta, e nem quero ser, e maravilhoso que ela exista e queira ser quem ela é, mas não é isso que eu quero.
Eu quero ganhar mais? Quero, mas também quero minha vida do jeito que ela é. Não quero ir à praia e ter paparazzi me enchendo o saco, então, é uma escolha. Eu escolho ser alternativa. É uma coisa que a vida me mostrou, mas eu também escolho estar alternativa para sempre.
O que significa ser alternativa hoje em dia? O que diria para os novos nomes que estão despontando na cena?
É diferente hoje em dia. Eu recebo muita música, faço feat com gente que está começando, pessoas me pedem conselho, eu tenho uma troca legal com a galera mais nova, mas é diferente, essas pessoas estão muito sábias.
Eu com 25 anos, até porque peguei a transição do fim da gravadora até o início da música na internet, então aquilo era tudo mato, e a gente não sabia capinar aquele mato, não entendíamos sobre streaming, sobre dinheiro do streaming, então era diferente.

Eu vejo a nova geração muito sábia sobre distribuição de música, eles sabem tudo. Palmas para essa geração, porque a gente que pegou a transição, ficamos um pouco a Deus dará. Eu acho que essa nova geração chega com uma nova mentalidade, que eu me identifico. Eles não chegam assim: “Eu vou estourar”. Eu também não pensava assim, isso nunca passou pela minha cabeça, eu só queria fazer minhas músicas e soltar algum bicho que estava dentro de mim [risos].
E eu acho que essa nova geração já entendeu que música, hoje em dia, é nicho. Não é mais: “Vou estourar e o Brasil inteiro vai me conhecer”, então tomara que eles tenham uma relação um pouco mais sadia com o mercado.
Acho que na minha geração tinha uma galera que sonhava em estourar, eu não me identifico com esse pensamento, eu era do desvio. Acho que a nova geração está mais sadia na compreensão de onde se colocar no mercado e no desejo de fazer música hoje em dia.
Eu vi a chegada do MySpace, fiz amizade com a Marina Lima por lá, então a gente estava entendendo como colocar a sua música para jogo, será que dá dinheiro? De repente, surge o Spotify, que, quando ele surge, eu já estava no final de Letuce. Enfim, foi confuso.
O que você mais te encanta em ser intérprete?
Tem uma beleza em ser intérprete. Eu fui tocar violão para poder compor, mesmo não sendo instrumentista, eu precisava do instrumento para brincar e criar melodias e letras. Eu era muito nova, e com muita audácia, eu peguei o violão e, ao invés de aprender a tocar Legião Urbana ou qualquer outra banda que fizesse sucesso na época, eu fiz 20 músicas.
20 músicas horríveis! Péssimas, ainda bem que não existia internet na época, essas músicas não estão no streaming, graças a Deus [risos]. Então eu fui muito autoral.
Eu fiz um disco com a minha banda de rock, os Letícios, depois eu fiz 3 discos como Letuce, 3 discos como Letrux. Eu inventei esse outro projeto, primeiro foi o Línguas e Poesias e depois o Alfabeto Sonoro para eu ser um pouco intérprete, mas aí eu canto de tudo, Nina Simone, Tom Jobin, Yoko One.
Mas, de repente, eu pensei: “A nossa geração precisa de algumas homenagens” As pessoas adoram dizer que não se faz mais música como antigamente, mas existem pérolas nesse novo repertório.
São músicas que, se tivessem sido lançadas pela Rita Lee, por exemplo na época da gravadora, todo mundo ia prestar atenção naquela canção, mas como não foi, deixaram passar o brilhantismo.
Tem várias músicas que são super enaltecidas, como algumas das Céu, que as pessoas conhecem e amam, mas tem outras que são um pouquinho mais lado B de outros artistas. Não vamos cantar só os lados A’s dos artistas.
Ser intérprete me ajuda a me reconectar com a Letícia que ainda não era autora, quando eu era criança e adolescente e só ouvia música. Então eu estou muito ouvinte, prestando muita atenção nessas músicas que vamos cantar, nas versões originais e nas versões que vamos fazer. É um momento mais de escuta do que de “quero botar a minha letra e minha ideia para jogo”.
É uma brincadeira, ser intérprete é querer brincar um pouco. Eu escrevi um livro esse ano, que vai lançar no segundo semestre, então eu gastei muitos neurônios escrevendo esse livro e quando eu fui pegar o violão para compor não saia mais nada.
Acho que amar é dar férias para aquilo que se ama, então eu dei férias para a composição musical e falei deixa eu brincar de outra coisa. Brincar é muito bom para espairecer, decidi brincar com as músicas dos meus amigos de profissão.
Cantar uma música sua e de uma outra pessoa são processos muito diferentes. Como é seu processo de preparação para isso? É uma loucura. Na minha música eu estou mais foda-se [risos], mas, para a música dos outros, eu nunca fui tão nerd. Não quero errar a afinação, a melodia, nada, estou super certinha, para fazer tudo certinho. Quero tanto enaltecer essa canção, esse artista, essa amiga, esse colega de profissão que estou mais nerd, estou bem estudiosa.
Com as minhas músicas eu sou um pouco mais, vamos lá, vamos lá. A diferença é que eu estou mais estudiosa em relação às canções. Mas eu também sei que são pessoas generosas que me diriam: se divirta. Então não estou deixando que a cabecice e a nerdice ganhem da diversão. Quero me divertir, mas estou bem concentrada em estudar.
O “20 anos Alternativa” acabou de começar, mas existe algum outro projeto que você tem em mente? Outro tema ou artista que queira homenagear?
Tem alguma gracinha que a gente vai fazer no futuro, mas está tudo tão embrionário, vai que não acontece, essas loucuras da vida. Porque projeto é dinheiro, levantar um show é muito caro.
A gente ensaiou 8 dias, foram quase 6 mil reais de ensaio, é muito caro alugar estúdio, pagar as pessoas, pagar comida, uber, então é uma grana levantar um projeto. Então é difícil falar, mas a gente quer fazer muitos shows.
Temos uma agenda legalzinha, mas queremos mais e mais, então acho que, quando as pessoas perceberam que está acontecendo, como não teve ainda nenhum registro do show, acho que mais convites vão pintar, tomara.
Quais são as suas expectativas para as apresentações?
Eu quero me divertir muito. Também quero fazer uma homenagem celebrativa a um tempo. De 2000 a 2015 existia uma aura no Brasil com alguma sensação de otimismo, de fé que tudo ia dar certo. De 2015 a 2016 aconteceu o golpe da Dilma, e as coisas caem vertiginosamente, vem a pandemia em seguida, agora estamos voltando a respirar.
A gente afundou e estamos voltando para a superfície. Esse show, além de celebrar a cena alternativa e independente, que merece muitos aplausos e às vezes não recebe, quer trazer uma nostalgia saudável.

Tem gente que fala: não pode ter nostalgia, saudosismo. Não só posso, como terei! [risos] Eu vivo muito o presente, ele já está tatuado na minha cara, tenho curiosidade com o futuro? Tenho, mas tenho medo e me deixa ter medo. Me deixa ter uma sensação de saudosismo com aquele otimismo de 2000 a 2015.
Não estou falando que está tudo perdido, não sou derrotista, mas eu to com uma mini saudade daquela sensação. Ouvindo então essas músicas, que me transportam para a Letícia da época, eu penso: “Caramba, eu achei que outras coisas iam acontecer”. Então é uma homenagem ao otimismo do início do milênio, que acho que se perdeu um pouco.
Agora estamos em um momento de emergências climáticas, pós-pandemia, neurose e paranoia geral do que vai acontecer e acho que, no início do milênio, existia um frescor de que tudo ia dar certo. Acho que essa sensação se perdeu um pouco, então vamos tentar recuperar aquele frescor, aquele otimismo e ver se a gente consegue melhorar nosso futuro.
Que artistas ou discos daquela época te influenciaram fortemente? Algum impacto direto na sua carreira?
Para além dos que eu já citei, e a sensação dessas pessoas serem próximas me dava a sensação de que se elas conseguem, eu também consigo. De 2000 a 2015 tem dois artistas muito importantes para citar: Radiohead e PJ Harvey.
Realmente, aconteceu alguma coisa, um mergulho profundo na carreira desses 2 artistas. Eu já ouvia muita coisa boa porque, por sorte, sou filha de pais com gosto musical muito legal. Então fui apresentada a coisas muito legais.
Meu pai ouvia muito blues, BB King, aí do nada, ele ouvia Mozart, depois Raça Negra e pagode. Minha mãe muito MPB, Chico – Buarque -, Bethânia, Caetano – Veloso -. Então eu tive todo esse estofo, só que quando começou a internet, eu fui descobrir minhas coisas também.
Quando eu descubro Radiohead e PJ Harvey eu penso: isso é profundo, eu quero estar perto disso. Fui nos shows, enlouqueci. Então eu mamei nessas tetas, não sei se consegui imprimir, mas influência é influência, está dentro da gente.
O que você quer despertar no público que for assistir “20 Anos Alternativa”?
Para quem já conhece as músicas, eu quero que se divirta com a nossa versão. “Olha que louquinha a Letrux cantando essa música da Céu. Olha que figura. Que maravilha a banda da Letrux trazendo esse arranjo para a música da Karina Buhr”. Divirtam-se!
Muita gente me pede a playlist, e eu solto várias dicas. Quando eu faço um post do novo show no meu instagram, eu solto uma nova música, mas eu não vou soltar a playlist, porque hoje em dia é tudo tão mastigado, que a gente precisa dar espaço para o fator surpresa.
Para quem já conhece as músicas, que se divirta com as nossas versões letruxianas, quem não conhece, descubra as músicas, descubra os artistas. Algumas músicas minhas trazem uma tristeza, como “Abalos Sísmicos” do álbum Aos Prantos, que eu faço que “O país não colabora”, tem um fator político, porque pra mim é impossível não ter.
Mas, quando você vai ver as letras das músicas desse show e tem “Levo a vida tranquila, não vou me preocupar” – música “Tranquilo” de Thalma de Freitas -. Olha essa letra! Era outra atmosfera, o mundo mudou muito.
Que saia paranoia e venha o frescor, porque as letras trazem isso, feitas em outra época. Quando o golpe acontece em 2016 a arte sente. A arte sempre sentem tudo, aí o babado começa, mas até 2015 fizeram letras mais românticas, esperançosas e astrais.
A sua performance sempre foi muito marcante: teatral, sarcástica, sensível. Você sente que isso conversa com o espírito alternativo brasileiro?
Eu sou uma pessoa diferente, dentro e fora do palco. Minha mãe é professora de francês, então imagina, eu era já um animalzinho selvagem, mas ela me ajeitou [risos] As pessoas falam: “Não sabia que você era formal” E eu sou. Sou capricorniana e filha de uma professora de francês. Então tenho esse lado educadinho e certinho.
Mas, dentro do palco, o palco é permissivo, é liberdade total. Talvez não total, às vezes eu penso na luz, no som, não posso me machucar, nem machucar a plateia. Então é uma liberdade com muito cuidado, muita atenção. O espírito alternativo é o meu espírito, não é nem algo que eu invoco.
Fazendo show no Lollapalooza para um monte de gente ou tocando em um buraco, como já toquei em mil do tipo, eu encarno uma pessoa animalesca, dentro de mim, sempre. Tendo 30 pessoas na plateia ou 3.000, eu vou fazer um show. Eu gosto de fazer show, é o que me dá muito tesão, então eu encaro com muito viço.
Ser alternativa é como eu me sinto. Tem gente, ainda mais independente no mercado do que eu, que fala “Pra mim, a Letrux já é pop”, mas amado eu não sou, vai ver meus números, minha conta bancária, pop é outra coisa [risos]. Eu ainda estou no mercado independente. Então é de fácil acesso invocar minha persona alternativa no palco, porque eu ainda sou ela.

Por que é importante se manter autêntico no meio artístico? E qual conselho você daria para quem está começando e quer se manter autêntico?
Essa pergunta é muito louca. Um conselho para ser autêntico meio que não existe porque ou você ou você não é. Ai não sei! Que horror [risos]. Eu não tenho nada contra quem move mundos e fundos, cria personagens e banca a sua ambição.
Tem cantores que falam: “Eu sei que eu fiz um disco de sucesso. Fiz esse disco para ser um hit” Foda, queria eu ter essa certeza. Eu sou uma pessoa mais filosófica, do campo da dúvida, do refletir. Eu acho que, para se manter autêntico, você tem que fazer as coisas que você quer. Se você quer sucesso, corre atrás. Eu fiz algumas concessões, mas outras eu não fiz, porque eu gosto da minha vida.
Às vezes não vem retorno financeiro, mas, o que teria vindo, teria sido pior [risos] Uma dica é ser uma pessoa conectada com a sua intuição. Eu sou muito intuitiva. Faço análise, tenho um lado racional também, mas estou aqui com a conexão cérebro-estômago-coração muito forte.
Eu fico ali só respeitando as minhas ideias. A dica é respeitar o que você quer, o que você deseja. A autenticidade vem desse diálogo interno e se ele falar alguma coisa maluquice. Aceite e lide com isso.