Esquentando almas e corpos com Céu

02/05/2016

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Nicolas Henriques

Por: Nicolas Henriques

Fotos: Victor Petreche

02/05/2016

A maratona do frio inclemente em São Paulo continuava a estremecer ossos saudosos de um calor que parece ter nos abandonado ao relento na velocidade de um tiro. A mudança repentina dessa frente fria, prenúncio de que o inverno está chegando não apenas em Game of Thrones e na política brasileira, mas em todos os lares da maneira mais real e física possível, transportou-nos para cenários desoladores brechtianos, alçando-nos a condições tristes em que o clamor por um espaço quente para não ficar a mercê de uma pneunomia se fazia ouvir em cada casaco grosso e nariz vermelho. O show da Céu, no Sesc Pompeia, era tranquilamente a melhor opção para se aquecer naquela noite, tanto que muitas pessoas buscavam desesperadas um mísero ingresso de alguém que estava prestes a desistir para se esquentarem com as músicas do mais novo álbum da cantora, seu quarto de inéditas, o ótimo Tropix.

Ao entrar no espaço da comedoria (antiga chopperia) do Sesc, provável melhor lugar para shows em São Paulo, foi possível perceber como Céu já era uma estrela gigante, que movia públicos distintos em igual escala. Dava para ver todas as idades misturadas na plateia, assim como músicos de diferentes gerações, como Arnaldo Antunes ou Tim Bernardes, d’O Terno. O palco era bem mais minimalista que os coqueiros e Iemanjá, que todo aquele clima de pesca jorgeamadiana do proposto em Caravana Sereia Bloom. Com um forro prateado ao fundo, lembrando uma espécie de qualquer material térmico por dentro, dava para sentir que estávamos diante de uma mistura de referências sessentistas, setentistas e oitentistas, naquela espécie de futuro distópico e curvo de filmes como 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968) e Brazil (1985). Essa mistura do futuro antigo é a melhor forma de expressar, como contraponto, a contemporaneidade do som de Céu, que, neste último álbum, contou com a produção de seu baterista e eterno parceiro Pupillo, com Hervé Salters, tecladista e produtor francês, conhecido também sob a alcunha de General Elektriks. (Aliás, se você ainda não ouviu o último álbum do mesmo, To Be a Stranger (2016), faça isso já.)

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Pontualmente com dez minutos de atraso (é o tempo de atraso do Sesc, sempre exato e maravilhoso por isso), a locução anuncia o início do show. Luzes roxas ao fundo criam uma sensação de leve calor. A banda entra em silêncio, todos de preto, com exceção de Pupillo, todo de azul-marinho. Um teclado oitentista começa a fazer dueto com a bateria mais seca. Céu entra com um veludo molhado vermelho. Maravilhosa, com seu cabelo armado lembrando imortais da música, com um quase permanente à Robert Plant. Estava linda demais. Com uma atitude roqueira, dando socos no ar e sorrindo com leve desdém de canto da boca, começa “Rapsódia Brasilis”. A plateia já começa a cantar a música inteira. Com o término da música, aplausos longos já indicavam que o show seria de uma troca imensa entre cantora e audiência.

Para jogar o clima lá no alto, a segunda música já é a excelente – e triste – “Perfume do Invisível”. Impressionante, o single já está na boca de todos. A plateia cantou cada letra, respirou cada respiro e sentia a dor de também já terem passado o perfume do invisível algumas vezes na vida. Mas a mensagem dessa música é de certa libertação, seu suíngue entre os momentos cantados, repercutiam-se na postura suingada da cantora. Mesmo assim, a volta da voz de Céu lembra que a música dói, mesmo que seu ritmo tente quebrar. Que música linda; a interpretação ali fora feita especialmente para também nos levarmos a esse conflito do ritmo e letra da música. Ao final, Céu não acreditava e falou para a plateia, numa alegria pura e sincera, que todos ali sabiam das letras e ela estava impressionada.

Luzes verdes e brancas anunciavam a próxima música, “Arrastar-te-ei”. O baixo pegado da música, assim como teclados e sinth contrapunham eletronicamente essa letra com temática tão particular do universo de Céu, principalmente de Caravana Sereia Bloom. Era uma leitura nova para esse universo de mares e amores infinitos. Inclusive, a ligação entre “Arrastar-te-ei” e a próxima música foi sutil, pois, embalados já no clima de amor quente, “Contravento” começou como apenas para consolidar a pá de cal para que a plateia se entregasse completamente ao clima de cantoria extrema. As danças se soltaram com essa música, as pessoas começaram a se entregar mais pela familiaridade dessa música. Para embalar nos cantos nostálgicos de álbuns anteriores, “Comadi” tocou sob luzes vermelhas seu amor pra Iaiá.

Saiba meu amor, cuidarei de nós, mesmo quando eu for, em busca de mim. O início de “Amor Pixelado”, com um teclado minimalista, quê de solitude impregnando o ar, invade o ambiente. A plateia acompanha, mas o ritmo se abaixa. A música, apesar do teclado futurista tocado por João Leão, é melancólica. Céu se entrega dolorosamente, desata seus próprios nós na cantoria, enquanto esfrega as mãos em seu cabelo. O sintetizador pesado de Hervé, ao acabar essa música, lembrava a trilha sonora de Drive, obra do também francês Kavinsky, o que nos causa essa impressão de que, por lá, o neon rosa, o futuro sem promessas e esperança soa cada vez mais palpável. É o começo de “Etílica”, seguida, numa paulada só, por “Grains de Beauté”, música de Vagarosa, segundo álbum da cantora, que também acabou sendo o escolhido para a próxima canção do show, “Cangote”, que, no show, foi alterada para ficar na pegada de Tropix, ganhando uma referência quase de Abba em suas músicas mais sombrias e tristes, mas sem perder a pegada reggae característica da mesma.

Céu sabe que é imensa. Se não sabe, que saiba agora: é imensa. Mas, ao cantar “Minhas Bics”, ela parecia examinar cada olhar ali na plateia, das lentes do fotógrafo às crianças que ali estavam, perscrutando um a um com doçura e incandescência ímpar. Todos, sem exceção, estávamos enfeitiçados com essa candura selvagem, tanto que, ao começar “Varanda Suspensa” cantamos sem parar cada trecho da música, e ovacionamos o final dela sem nem saber direito qual foi o trem que passou por nós em tamanha velocidade e afeto. Parecia, pelos aplausos entusiasmados da plateia, que cada música encerrava o show; a plateia exultava Céu, que retribuía com canções cada vez mais sinérgicas com a noite. Parecia que estávamos participando de uma simbiose entre local, plateia e banda, unindo-nos tal qual galhos de uma milenar árvore tropical. Com uma homenagem à banda Fellini e ao parceiro Pupillo, a cantora começa “Chico Buarque Song”, canção desse grupo alternativo de São Paulo das décadas de 80 e 90. Vou ao banheiro e perco a canção “Camadas”, feita em parceria com o dionisíaco Dinho Almeida, do Boogarins.

Quando volto, a bateria dançante dessa pegada neodisco que algumas bandas lá fora têm feito tão bem e Céu trouxe com maestria no novo álbum (vale ouvir Electric Guest, Music Go Music, U.S. Girls, etc), começa “A Nave Vai”, suingada no baixo e na bateria. Uma música de amor gostoso. Com o fim da canção, Céu agradece todo mundo, assim como a banda. É a famosa pausa, que, nesse caso, foi rápida e curta. Pupillo volta para a percussão instalada ali exclusivamente para a próxima música, enquanto o guitarrista David vai para a bateria. O coração devastado de “Sangria” é entoado, quando o show já bate seus 80 minutos de duração.

Como se já não bastasse numa noite tão poderosa como era, ainda restava um momento de catarse final, que veio com “10 Contados”, também aqui mais numa batida do álbum novo, mas sem perder os elementos característicos e mais ingênuos da canção original. A voz de Céu é um absurdo e só melhora com o tempo. Essa música parece que ganha uma outra leitura no show, um pouco mais seca e irônica, mas ainda com doçura, cheia de nuances em cada verso romântico cantado. Pra fechar, o reggae volta com tudo em “Sonâmbulo”, num aviso que tomei como pessoal (ah, o narcisismo) do show de Russo Passapusso que logo mais viria.

Ao final, a plateia aplaudiu com força, vontade, sem parar, agradecendo o calor emprestado de Céu na gélida noite de sexta-feira. A chopperia estava quente e gostosa, um verdadeiro ninho de amor em homenagem ao excelente álbum e imperdível show de Céu. Impressionante.

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02/05/2016

Sou pesquisador e escrevo resenhas de shows pagando de crítico musical porque gosto muito de música e minha verdadeira intenção era ser multi-instrumentista ou vocalista de alguma banda. O problema é que falta habilidade para tocar até campainhas mais complexas e meu alcance vocálico lembra uma taquara rachada.
Nicolas Henriques

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