Coala firma os dois pés entre os grandes festivais de música do país

05/09/2016

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Nicolas Henriques

Por: Nicolas Henriques

Fotos: Rafael Souza

05/09/2016

Festivais são importantes. Já falei vez ou outra sobre como eles conseguem agregar diversos públicos e unir, em um dia, paixões distintas e a possibilidade de vermos shows de nossos artistas preferidos numa espécie de maratona Netflix musical. O Coala vem se tornando, ano após ano, um dos mais interessantes festivais que temos, principalmente aqui em São Paulo, onde faltam grandes festivais com foco exclusivamente na nova música nacional, assim como encontramos em outras cidades (como o Bananada e o Vento, por exemplo).

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Com lotação máxima, o Coala desse ano prometia esquentar ao máximo o sábado em São Paulo, trazendo, para o mesmo dia, um line up dos melhores shows do ano, como BaianaSystem, Karol Conka e Céu. Além dos três, Lila, Silva e Cícero, com participação especial de Marcelo Camelo, completavam a lista das bandas a se apresentarem,  intermediadas por uma série de DJs especializados em uma gama de sonoridades brasileiras e tropicais.

Apesar de uma sinalização um pouco problemática para a entrada, não houve grandes dificuldades para o espaço comportar um imenso público, assim como nenhuma fila (sempre um tremendo problema em festivais) foi capaz de tirar o foco das atrações. Os banheiros estavam meio longe do palco e ficavam meio cheios entre um show e outro, mas, não é nem otimismo exacerbado de minha parte, claramente foi feita melhor disposição possível no espaço do Memorial da América Latina.

O palco centralizado estava numa posição interessante para vermos com tranquilidade todos os shows. Os telões laterais ajudavam a eliminar qualquer campo de vista prejudicado. O som, no entanto, apresentava uma ou outra falha nos graves, que saíam mais abafados. Isso foi mais sentido nos dois últimos shows, quando a necessidade parecia ser maior. Nada muito prejudicial, no entanto, uma vez que, tanto BaianaSystem quanto Karol Conka, possuem uma energia impressionante e conseguiriam levantar a plateia inteira até se fizessem um show a capella desplugado.

Quando cheguei, por volta das 16h50, estava começando, pontualmente, o show de Céu. Impecável, como já tinha descrito em outra ocasião. Realmente, ouvir as músicas de Tropix ao vivo caem tão bem quanto tocar um veludo numa noite de inverno. Perdi, infelizmente, os shows de Silva e Lila, mas confesso que estou chegando numa idade de escolha de batalhas: ou perdia os dois primeiros, ou perderia os dois últimos. Triste constatação dos anos.

Quando acabou o show de Céu, vimos Tutu Moraes soltar toda sua Santo Forte na picape, com clássicos do tropicalismo – e de um neo-tropicalismo -, levando a galera a dançar sem nenhuma preocupação. Gostoso de ver e ouvir.

Ao fim de Tutu, foi a vez de Cícero entrar. Confesso que fui muito surpreendido pelo show do carioca. Gosto muito de sua música, mas nunca tinha visto ele ao vivo. Estava esperando uma instrospecção mais tangível e  me causava certa estranheza ele estar, de certa forma, antecipando a explosão catártica do BaianaSystem. Ledo engano meu. O som introspectivo do cantor ganhou acordes mais expressivos ao vivo. Mais vivos. Mais voláteis e contagiantes. A letra, as dores, os acordes de palhaço triste, a beleza que espeta, continuam todos ali, mas agora soavam alegres, explodindo em catarse e comunhão com uma plateia que, ao meu lado, chorava ao cantar “Tempo de Pipa”. Foi bonito demais, e a entrada de Marcelo Camelo, servindo quase como um guru e padrinho para Cícero, arrepiou a todos ali. “Conversa de botas batidas”, talvez a mais cicerônica (neologismo para tentar explicar que pertence ao universo de Cícero) de todas as canções de Los Hermanos, caiu como luva, e Camelo, emocionado, também teve tempo para cantar “Hey, Naná”, da Banda do Mar. Foi bonito. Ao fim do show, o cantor do Los Hermanos ainda voltou para, no calor do momento que também vivemos politicamente, entoar um “Fora, Temer”.

Aliás, não foi apenas Marcelo Camelo que entoara gritos e mostrara a força política que a música e seus astros podem ter. Todos que ali estavam, músicos ou plateia, mostravam-se insatisfeitos com o rumo do país e faziam questão de serem ouvidos e de externarem suas dores. Com o BaianaSystem não foi diferente.

Pontualmente às 19:50, o som do DJ para. O silêncio é sepulcral. Todos esperam. Começa aquilo que mais perto poderíamos chamar de neomicareta. É uma porrada sem fim. Um martelo que fica em sua cabeça e seus labirintos lembrando da nossa necessidade de explodirmos, da força que a música tem, e de como ela pode quebrar tudo, do mais duro cimento ao pensamento mais rígido. Russo Passapusso, ao terminar “Jah Jah Revolta, pt. 2″ já emenda também um “Fora, Temer”. Mas o cantor, com sua presença que transcende seu corpo, capaz de fazer levantar mares e montanhas, como já tive oportunidade de falar anteriormente, estava com a Ira, essa com i maiúsculo, em seu poder e controle. No sentido mais literal possível, vimos um som irado, repleto de som e fúria, mas, ao contrário do sentido Shakespeariano, BaianaSystem fez uma apresentação em alta voltagem de 50 minutos que mostrou a capacidade criativa capaz de emergir da mais pura vontade de se transformar também pela ira. O que víamos ali era uma explosão dos sistemas de som, dos gêneros e estilos tidos como marginalizados, da guitarra baiana, da percussão africana, do dub jamaicano, tudo misturado no que é essa força única que a banda traz em cada show e em seu álbum, Duas Cidades. De fato, após ver o BaianaSystem ao vivo, é difícil, difícil demais, conseguir sentir a mesma vontade de explodir, de se sentir com a energia de um adolescente novamente, dançando e suando sem parar, em qualquer outro show. Russo comanda a plateia tal qual um Bell Marques endemoninhado, levando para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita, para onde bem entender suas vontades e suas danças. É um tremendo absurdo. Assim como é acompanhar as transições de uma canção para outra, que mais parecem fazer tudo parte de uma única música: vamos de “Lucro Descomprimido” para “Afoxoque” em um átimo de segundo, quando, sem menos percebermos, voltamos para a música inicial, que se emenda com “Bala na Agulha”, “Duas Cidades”, “Dia da Caça” e aí por diante. É uma explosão auditiva num frenesi tão contemporâneo que poucas vezes você consegue sair de um show se sentindo tão renovado. O suor do show do Baiana purifica e te faz mais novo. É isso.

Poderia ficar aqui explicitando cada música, cada nuance do show quase impecável de Russo e companhia. Na verdade, por conta da banda, o show foi impecável, perfeito. Estava no nível de suas apresentações do Sesc, que foram um absurdo, coisa de outro mundo mesmo. O ponto fraco, nesse momento, se dá pela experiência incompleta do show, tanto pela falta de tempo (50 minutos é pouquíssimo), assim como o palco de um festival, geralmente mais fixo e sem grandes possibilidades artísticas, perde a experiência visual que é acompanhar também o show do BaianaSystem, com vídeos incríveis e seus bonecos e máscaras. A experiência de BaianaSystem ao vivo deveria ter sido preservada, mesmo que sacrificando o palco e sua unidade durante todos os shows.

Praticamente me contradirei agora, pois, enquanto a experiência de ouvir BaianaSystem se faz uma coisa do outro mundo quando completa com seu visual, Karol Conka ruma ao contrário. Acho sintomático, e muito importante, termos as duas atrações encerrando o festival. É a completa certeza de que os sons periféricos, marginalizados, que, por muito tempo, eram tidos como ruins, de baixa qualidade, “coisa de pobre”, ganhando os ouvidos e seu devido respeito. É a forma de mostrar que a cultura não é uma coisa erudita que vem da elite para as massas, mas que, muito mais verdadeira, faz o caminho contrário. Fiquei para acompanhar mamacita, a musa máxima Karol Conka. É impressionante, mas quando a pessoa tem poder, carisma, aquela força enigmática que não se sabe de onde vem, que alguns chamam de elã vital, o show pode ser simples que funcionará perfeitamente. Com uma única picape às suas costas, Karol mobiliza uma plateia inteira, com seu tombamento e suas letras de empoderamento completo. Começando com “É o Poder”, capaz de mover multidões, e terminando com “Tombei”, que coloca a mesma multidão pra quebrar tudo no chão. A marrentice de Karol é maravilhosa. Ela se autoproclama marrenta, e passa essa sensação de puro poder e de saber que se é incrível também como forma de luta. É, através da marra, que a artista se mostra resistente, que se faz ouvir e traz para todos a importância de seu som. Não é uma questão de humildade cristã que resolverá anos de preconceito no país. É preciso ter força. E mostrá-la. Karol faz isso com maestria.

Sempre pontual, com muitos mais trunfos do que problemas, o Coala foi sem dúvida uma ótima experiência. É um festival necessário que precisa continuar se aprimorando e entregando o que é o som novo do país, mas, mais que isso, como está e pulsa a nossa cultura. Massa.

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05/09/2016

Sou pesquisador e escrevo resenhas de shows pagando de crítico musical porque gosto muito de música e minha verdadeira intenção era ser multi-instrumentista ou vocalista de alguma banda. O problema é que falta habilidade para tocar até campainhas mais complexas e meu alcance vocálico lembra uma taquara rachada.
Nicolas Henriques

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