Resenha | David Byrne passa de todos limites no show “American Utopia”

23/03/2018

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Rafael Rocha

23/03/2018

O primeiro som que se ouve é o de grilos. Um cricrilar contínuo harmoniza o ambiente ressoando como um mantra enquanto o palco do Pepsi On Stage está sendo finalizado. Por enquanto, só há nele uma cadeira e uma mesa onde está posta a réplica de um cérebro. Eis que entra David Byrne.

Ele se senta, se ajeita na cadeira. Quando começa a cantar “Here”, a última faixa do seu álbum mais recente, American Utopia (2018), ele se ergue, pega o cérebro, e se aproxima da plateia enquanto a banda está toda do lado de fora do palco. Ou melhor, do lado de dentro, pois o palco está circundado por cortinas de fios metálicos que permitem que o público veja a parte interna do cenário onde se desenrolaria um dos maiores shows que Porto Alegre recebeu nos últimos anos.

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Logo ficou claro que a proposta de Byrne na American Utopia World Tour é nada menos do que revolucionar completamente a noção de o que é um show. Aqui, o público não assiste a mera apresentação ao vivo das músicas do seu novo disco e alguns sucessos de outras fases – Byrne transforma o som em parte de um espetáculo audiovisual artístico extremamente complexo.

Foto: Rafael Rocha

Pautado por uma verve teatral, o show é, do início ao fim, uma aula de iluminação de palco e performance. Quando os músicos atravessam as cortinas e se juntam ao ex-líder do Talking Heads, percebe-se que todos estão vestidos com o mesmo terno prateado que Byrne veste e com o mesmo microfone de orelha que ele. Esse detalhe é fundamental: em função disso, não há tripés, cabos, ou qualquer outro objeto que impeça a mobilidade dos músicos. A banda é, ao mesmo tempo, um corpo de baile impressionante, que passa todas as músicas interagindo com Byrne como personagens do enredo de cada canção. Ora eles formam um paredão imponente e opressor, ora dançam em uma doce ciranda, ora se mexem como robôs frenéticos, ora gingam como em uma roda de capoeira.

A segunda música é “Lazy”, parceria de Byrne com X-Press 2 de 2002, depois vem “I Zimbra”, do disco Fear Of Music (1979), e “Slippery People”, do Speaking in Tongues (1983), ambas do Talking Heads. Na sequência, eles tocam “I Should Watch”, que Byrne lançou com St. Vincent em 2012, e “Dog’s Mind” e “Everybody’s Coming to My House”, do American Utopia. “This Must Be the Place (Naive Melody)” e “Once in a Lifetime”, do Talking Heads, chegam em seguida para alimentar os anseios dos fãs da banda clássica.

Quem é fã de Talking Heads não tem do que reclamar. Falta “Psycho Killer” no set? Falta, mas não faz falta. O espetáculo, com seus constantes jogos de luzes e danças e interpretações cênicas, impacta qualquer um a ponto de não ser possível pensar em nenhum retoque. E, para o público brasileiro, o show desperta ainda um certo orgulho patriótico quando se nota que a música de Byrne é completamente influenciada pela musicalidade de nosso país. Dentre os percussionistas, havia três brasileiros (um deles chegou a fazer um rap em português em “Toe Jam”, parceria de Byrne com Dizzee Rascal e Fatboy Slim) e muitos instrumentos típicos da música brasileira foram trazidos para cima do palco, como o pandeiro, o triângulo, o berimbau, o xequerê, o atabaque e a cuíca. Tudo isso formava uma massa percussiva fortíssima, que apimentou o arranjo original de músicas como “Doing The Right Thing”, “I Dance Like This”, “Bullet” e “Every Day Is a Miracle”, do American Utopia.

O show segue em um clima de dançante com “Like Humans Do”, do disco Look into the Eyeball (2001) e “Blind” e “Burning Down The House”, clássicos do Talking Heads. Aqui, é a hora da banda sair do palco e provocar o pedido por um bis, que logo vem com “Dancing Together” (parceria com Fatboy Slim de 2010) e “The Great Curve” (do Talking Heads). Após agradecer à plateia, todos saem do palco de novo, mas logo voltam.

A última música, David Byrne avisa, é uma adaptação de “Hell You Talmabout”, da Janelle Monáe, feita para os shows no Brasil. Aqui, a banda toda homenageia as vítimas da violência no país em um coro carregado de dor acompanhado apenas por instrumentos de percussão. Em meio à batucada, os músicos cantam em português: “Diga o nome dele”, “diga o nome dela”, e então citam os nomes de várias pessoas, incluindo Marielle Franco e Amarildo de Souza.

A interpretação caiu como uma bomba mantendo todos de boca aberta, foi a forma perfeita de encerrar um espetáculo que eleva em muito a vivência usual de assistir a um grupo de músicos ao vivo. Nos dias 23/3, a American Utopia World Tour segue no Lollapalooza, em São Paulo; 26, em Curitiba; 28, no Rio de Janeiro; e 29, em Belo Horizonte. Quem for assistir, prepare-se. Essa é uma experiência que faz você pensar: por que eu nunca tinha visto um show assim?

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23/03/2018

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Ariel Fagundes

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