Resenha | Cores, nomes, brasis: Caetano, coco clínico

28/10/2021

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Por: Danichi Mizoguchi e Alexandre Kumpinski

Fotos: Fernando Young/Divulgação

28/10/2021

“Fino menino me inclino pro lado do sim”
(Caetano Veloso, “Rapte-me Camaleoa”)

Então era mesmo aquilo que era.

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“Anjos Tronchos”, o primeiro single de Meu Coco, ao menos em alguma medida, colocava em dúvida aquilo que Caetano Veloso anunciara em sua live de Natal como sendo o tom do disco que viria em breve: o amor e os amores. Atento à ponta mais fina e insidiosa do capitalismo contemporâneo, o que o compositor cantava na música era a força voraz que irradia do Vale do Silício e que nos arrasta a todos ou quase todos em uma governamentalidade algorítmica da vida: o controle ativado nos e a partir dos mais minimíssimos grãos, posts vis que podem matar, os “anjos já mi, ou bi ou trilionários” que “comandam sós seus mi, bi, trilhões”, o horror.

É certo que todo esse cenário sombrio estava lá. Todavia, com um pouco de esforço, era possível perceber que não era só isso. Afinal, quando não somos otários, notamos que nas brechas do mesmo diagrama que faz palhaços líderes brotarem macabros, concretamente, há também poemas como jamais – e essa mesma máquina sinistra permite que escutemos Shönberg, Webern, Cage e que uma compositora como Billie Eilish faça tudo o que já fez do próprio quarto e acompanhada tão somente do irmão. Com um pouco de esforço, era possível perceber que a canção era sobre o amor: não só o amor fati de quem se encanta por tudo aquilo que lhe acontece, mas também o amor radicalmente político de quem, haja o que houver, antevê as aberturas de criação onde quer que estejam e nos empurra delicadamente na direção de uma beleza pura ou impura qualquer. 

Nesse sentido, a breve menção a “Alegria, Alegria” presente na letra de Anjos Tronchos” insinua algo que não passa incólume. É certo que essa canção de 1967, apresentada no 3º Festival de Música Popular Brasileira, inaugura, junto com “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil, uma espécie de perspectiva musical inédita na história do Brasil. Aquém e além dos nacionalismos de esquerda e de direita, a tomada antropofágica assumida e atualizada pelos dois baianos naquele momento fazia caber juntos elementos antes incomponíveis: Liverpool e Caruaru, a guitarra elétrica e o berimbau, as raízes do Brasil e a modernidade do mundo.

Essa não é uma tarefa fácil – e, lógico, não se faz sem medo e coragem. Parece ser exatamente isso que as imagens da apresentação de Caetano no festival atestam. Numa metamorfose que representava explicitamente aquilo que acontecia no palco do teatro da Record, a expressão crispada e tensa do início do número se dissipa aos poucos com os aplausos e incentivos da plateia até se tornar os braços abertos e o sorriso despudorado de quem repete, confiante, o estribilho da canção: eu vou, por que não? Trata-se de uma das cenas mais bonitas e emocionantes da história da nossa música – porque essa pergunta e esses gestos traziam consigo a abertura e a afirmação de um campo experimental que ainda não havia aparecido com vigor entre nós, mas também porque hoje, passados mais de cinquenta anos, já sabemos tudo o que veio depois.

Depois veio o AI-5, o recrudescimento da ditadura, uma fake news veiculada por Randal Juliano de que Caetano e Gil haviam cantado o hino nacional ao ritmo de Tropicália, a acusação de comunismo e de desvirilizar o país, a prisão, a tristeza e o exílio em Londres. Depois vieram todos os discos e todas as músicas desse que é um dos artistas mais importantes do país e do mundo, depois veio o retorno repaginado daquilo tudo que assolou o Brasil por 21 anos. E, hoje, aquilo que, em 1967, se fazia como interrogação aberta, se transmuta em afirmação explícita e peremptória ao finalizar o verso-menção de “Alegria, Alegria” em “Anjos Tronchos”: eu vou, por que não, eu vou, por que não, eu vou.

Não parece trivial que tudo isso tenha retornado na primeira canção divulgada do novo disco de Caetano Veloso. Meu coco foi lançado a exatos 1025 dias do início do governo de Jair Bolsonaro. Como se já não bastasse tudo aquilo que toca a República com a ocupação do centro de poder pela versão miliciana de nosso fascismo tropical, àquele momento somávamos 21.697.341 casos de Covid-19 e 604.679 pessoas mortas em função da pandemia – em números que, diga-se, o governo não registrou. A economia em frangalhos e a alma desossada de quem já há um ano e meio cumpre minimamente as direções de isolamento social encimam a longa lista de retrocessos, desmandos e violências que temos experimentado nos últimos tempos. Não é preciso uma sensibilidade especialmente extraordinária para perceber que vivemos tempos tristes: são quantidades, são corpos, são vidas, são fatos.

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Quando as coisas se partem como se partiram no Brasil recente, tomar partido não parece uma tarefa difícil. Em um mundo sem meios-termos, ficar do lado de cá ou do lado de lá da partilha ética, tanto para uns quanto para outros, é um movimento quase evidente. Tomar posição, ao contrário, não é um gesto simples. Mais do que se posicionar nesta ou naquela metade do tabuleiro macropolítico, tomar posição é situar-se de um modo mais delicado diante do circuito dos afetos em que estamos imersos: é afrontar aquilo de que nos aproximamos, é se aproximar daquilo de que nos afastamos, é tocar aquilo que estaria fora de alcance, é ser aquilo que existe aquém e além de nós. Tomar posição é desejar algo, tomar posição é exigir algo: fincar os pés no presente, mirar o passado com um binóculo invertido e visar um futuro que virá porque nós vimos. Se tomar posição é também reafirmar nossas urgências e mantê-las vivas para que possamos habitar e atravessar a cotidiana exceção de um presente áspero e turvo, Meu Coco é, então, um disco de tomada de posição – e, como toda tomada de posição real, opera um gesto nada trivial.

É difícil crer que não haja cenas de pesadelo no coco de Caetano hoje: a irradiação da degradação da condição humana no nosso país de hoje – e de ontem, e de anteontem, e de anteanteontem – deve chegar a todos que, bem ou mal, conectam-se àquilo que teimamos em ser. Sim: está “tudo esquisito, tudo muito errado”, e o menino “ouviu e já comentou que o vovô tá nervoso, tá nervoso o vovô” – como, afinal, estamos todos. Diante de tudo isso que estamos vivendo, não seria de se estranhar se um álbum que canta as coisas que passam pela cabeça do compositor contivesse uma sequência de amostras do asco e da exasperação que determinados aspectos da vida brasileira tendem a produzir nele e em nós: Podres poderes reloaded, O cu do mundo reloaded, Haiti reloaded. 

Mas acontece que o coco de Caetano não é qualquer coco em nosso vasto coqueiral. Não é de hoje que ali se monta uma espécie radical de antena que cumpre de modo muito específico a dupla função que toda antena que se preze comporta: receber e irradiar ondas eletromagnéticas. Todavia, entre a recepção e a disseminação – e eis a tomada de posição mais bela e mais dificultosa – o que se dá é um desvio ético, estético e político: a onda que chega não é a mesma que sai. Muito além da segurança racional de um eu que pensa e logo existe protegido de todas as intempéries mundanas, algo existe, pensa e se cria naquele coco: o coco de Caetano é coco Brasil. 

A emanação que ora vem desse coco já se mostra na primeira das canções – homônima, aliás, ao disco. Aquilo que no single era brecha agora vira uma louvação luminosa dessa nação “mulata, híbrida, mameluca e muito mais cafuza do que tudo mais”, uma “nação grande demais para que alguém engula” e que, com a “vitória do Espírito Santo” que podemos ser, ainda fará o mundo feliz. O que surge já de saída são Brasis contracoloniais nietzscheanos e anti-kleinianos, “aquém e além do seio do bem e do mal”, nos quais “superaremos câimbras, furúnculos, ínguas” e que, com junções estranhas e impossíveis de serem totalizadas, “católicos de axé e neopentecostais” “embuarcados na arca de Zumbi” e de Zabé virão virar a onda tenebrosa de nossa história.     

Porque o nosso coco emite o canto como antídoto contra os desencantos e ressentimentos e contra o que porventura queira “esculachar com a nossa história” de muito amor, muita luta, muito gozo, muita dor e muita glória, como versa a faixa “Não vou Deixar”, num aviso afirmativo de teimosa resistência não por acaso arranjado com a potência fresca e experimental (e sempre plena de profunda corporalidade) de um funk carioca. Porque sabe cantar – e porque sabe de “alguns que sabem mais, muito mais” –, Caetano não vai deixar que se desminta “a nossa gana, a nossa fama de bacana, o nosso drama, a nossa pinta” e tudo mais que é o nosso mais belo legado: a plenitude de teimosias e insistências de um país que, a despeito do genocídio indígena, da escravidão negra e da renitência ditatorial, segue teimando em querer brilhar e dar certo.

Num contraespelho da afirmação extraída de “Alegria, Alegria”, o que vem é uma negativa firme: “Eu grito e repito: eu não vou!”. Na tríade de enunciações combinatórias em que a primeira pessoa do singular e o verbo ir forjam diversos sentidos – “eu vou, por que não? por que não?” (Alegria, Alegria”) “eu vou, por que não, eu vou, por que não, eu vou” (“Anjos Tronchos”) e “eu não vou” (“Não vou Deixar”) – é sempre de uma posição específica que se trata: a experimentação, a afirmação, o limite. “Eu não vou deixar” é a enunciação de quem recusa a submissão à opressão à moda do grito de guerra antifascista, antirracista e feminista “não passarão”, mas que aparece aqui enriquecido de um eu ativo, colocado, insidioso na ação de não deixar acontecer. Fina canção política, fina canção de protesto.

Há algum tempo, Caetano deu uma entrevista em que afirmava que o Brasil daria certo porque ele queria. Mal lida, essa frase pode indicar um otimismo exageradamente narcísico e prepotente de quem crê que tudo pode. Todavia, mais do que isso, trata-se de um otimismo baseado em um compromisso de quem quer que algo distinto aconteça no Brasil – e, aqui, esse compromisso coletivo comum assume a força de uma negativa afirmativa que todos precisamos entoar juntos: nós não vamos deixar – e, “apesar de você” e de todos que reincidem em destruir e entristecer o país, o sonho seguirá tendo cor.

Talvez seja preciso, para isso, perseguir a insinuação que certa vez Gilberto Gil indicou: o Brasil vai dar certo se o samba também der – porque, de fato, “sem samba não dá”. Sem samba e sem tudo aquilo que é entre nós o legado tropicalista mais moderno: funk, trap, pagodão, sambanejo ou pagobrejo – não só porque sabemos cantar, mas porque sermos pardos nessa Americáfrica, vivendo “entre a miséria e a mágica” é necessariamente sermos capazes de encontrar a saída e virar o cristal dessa noite luzidia de tanto atrito e treta em que o mundo cisma através da pulsação agregadora e emancipadora de um samba e de seus filhos mais ou menos bastardos.

Com Caetano, sabemos que contra as polarizações ressentidas das políticas que atualmente nos regem, somos todas essas cores: mulatos híbridos, mamelucos, cafuzos, chineses, negros, morenos, magentas como ciclâmens, cobreados, greis, pretos, rosas, ianomâmis, lusos, bantos, sul, olho azul. Se é verdade que nossa cruel miscigenação angulada principalmente no triângulo entre a Costa de Mina, a quina da península ibérica e os litorais do nordeste existe porque os colonizadores misturaram violentamente seus homens brancos às mulheres indígenas e africanas, também é verdade que talvez seja justamente dela que, necessariamente, precisaremos extrair nossa força futura. Se essa mesma miscigenação não é índice nem de degradação nem de utopia genética, muito menos de democracia racial, ela quiçá indique a necessidade de assunção de uma tarefa política e de um severo dever que “sem samba não dá” para realizar. 

Se em toda parte nas Américas a gente encontrou meios de enfrentar, às vezes precariamente, mas sempre com tenacidade, as práticas mais hediondas de racismo, o samba é uma das mais belas pérolas desse acervo de luta, criação, localização e insistência genealógica de que quase todos somos herdeiros. Contra toda a mediocridade estética e existencial, todas as cores e todos os nomes postos lado a lado numa transversal do tempo nos lembram justamente, como todo samba bom, que somos mais do que tudo isso que está aqui: Simone Raimunda, Janaína, Leila Diniz, João Gilberto, Irene, Zabelê, Amora, Amon, Noel, Caymmi, Ary, Bethânia, Nara, Elis, Pixinguinha, Jorge Ben, Djavan, Wilson Batista, Jorge Veiga, Carlos Lyra, Milton Nascimento, Gil, Gal, Tincoãs, Noel, Tom, Chico, Peri, Ceci, Ganga Zumba, Anavitória, Marília Mendonça, Ferrugem, Glória Groove, Maiara e Maraísa, Yoùn, Djonga, Rogério, MC Cabelinho, Baco Exu do Blues, Duda Beat, DJ Gabriel do Borel, Hiran, Majur, Tz da Coronel, Simone e Simaria, Leo Santana, Didá, Olodum, Carlinhos Brown. Nomes do passado, nomes do presente, nomes do futuro do país, como o do neto Benjamim – “um ser que a si mesmo se nina” – ou como Enzo Gabriel, o mais registrado em cartórios em 2019 no Brasil e a quem Caetano, como um pai, benze e pergunta “qual será teu papel na salvação do mundo?”, lembrando à geração que vem que ainda há muita beleza e muita luta a se forjar aqui em nossa cuia austral.

***

Clínica é um termo cuja origem vem de klinikós, que deriva de outras duas palavras gregas: kliné (leito) e klinó (inclinar, debruçar-se). Significa, de modo simples, o movimento de acolhimento que o médico faz ao se debruçar sobre o leito do doente. Se não pode haver clínica sem acolhimento, não é menos certo que a clínica não pode se contentar tão somente com esse gesto. Do mesmo verbo klinó deriva uma palavra latina que amplia o sentido da tarefa: clinâmen. Na cosmogonia de Epicuro, clinâmen é uma pequena inclinação que desloca os átomos em sua queda no vazio. É nessa tendência à inclinação que os átomos se encontram, se agenciam e operam como intercessores uns dos outros. Sob esta acepção, a clínica é simultaneamente a inclinação sobre o leito do doente e a produção de uma inclinação: acolhimento e desvio – ou, ainda melhor, acolhimento do desvio em uma vida.

Meu Coco é um disco clínico – e justamente quando mais precisamos. Ele se debruça sobre um país doente, ele se choca com o país doente, ele desvia o país doente, ele vê e faz ver um país mais saudável, ele erotiza a nossa vida tão seca, ele nos empurra pra vida e nos faz ir para outro lugar, lá onde as almas se chamam e os corpos se amam. E qual seria a função do pensamento hoje se não criar outras veredas distintas daquelas por que temos andado? Para que compor senão para perceber, sentir, pensar e agir diferentemente? Para que doze canções se elas não fossem capazes de inverter a virulência mortífera que a sobreposição das epidemias política e biológica já tanto tem produzido em nós e promover uma inversão de vetor – operando, assim, uma erótica de um contágio que ative a lembrança de que, afinal, amanhã vai ser outro dia?

Quando terminamos de ouvir Meu Coco, talvez também possamos ver e pedir “dias de outras cores, alegrias para mim, pro meu amor e meus amores” – incluído aqui o Brasil. Crescendo no escuro, como um saudável anticâncer alimentado por leites de cocos-Caetano, nosso país talvez possa finalmente voltar a ser uma “bomba luminosa” prestes a explodir mais uma vez. 

Vai chegando que a gente vai chegar – a gente chega lá.

Que bom que Caetano sabe cantar.

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28/10/2021

Danichi Hausen Mizoguchi é professor e escritor. Alexandre Kumpinski é cantor e compositor.

Danichi Mizoguchi e Alexandre Kumpinski