PicniK Festival 2022 | Dias de música, afeto e luta no Distrito Federal

29/06/2022

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Ariel Fagundes e Luara Baggi/Divulgação

29/06/2022

O sol brilhava na capital do Brasil quando começou a programação do PicniK Festival 2022, no último sábado (26). Durante o final de semana, até domingo (27), a Praça Portugal, em Brasília (DF), recebeu um encontro intenso de música, gastronomia, moda, design, medicina alternativa, teatro e atividades circenses, em uma grande experiência de economia criativa. Mais de 20 atrações musicais se apresentaram nos dois palcos do evento, cujo line-up reuniu grandes nomes da cena nacional independente sem deixar de dar visibilidade para os novos artistas da cidade (confira abaixo). 

Começando à tarde e com entrada gratuita, o PicniK mostrou-se um exemplo de rara pluralidade, oferecendo uma programação capaz de contemplar, em perfeita harmonia, públicos muito diversos. Circulando pelo amplo espaço da praça, famílias inteiras, com crianças pequenas e seus cachorros, dividiam o espaço com casais de todas as formatações possíveis. Sem nenhum sinal de atrito, conviviam jovens de visual gótico, manos do rap e seus skates, rastafáris fazendo fumaça, emos, indies, playboys e patricinhas, e grupos de amigos que pareciam ter chegado diretamente dos anos 1970. 

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“Estar vendo o público se conectando com os artistas, mostrando que é possível, sim, pessoas diferentes interagirem em harmonia é uma lição de horizonte muito importante nesse momento que a gente está vivendo de polarização. O que a gente está querendo mostrar aqui é que pessoas diferentes conseguem conviver em harmonia. E não tenha dúvida de que a arte, a cultura, é o melhor caminho pra gente conseguir isso”, diz Miguel Galvão, idealizador do festival, que está comemorando 10 anos de história.

Além do palco principal e do divertidíssimo palco Magicbus (montado, sim, dentro de um ônibus adaptado), que receberam mais de 20 atrações musicais, uma enorme praça de alimentação garantia opções variadas para matar a fome, de risoto a acarajé, de churrasquinho à pizza, passando por hambúrguer, churros, pastel, sanduíches, empanadas, incluindo todo um setor dedicado a comidas veganas. Havia ainda a Área Zen, com atividades como yoga e massagem de som, a Mini Arena, que concentrava peças teatrais e apresentações circenses, e o Espaço Cirquis Acroesportes, dedicado à prática de acrobacias para adultos e crianças.

Como se não bastasse, uma grande feira de expositores reuniu toda uma rede de comerciantes locais, que alugaram um espaço dentro do evento, fazendo do PicniK um polo de desenvolvimento de economia criativa. Lá, era possível adquirir roupas, acessórios, discos de vinil, cosméticos naturais, arte indígena, quadros, utensílios de tabacaria e até mesmo peças de decoração para a casa. “Temos aqui cerca de 180 empreendedores criativos diferentes, então, a gente quebra um pouco essa relação de show x produtor x público. A gente bota mais uma parte, que são esses empreendedores criativos. É esta ideia da troca: eles nos ajudam a pagar as contas, os artistas ajudam a endossar e a gente faz uma troca muito construtiva”, explica Miguel Galvão.

(Foto: Luara Baggi/Divulgação)

A programação musical começou com Os Gatunos no Magicbus e, do outro lado da praça, no palco principal, Pedro Alex. Pedro é uma peça importante do cenário brasiliense contemporâneo, pois, além de ter um consistente trabalho solo, que flua entre o indie, o soul e o pop, está envolvido na produção musical de artistas como a banda Puro Suco (que foi um dos destaques do PicniK, voltaremos a eles mais adiante). 

O Magicbus seguiu, ao longo do dia, abrindo as portas para artistas emergentes, como Aurora Venus, Cachalote Fuzz, Moscoles, Oxy e Amnesiac Kid, todas do Distrito Federal, exceto a Cachalote Fuzz, de Uberlândia (MG). Infelizmente, a banda brasiliense Ozu, que também estava prevista para tocar, precisou cancelar seu show de última hora devido a um integrante ter positivado para a Covid. 

Já o palco principal focou a maior parte de sua programação em nomes consagrados. Por volta das 16h30, o casal paulistano Anelis Assumpção e Curumin apresentou seu novo show, em que ambos dividem o repertório. Logo após descerem do palco, eles contaram à Noize que esse projeto começou na fase aguda da pandemia, quando os encontros presenciais ainda não eram possíveis: “Começou com lives, o que é uma coisa curiosa de se pensar, a gente conseguiu tocar para pessoas em lugares diferentes do mundo ao mesmo tempo, foi uma experiência muito legal. Agora, na retomada, a gente pensou: ‘Ah, vamos tocar um pouco ao vivo esse show’. Hoje, foi o nosso terceiro show para o público, e cada um foi diferente”, diz Anelis Assumpção.  

(Foto: Ariel Fagundes)

No repertório, ela e Curumin, na voz, violão, bateria e percussão, e Anelis, voz e percussão, intercalaram composições de vários discos, em formato de trio, acompanhados pela baixista Lana Ferreira. De forma muito homogênea, misturaram-se músicas como “Mergulho Interior”, de Anelis, “Mistério Stereo”, do Curumin, “Caroço”, de Anelis, “Parta, Ferro, Barro”, do Curumin, e “Eu Gosto Assim”, do álbum Anelis Assumpção e Os Amigos Imaginários (2014). “Eu fiquei enchendo o saco da Anelis: ‘Vamos tocar aquela que eu gosto”, “eu não aguento mais tocar aquela!”, “ah, mas é tão legal, eu fiz um violão tão bonita pra ela” (risos). Tem várias assim”, conta Curumin. 

Depois, veio o show de Dessa Ferreira e Ìdòwú Akínrúlí, alterando a ordem inicial, que previa que essa apresentação fosse antes da de Anelis e Curumin. De forma sensível e com forte ênfase percussiva, a cantora, guitarrista e percussionista se apresentou ao lado do músico nigeriano, que cantava e tocava bateria e percussão. Em determinado ponto, convidados especiais, como a rapper Thabata Lorena, chegaram para somar à formação. Foi uma apresentação bonita e uma reverência à ancestralidade negra do Brasil.  

Dessa Ferreira (Foto: Ariel Fagundes)

Em seguida, foi a vez da grandiosa Luedji Luna subir ao palco do PicniK sendo ovacionada pela plateia. A cantora baiana montou o repertório baseado, em sua maior parte, nas faixas do seu álbum mais recente, Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água (2021), e era evidente a emoção do público a cada música tocada. Reluzente, com seu vestido dourado, Luedji promoveu um ritual sonoro, feito para dançar, chorar, rir, suar, lavar a alma. “Votem certo! Fiquem vivos e vivas. Se cuidem”, pediu a artista antes de se retirar glorificada como a diva que de fato é. A salva de palmas logo se transformou em um coro de repúdio ao presidente Jair Bolsonaro, algo que foi recorrente ao longo de todo o evento, assim como os coros de apoio à campanha presidencial de Lula.

Luedji Luna (Foto: Ariel Fagundes)

A atração seguinte foi a Academia da Berlinda, de Olinda (PE). Se os shows anteriores já haviam inflamado os ânimos da multidão que, a essa altura, já lotava o espaço inteiro da praça, a banda seguinte tocou fogo de vez. Com sua sonoridade única, que une o reggae e o rock à cumbia e ao forró, a Academia da Berlinda transformou o evento em um baile irresistível, botando milhares de pessoas pra dançar ao som de sucessos como “Yayá”, “Nêgo Nervoso” e “Dorival”. Nesta última, inclusive, duas fãs invadiram o show e cantaram com a banda, que não demonstrou constrangimento algum, pelo contrário, até se divertiu com a cena inusitada. Pura simpatia, o vocalista Tiné desceu algumas vezes do palco para cumprimentar o público. “Que energia, Brasília!”, gritou Tiné a certo ponto.    

Academia da Berlinda (Foto: Ariel Fagundes)

O último show de sábado foi o da também pernambucana Karina Buhr, que chegou acompanhada de Regis Damasceno na guitarra, Mauricio Badé na percussão e Charles Tixier nas programações eletrônicas, músicos que participaram de Desmanche (2019), seu disco mais recente. Deste trabalho, eles apresentaram faixas como “Nem Nada”, “Lama”, “Amora”, “Filme de Terror”, mas, por exemplo, teve também espaço para “Esôfago” e “Pic Nic”, do disco anterior dela, Selvática (2015). 

“Acaba que o Desmanche foi no final de 2019, aí quando pegou forma de show e ia começar a circular, parou, né? E quando a gente foi fazer agora, eu dei uma ressignificada no show, peguei umas coisas de shows antigos, que a gente fazia com baixo, bateria, duas guitarras, trompetes, e botei pra esse formato. E aí foi uma descoberta botar umas músicas nervosas nesse formato menor. Tá sendo massa isso, juntar Desmanche com o nervosismo de antes, que eu tô nervosa de novo. Eu tinha me acalmado mais no Desmanche e agora fudeu (risos)”, disse Karina Buhr à Noize pouco antes de subir ao palco.  

Realmente, seu show não teve nada de calmo, pelo contrário: foi uma explosão catártica de beats e batidas fortes de alfaia, acompanhados de guitarras ruidosas e letras enérgicas. Sintética e orgânica, indo do punk e à pistinha de dança, a música de Karina foi um fechamento e tanto para a primeira noite do festival. 

Karina Buhr (Foto: Ariel Fagundes)

No domingo, desde o começo do dia, era evidente que o festival estaria ainda mais cheio do que no sábado. O Magicbus abriu a programação com O Cientista Perdido, projeto do artista Rodrigo Saminez, que investiga sonoridades do indie rock, lo-fi e synthpop. Na sequência, veio a sensível Pratanes, nome artístico da cantora e compositora Agnes Magalhães, autora do EP Salve, Rainha! (2022). Eles, assim como a banda Maria e o Vento, que se apresentou mais tarde no mesmo palco, são todos novos nomes da música de Brasília que merecem ser descobertos por um público mais amplo. 

(Foto: Luara Baggi/Divulgação)

Mas, antes da Maria e o Vento, veio a também brasiliense Puro Suco, que realizou um show bombástico. Sendo a única atração especificamente de rap presente no festival, o grupo já se destacaria por si só, mas a apresentação também chamou atenção pela grande quantidade de pessoas que estava lá cantando em uníssono músicas como “Bom Dia, Vietnã”. “O motivo pra gente estar aqui é o rap, a música. Sem glamour”, bradou no microfone Prs, o Peres, um dos membros da banda. 

Puro Suco (Foto: Ariel Fagundes)

Ao cair da noite, o Magicbus, que se manteria até o final do evento absolutamente lotado, recebeu a paulistana YMA, outro destaque desse palco. Trazendo composições de diversos momentos de sua carreira, como “Sabiá”, single de 2017, e “Colapso Invisível”, presente no álbum Par de Olhos (2019), ela contemplou os seus fãs brasilienses e certamente conquistou vários outros. Algumas falhas no som durante a sua apresentação não chegaram a ofuscar o brilho da artista. O mesmo pode ser dito de Rogério Skylab, que, ao apresentar instigantes sucessos como “Tem Cigarro Aí”, entregou um show visceral, ruidoso, catártico. Um grande encerramento para este ônibus sonoro. 

YMA (Foto: Ariel Fagundes)

Já o palco principal começou, com um certo atraso, a sua programação com a banda local Aguaceiro, que chamou Pedro Alex para participar como convidado especial. O projeto é uma reformulação da antiga banda Augusta e percorre um caminho que une elementos do rock alternativo à música popular brasileira, sem deixar de acrescentar ao som algumas pitadas funky de um groove setentista.  

Era cerca de 17h quando o Pato Fu começou um dos shows mais aguardados do festival. A ideia era homenagear os discos célebres Música de Brinquedo (2010) e Música de Brinquedo 2 (2017), nos quais a banda relê canções icônicas tão diversas quanto “Ovelha Negra”, “My Girl”, “Primavera”, “Livin’ la Vida Loca” e “Severina Xique-Xique”, tocando com instrumentos de brinquedo. Com bonecos sendo operados no fundo do palco e também pela vocalista Fernanda Takai, o Pato Fu construiu um universo lúdico interessantíssimo. Além disso, era impossível não cantar junto praticamente todas as músicas do show, pois fazem parte da memória coletiva de boa parte da plateia. Do seu repertório autoral, foi incluída “Depois”, como um presente para quem é fã da banda. 

Pato Fu (Foto: Ariel Fagundes)

O primeiro show da noite foi a apresentação inédita, criada a convite de Miguel Galvão, da banda Bike com o guitarrista Guilherme Held. O grupo e o músico estão desenvolvendo uma parceria profunda desde que Held foi convidado para produzir e mixar o quinto disco de estúdio da Bike, agora em fase de mixagem.  

“Eles me procuraram pra produzir o disco e surgiu uma química. Isso acabou culminando em parcerias musicais, e o Miguel teve essa ideia ótima de convidar os dois projetos como sendo um. Pra mim, foi uma honra esse convite da Bike, uma banda que eu respeito tanto. É um desafio e uma honra produzir e mixar o quinto disco de uma banda de rock psicodélico, que, hoje em dia, é uma coisa tão rara no Brasil, sustentar tanto tempo fazendo parte da cena underground. Tenho o meu máximo respeito por eles, e também surgiu muita amizade”, comentou Guilherme Held antes do show. 

Julito Cavalcante, da Bike (Foto: Luara Baggi)

“Virou um amigo, não foi uma relação profissional de ‘eu vou produzir, vocês me paguem e acabou’. Não, a gente tá brother, de colar na casa, trocar ideia todo dia. Isso empolgou tanto a gente quanto ele”, contou Julito Cavalcante, vocalista e guitarrista da Bike. “Rolou um interesse mútuo. A gente se identificou muito, e ele também com a gente. Tem toda essa escola dele, que vem do Lanny Gordin, de quem ele é tipo um discípulo. E agora a gente é meio que discípulo do discípulo. Ele acrescentou muito, virou um quinto elemento mesmo”, acrescentou João Felipe Gouvea, baixista da banda.

No show em conjunto, o repertório incluiu músicas do disco solo de Held, Corpo Nós (2020), mas também para composições inéditas do grupo, como “Santa Cabeça” e “Cedro”, ambas do próximo disco da Bike, sendo que “Cedro” foi feita em parceria com Guilherme Held. “Pra gente, acabou sendo um desafio. O Diego [Xavier, voz e guitarra] vai cantar uma música que a Juçara [Marçal] canta no disco [a faixa título “Corpo Nós”], a gente vai tocar uma música que o arranjo é do Letieres Leite [“Sorongo”]. Ele tirou muito da gente pra chegar nesse show. E tá rendendo, vamos fazer um outro show em São Paulo no mês que vem e os ensaios foram tão legais que a gente quer tentar manter isso como uma parada pra rolar de vez em quando”, diz Julito. 

A apresentação da Bike e do Guilherme Held encadeou-se muito bem ao show seguinte, no qual também havia destaque às guitarras, mas a partir de uma perspectiva totalmente diferente. Por volta das 20h30, subiram ao palco o guitarrista israelense Yonatan Gat, Lee Ranaldo (guitarrista cofundador do Sonic Youth), Ynaiã Bertholdo (baterista do Boogarins) e o músico norte-americano Dean “Running Deer” Robinson, membro do povo indígena Narragansett, de Rhode Island, e integrante do grupo Eastern Medicine Singers.

Owerá e Yonatan Gat (Foto: Ariel Fagundes)

Enquanto Ynaiã, na bateria, e Dean, em seu tambor, marcavam juntos um mesmo ritmo vigoroso, que atingia diretamente a caixa torácica de cada membro da plateia, alcançando e fundindo-se às batidas do coração dos presentes, Gat e Lee davam início a um diálogo aberto de melodias e texturas tímbricas no campo das cordas de aço. Logo, juntaram-se a eles o rapper indígena Owerá e Camila Retê, sua esposa, cantando, em guarani, por cima de uma base instrumental distorcida e uma pulsação rítmica transcendente. “Viva todos os povos indígenas!”, disse Owerá ao fim da música. 

Eis que entrou no palco Ava Rocha, que passou a somar os vocais ao canto guarani de Owerá e Camila, que seguiram em primeiro plano na música seguinte. Depois, chegou outra rapper indígena de destaque nacional, Brisa Flow, para dividir com Ava as vozes de “Joana Dark”, do disco Trança (2018), de Ava. A tudo isso, somou-se Ian Wapichana, rapper, indígena da etnia Wapichana, de Roraima, e companheiro de Brisa Flow. Ian entrou com uma flauta e, ao longo do show, além das rimas impactantes, demarcou o espaço de fala com importantes discursos de denúncia à violência sofrida pelos povos indígenas no Brasil. “Respeitem os povos originários!”, declarou. “Não existiam fronteiras, vocês criaram!”, disse em outro momento do show. 

Ian Wapichana e Lee Ranaldo (Foto: Ariel Fagundes)

“A representatividade indígena aqui, dentro desse espaço, é quase nenhuma, a gente vê que é um evento pra burguesia, eu não tenho nenhum pudor de falar isso no momento em que a gente é invisibilizado e sofre um genocídio diariamente. Inclusive, agora, os parentes guarani kaiowás estão sendo assassinados em retomadas dos seus territórios. Então, a gente vai se fortificando e ocupando esses espaços pra que ouçam as nossas vozes, ouçam quem nós somos e nos respeitem. A gente se sente privilegiado de ser uns dos pioneiros ao estar ocupando esses espaços em que muitas das vezes a gente não é aceito”, disse Ian à Noize pouco antes do show.

A semente desse encontro tão potente vem de quatro anos atrás, quando Gat, acompanhado de Ynaiã, se apresentou pela primeira vez no PicniK. Na ocasião, o israelense já estava conectado a músicos indígenas norte-americanos do grupo Eastern Medicine Singers e chamou Ian para participar do show. “[A parceria com Gat] começou em 2018, com o convite do PicniK pra fazer essa formação junto com o Yonatan e outros artistas, para a gente fazer uns improvisos e trazer um pouco da nossa ancestralidade indígena, um pouco da nossa cultura de Roraima”, disse Ian à Noize.  Naquela época, Gat estava preparando um disco com o Eastern Medicine Singers e chamou Ian para participar do projeto. 

Lee Ranaldo e Ava Rocha (Foto: Ariel Fagundes)

“O Medicine Singers é um grupo de powwow que eu conheci no [festival] South By Southwest, em 2017. Começamos com umas improvisações, lançamos um single [“Medicine”], e acabamos de fazer um disco [chamado Medicine Singers], que vai sair daqui a cinco dias [no dia 1/7]. Ian está participando desse disco, porque, quando eu vim aqui pra Brasília, nós trabalhamos em duas músicas suas [“Sanctuary” e “A Cry”], e adicionamos elas no disco do Medicine Singers. E agora eu estou de volta para trabalhar mais com o Ian. E dessa vez eu convidei Lee, Ava, que é uma das minhas artistas brasileiras favoritas, Ynaiã, é claro… Temos o Owerá, que o Miguel, do festival, nos apresentou, o Dean [‘Running Deer’ Robinson], do Eastern Medicine Singers…”, comentou Yonatan Gat à Noize, acrescentando que eles irão passar mais uns dias em Brasília, após o festival, para seguir tocando e gravar o resultado desse encontro em uma residência artística. É possível que, daí, saia um single, ou EP, quiçá até um disco.

Todos os envolvidos salientaram, em entrevista antes do show, a grande importância deste projeto, mas também a atmosfera de comunhão que se estabeleceu entre o grupo. “Eu estou tendo uma experiência muito boa com esses músicos. Agora que as coisas estão abrindo de novo, é divertido tocar com um conjunto, depois de dois anos e meio sem shows. E eu estou tentando fazer coisas diferentes em apresentações diferentes, então essa é uma coisa diferente para mim. É muito legal”, disse Lee Ranaldo. 

Lee Ranaldo (Foto: Ariel Fagundes)

“A nossa relação tem sido muito verdadeira, muito direta, muito bonita. E eu me sinto muito acolhida por eles também, e eles por mim, e todos por todos. E tem o Lee Ranaldo também no meio de tudo isso, ou seja, não tem nem palavras. Tá um ambiente de família”, comentou Ava Rocha.

“É algo muito importante, porque as pessoas precisam conhecer as culturas umas das outras. E não sair matando umas às outras, isso não é vida. A vida é ser circular, tudo é um círculo, sabe? A vida é contínua e contínua, mas as pessoas saem matando umas às outras. Assim, será um mundo morto. Vai acabar com todos os animais, com todas as árvores, envenenando a água e o ar, não é bom”, disse Dean “Running Deer” Robinson. 

Camila Retê, Ynaiã Bertholdo, Owerá e Ian Wapichana (Foto: Ariel Fagundes)

“É muito importante pra humanidade levar esse conhecimento espiritual pra se fortalecer. Hoje, o mundo todo tá precisando muito. E, com essa união, a gente vai trazendo para as pessoas, através da música, a força para todos se conscientizarem e lutarem, conhecerem cada vez mais a cultura, a diversidade do Brasil e dos indígenas de outros países”, afirmou Owerá. Quem também participou da apresentação foi o seu pai, o escritor Olivio Jekupe, que subiu ao palco para fazer uma fala fundamental, em que disse: “Estamos lutando pela terra e estamos lutando por vocês”, referindo-se ao papel das comunidades indígenas para a preservação do meio ambiente.

“Fiquei muito feliz de receber esse convite, a gente tem que aproveitar esse momento porque a voz indígena nunca é ouvida. Quando dão espaço pra gente, a gente fica feliz, porque, no Brasil, o massacre indígena continua. E às vezes as pessoas não sabem, porque a imprensa, a televisão, nunca mostra. No dia 24 [de junho de 2022], agora, houve um massacre em Mato Grosso, na cidade de Amabai, onde mataram cinco indígenas. Esse é o momento pra gente mostrar, através da música, e através da literatura nativa, como eu escrevo. Pra tentar divulgar que nós indígenas continuamos sofrendo nesse país que é nosso. Fomos roubados e agora, pra gente soltar a nossa voz, tem que mostrar a nossa arte. Fico muito feliz com o sucesso do meu filho, porque através da música as pessoas estão valorizando mais o povo indígena. Isso que é importante”, disse Olivio à Noize. 

Brisa Flow e Ian Wapichana (Foto: Luara Baggi)

Na última parte do show, Brisa Flow traz ao palco uma faixa com a mensagem: “A treta é sobre território”, sendo muito aplaudida pelo público. Logo, os artistas indígenas puxaram o coro: “Demarcação…”, para a plateia responder: “Já!”. Homenageando a urgente luta pela causa indígena, a apresentação contundente, marcada por doses generosas de improvisos sonoros e falas que precisam ser ouvidas, foi o tipo de show impossível de ser reproduzido: quem viu, viu. “Os povos originários precisam do seu apoio. Nesse momento, nós estamos morrendo. Não esqueçam disso”, disse Ian encerrando a apresentação mais impactante desta edição do PicniK. 

“Eu é que não queria ter que tocar depois desse show”, confessou, rindo, Julito, da Bike, que estava assistindo ao show. O tom era de brincadeira, mas realmente seria um desafio para qualquer pessoa se apresentar logo após algo tão grandioso. A responsabilidade coube à jovem banda brasiliense Akhi Huna, que trouxe uma apresentação interessante, mostrando uma pegada de indie rock tropical, com pitadas de hip hop. Uma ambiência mais dançante se espalhou pela praça, e conduziu uma despressurização para a última atração do festival: Letrux

Letrux (Foto: Ariel Fagundes)

Após uma demora na troca de palco, que ampliou o já atrasado cronograma, a cantora carioca finalmente começou por volta das 0h10. “Bom dia, Brasil!”, disse Letrux quando pegou o microfone, arrancando uma estrondosa salva de palmas. Seu show incluiu várias canções do álbum mais recente, Letrux Aos Prantos (2020), como “Déjà-vu Frenesi”, “Fora da Foda” e “Contanto Até Que”, além da mais recente ainda “Me Espera” (single de 2021 lançado em parceria com o DJ Mulú) e as já clássicas “Hypnotized”, “Que Estrago” e “Ninguém Perguntou Por Você”, de Letrux em Noite de Climão (2017).             

Dançando com o deboche e o drama, flertando com a ironia e a sensualidade, Letrux é uma artista capaz de mobilizar muitos sentimentos diferentes na plateia ao longo de uma mesma apresentação de forma absolutamente coesa. Há uma dimensão cênica mambembe em sua interpretação, que atua como um fio condutor de sua obra e é sustentada por uma banda afiada, com instrumentistas que a acompanham há anos, desde o lançamento do Em Noite de Climão

Letrux (Foto: Ariel Fagundes)

Ninguém pareceu se importar com as dificuldades técnicas do início do show; pelo contrário, o público estava entregue, mexendo os corpos até suar na já fria madrugada brasiliense. Após 1h de apresentação, a cantora se despediu, ao que a multidão respondeu insistentemente: “Mais um! Mais um!”. E então, com “Cuidado, Paixão”, do Aos Prantos, Letrux fechou o PicniK de 2022 desejando tudo de melhor para todos que, de uma forma ou outra, estavam ali ajudando a construir não somente o festival, mas toda uma cultura de comunhão através da arte e da economia criativa.

O saldo geral foi um extremamente positivo, tanto para o público quanto para os artistas. “Sendo na praça, aberto, gente que nem lhe conhece e tá ali de bobeira lhe vê. Acho isso muito bom, é o que eu mais gosto de festival, quando é na rua. Tem um público que vem pra lhe ver e tem um que não sabe nem quem você é. Eu amo isso”, comentou Karina Buhr. “Foi maravilhoso, fiquei muito feliz de ver a galera cantando. As pessoas estão muito felizes de poder voltarem a estar juntas em um festival. Dava pra sentir isso”, disse Anelis Assumpção. Que venham mais edições do evento nos próximos 10 anos.

29/06/2022

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

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