Russo Passapusso, colossal sobre o mirante da miragem

15/02/2016

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Nicolas Henriques

Por: Nicolas Henriques

Fotos: Victor Petreche

15/02/2016

Fazia um tempo que não escrevia resenhas de shows. Sabe como é: ano novo, carnaval, verão, a rua ficava chamando o tempo inteiro e meu foco em parar na frente do computador para escrever sobre shows estava beirando o de um filhote de labrador diante de um quarto montessoriano. Cheguei a ir em alguns shows nesse período, como o excelente do Curumin cantando Stevie Wonder, mas não é desse show que venho falar aqui. Venho para falar do apoteótico fim de tarde, começo de noite que foi a apresentação de Russo Passapusso no belíssimo Mirante do Vale, ontem, pelo projeto Heineken Up on The Roof.

Confesso que o começo da tarde, pré-show, não foi dos melhores: com uma fila de mais de uma hora esperando o evento trendy de certo redescobrimento do centro (como se ele já não fosse pulsante e vivo), achei que não entraria. Um dos detalhes do evento é que eles costumam enviar mais convites que a capacidade máxima, pedindo para o pessoal chegar antes e, quem não estiver lá a tempo de entrar, azar. Estranho, mas tudo bem. Mas tenho outra crítica: para mim, a ideia de convite já é bem segregatória, quase que uma nova forma de camarote; por mais que defendiam certo viés horizontal ao fazer um convite gratuito aberto a todos, não vi tanta democracia assim lá nos presentes. Apesar disso, a fila valeu a pena, pois conversei com um bróder muy gente boa, Rafa Silva, e ficamos falando dos últimos álbuns e shows legais do ano passado: Elza, Rodrigo Campos, Emicida etc. Funcionou quase como aviso de que Russo estaria nessa lista se tivesse visto seu show em 2015.

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Quando enfim entramos, o local não estava tão cheio e o show tinha já começado. Segundo o setlist que fiquei olhando de esguelha, já tínhamos perdido Aperta o pé e parte de Remédio. Uma pena, até porque senti que perderia um pouco mais: a espera me deu uma sede danada e fui ao bar retirar uma cerveja, que, para minha surpresa, numa festa patrocinada por uma cervejaria, era paga. E bem paga. 10 realidades, pra ser exato, confirmando um pouco a sensação de falta de democracia descrita acima. Mas não ia deixar me abater por essas pequenices. Um belo palco estava ali, com espaço para me me escorar e ancorar-me a apenas um metro da banda. E, convenhamos, uma belíssima banda acompanha Russo: Saulo Duarte na guitarra, Ed Trombone no trombone, pandeiro e outros instrumentos percussivos, Zé Nigro no teclado e sintetizador, Curumin na bateria, Lucas Martins no baixo e Maurício Badé na percussão. Só listando todos os nomes e instrumentos, já dá para notar a riqueza do som de Russo, que, em 2014, lançou o elogiado Paraíso da Miragem.

Um ponto positivo para a organização da Heineken: o espaço fez toda a diferença no show. O Mirante do Vale (ou W. Zarzur) é uma beleza. O maior prédio de São Paulo proporciona uma vista maravilhosa de toda a cidade. Sua cobertura aberta, com estruturas metálicas circundando a área do palco, passa certa sensação industrial maquinária que contrasta com o refino da música de Russo em certos momentos, mas casa perfeitamente com os bridges longos, experimentações e reverberações dubísticas de muitas canções. A estrutura do espaço criava essa tensão entre um ambiente que havia sido finamente acabado e o que havia de mais experimental no show.

A primeira canção que peguei inteira foi “Flor de Plástico”, que me lembra muito Tim Maia, tanto pela letra melancólica, de um amor meio partido e perdido, como pela construção melódica de um leve samba com soul. O clima de fim de tarde com o sol se pondo tingindo de rosa opaco o céu combinou com a letra criando um clima relaxado. “Paraíso da miragem” parece ser a vista do Mirante mesmo. Em seguida, o trombone de Ed começa ditando o ritmo alucinado do misto de pagode baiano com psicodelia e fanfarra de Sapato. A mistura rítmica não cessa, quando Zé Nigro cuida dos sintetizadores criando o clima dub western senegalês de Matuto. (É complicado conseguir definir os ritmos das músicas de Russo. O tempo inteiro tenho que ficar pensando em milhões de nomes para tentar captar as nuances e riquezas, homenagens e misturas. Talvez o gênero deveria ser chamado de Brasil mesmo, sei lá.) Com Matuto, Nigro e Saulo entram num duelo carismático de guitarra e sintetizador. Um olha pro outro e sorriem, como se estivessem num amistoso de amigos do Zidane contra amigos do Ronaldo: só show e alegria. Essa sensação de um músico puxar o outro perdurou, com um momento apoteótico que contarei logo mais. O próprio Russo Passapusso pede a experimentação de seus músicos, com o fio do microfone sobre o ombro, tal qual um feirante a carregar frutas alegremente por uma manhã que promete boa sorte.

Em seguida entra “Sangue do Brasil”, belo samba, que Curumin olha admirado pra Russo, que, por sua vez, mexe-se tal qual marionete criando sua liberdade, com braços e pernas se afrouxando e soltando-se das amarras da tradição. Seus movimentos entram numa sintonia corporal com o olhar de Curumin; os dois se entendem. Quando a música está para acabar, o baterista não deixa e já emenda, com o trombone de Ed a fuzilar como cidade caótica tocada por banda de jazz dos anos 40, a canção “Tapa”. A voz rápida de Russo é aliteração física tremendo as luzes estrobocópicas de baile que pincelam o chão.

Quando entra “Afoxoque”, música consagrada por Curumin, mas com composição também de Russo, a plateia entra em delírio e canta sem parar esse grande ska dub, que vai se prolongando em longos bridges e reverberações. Em dado momento, Russo olha para longe na plateia e faz uma pequena reverência. Quando todos olham para trás, BNegão se aproxima do palco e sobe para cantar. Não só mais Russo, como todos ali reverenciam o cantor, que embala, após um freestyle, “Systema Fobica (Ubaranamaralina)”, canção do BaianaSystem, outra banda de Russo (que, por favor, venham tocar aqui, grato). Sem nem bem acabar a canção anterior, os dois, incansáveis, emendam “Jah Jah Revolta”, também do BaianaSystem, num pout-pourri alucinado que todos os músicos ali presentes se olham e sorriem, impressionados com a jam session que estavam criando. Do nada volta Afoxoque, e sinto que meus tímpanos quase estouram com o êxtase de todos ali; se ele não era transmitido em gritos, eram sentidos no silêncio pesado de assombro diante de tamanho momento sublime que foi aquele. Queria estar apenas exagerando, mas foi uma das coisas mais impressionantes que já presenciei em shows na vida. Todos ali, músicos, plateia, o próprio Mirante do Vale, estavam embasbacados com o que aconteceu.

Entra “Passarinho”, que se arremeda com a lindíssima “Relógio” e seu som dolorido de samba à Cartola. Samba pós-moderno misturado e místico. Com “Anjo” tocando logo em seguida então, nem se fala. Se fôssemos críticos pretensiosos de uma revista como a Pitchfork, diríamos que Russo faz post-samba-mpb e seu show é uma apoteose que mereceria erigir uma nova Sapucaí, mas jamais falaríamos isso, pois seria quase desrespeitoso com a história, e se tem uma coisa que esses músicos todos respeitam é a história e a riqueza de nossos sons.

Numa pira pessoal, enquanto ouvia as longas jams sessions rolando entre os bridges, fiquei pensando que até Jerry Garcia deve sorrir do céu num show como o que estávamos. Todas as musicas poderiam nos transportar para essas gigantescas sessões das jams bands dos anos 60; vendo ali uma pequena amostra do que seria um Grateful Dead brasileiro dos anos 2010.

Começa a bela “Areia”, com seu ritmo lembrando Novos Baianos, com sua lua lá fora e o convite para beber pra Obá. Olhando o céu do Mirante, a crescente ainda tímida, fina como um sorriso do gato de Alice, temos indícios para voltarmos a atenção ao show, prestes a acabar segundo a setlist. Começa “Paraquedas”, com seu paraíso da miragem mostrando o poder vocálico do cantor, que tremula como assombração, mostrando a noite que já se acomodara tranquila no horizonte. Nessa canção, Russo dança como Chico Science, com ajoelhadas. Em mais um dos ótimos solos de Ed no trombone, BNegão é homenageado. Um clamado final, um grito das profundezas de nosso ser, todos os músicos ao microfone dizem que “A minha alma vai continuar!”, perdurando o poder da música e da arte para além de nossa corporeidade física. Grande apoteose, parece que cada músico toca em um ritmo: Ed com pandeiro de samba, Zé com teclado psicodelico, Russo com vocal de dub, Saulo numa guitarra de mangue beat e soul. É coisa fina demais, e até o grande Zé Keti é homenageado no fim do show, quando Russo chega na plateia, pede para todos se aproximarem. “Aperta o Pé”, que não sei se perdi no começo, foi tocada, num frenesi afro maravilhoso que contou com um show a parte de Maurício Badé. Vai vendo:

Anelis Assumpção [cantora e esposa de Curumin] chega próxima ao palco, chama Maurício Badé para o meio da platéia que, como um mestre de axé, começa a dançar com todos, ensinando passos de música para todos. Uma aula de axé puro, em todos os sentidos da palavra que podemos compreender. A energia e a alegria no sorriso de todos que presenciaram a cena eram impressionantes.

Quando a dança parou, o show também teve seu fim. Assustado com o que acabara de ver, sinto que, se tudo seguir essa apresentação de Russo, o ano de 2016 promete shows que não sei nem como me preparar. Impressionante.

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15/02/2016

Sou pesquisador e escrevo resenhas de shows pagando de crítico musical porque gosto muito de música e minha verdadeira intenção era ser multi-instrumentista ou vocalista de alguma banda. O problema é que falta habilidade para tocar até campainhas mais complexas e meu alcance vocálico lembra uma taquara rachada.
Nicolas Henriques

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