A sagrada violência do The Who

27/09/2017

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Rodrigo Laux

Por: Rodrigo Laux

Fotos: Rafael Rocha

27/09/2017

Um questionamento parece pairar como um denominador comum entre os fãs brasileiros que viram o The Who em São Paulo, Rio e Porto Alegre: como que uma parcela tão grandiosa e importante da história da música nos últimos 50 anos demorou tanto pra vir até aqui?

Há alguns meses, o guitarrista norte-americano Nels Cline disse que teve uma de suas “epifanias musicais” ao ouvir John Coltrane no fim dos anos 60. Vou roubar a expressão “epifania musical” pra tentar explicar o que o The Who foi (e vem sendo) pra mim e pra muita gente que um dia já mergulhou nas profundezas da sua sonoridade tão honesta e particularmente agressiva.

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E Porto Alegre soube acertar a mão para criar a atmosfera certa nos dias que antecederam o show. No fim de semana, por exemplo, o Cinema Capitólio reservou a sua sala para exibir os 2 filmes inspirados nas óperas-rock do Who, Tommy e Quadrophenia. O aquece perfeito já que, de certa forma, as duas obras servem como espécies de pilares conceituais pro show.

Mas a noite de terça no anfiteatro Beira-Rio não tinha só The Who. O Def Leppard entrou no palco 10 minutos antes do previsto para abrir essa que foi a primeira noite na história em que as duas bandas se apresentaram juntas sem ser em festival. O ineditismo também não surpreende muito, se levarmos em conta que as similaridades entre os shows não vão muito além da nacionalidade dos envolvidos.

Com uma apresentação pra lá de enérgica e carismática, o Def Leppard concentrou o seu set list especialmente no álbum Hysteria (1987), o primeiro após o fatídico acidente de carro em que o baterista Rick Allen perdeu o seu braço esquerdo. A apresentação agradou a parcela do público que flerta com o hard e o metal, mas a noite já tinha outro dono desde o início.

A expectativa pelos gigantes do Who que já era enorme só cresceu com o anúncio no telão: “Mantenha calma, aí vem o The Who”. Uma referência ao pôster motivacional que o governo britânico utilizou em 1939 como forma de preparar a população para a 2ª Guerra Mundial (“Keep Calm and Carry On”). E a banda já entrou no palco como começou a sua carreira: com os 2 pés na porta, colocando o público pra pular com as pedradas “I Can’t Explain” e “The Seeker”.

Acompanhados de ótimos músicos de apoio, incluindo o irmão de Pete, Simon Townshend na guitarra base, é desde o primeiro instante que Roger Daltrey e Pete Townshend deixam claro que seguem sendo um manifesto vivo da liberdade individual. Nada poderia combinar mais com eles do que chegar aos seus (mais de) 70 anos renegando qualquer senso comum ultrapassado sobre como um setentão deve se portar em público.

Pete, que entrou saltitante no palco, não escondeu em nenhum momento todo o seu amor à vida e à música. Demonstrou curtir genuinamente cada momento, falou com a plateia, pediu desculpas pela demora pra vir ao Brasil, e protagonizou um momento cômico. Ao anunciar “I Can See For Miles”, do álbum “Sell Out (1967), ele disse em tom ironicamente agressivo: “quando eu fiz essa música vocês nem eram nascidos. Nem seus pais eram nascidos!”. Nisso, um fã de mais idade foi erguido pela plateia, a quem Pete apontou demonstrando surpresa e, com o seu tão bem-vindo humor ácido (beirando o inconveniente), disse: “Ah, não! Ele era nascido! Matem-no!”

Roger é uma máquina de talento, carisma e saúde. As suas primeiras giradas de microfone no palco logo fazem cair a ficha: é o The Who. No alto dos seus 73 anos, o pulmão da banda ainda exibe alta capacidade vocal, especialmente nas faixas pós anos 60, em que as suas linhas exigem mais potência e complexidade. Roger é o responsável por alguns dos highlights do show, especialmente quando profere o seu grito assustadoramente lindo que encerra o solo de bateria de Zak Starkey em “Won’t Get Fooled Again”.

Aliás, vamos falar de Zak. O afilhado de Keith Moon logo surpreendeu os fãs mais atentos: subiu no palco com a jaqueta do baterista Lucas Leão, dos Beach Combers, banda com quem Zak fez uma jam totalmente improvisada na praia de Ipanema dois dias antes do show em Porto Alegre. Não é difícil imaginar a emoção dos meninos da Beach, fãs declarados de Who e do baterista. Vale ressaltar que Beachcombers era o nome da banda de Keith Moon antes de entrar no Who em 1964. Quer dizer, música é um negócio muito louco.

E é incrível a profundidade do bom gosto de Zak na forma como ele assume uma posição já tão sacramentada pela imagem do icônico Keith Moon: sem tentar ser igual, impondo seu próprio estilo, porém sem deixar de fazer referências ao baterista original do Who. Até porque Keith também foi seu professor.

E Zak parece ter aprendido direitinho com o padrinho a importante lição de olhar para todos na banda o tempo todo (especialmente para Pete) e se impor no instrumento de forma a fazer o melhor pela música. Tudo sempre numa pegada incansável, fazendo o som do The Who pulsar numa violência assustadora, e sem poupar rolos – característica clássica de Moon.

Ao longo da apresentação, as músicas parecem evoluir em sua intensidade e profundidade, fazendo, de certa forma, com que a plateia cresça junto com a banda, desde as suas raízes mod até as grandes megalomanias artísticas de Pete Townshend. As faixas dedicadas ao Quadrophenia e ao Tommy, em especial, transformam o show – assim como fizeram com a obra do Who – em algo grandioso, o que também é bem representado no telão com cenas que faziam referência aos dois filmes.

Em determinado momento, Pete apresenta a banda e é apresentado por Roger, que aponta para o seu parceiro de mais de meio século dizendo “sem a música desse homem nada disso estaria acontecendo”. Mais do que justo. Autor da maioria das músicas, foi da cabeça de Pete que “Tommy” e “Quadrophenia” saíram e elevaram o The Who a um patamar artístico ainda maior, através de obras que podem ser facilmente compreendidas como autobiográficas. Em certo nível, ele é Jimmy (personagem principal de Quadrophenia) e ele é Tommy (apesar do personagem ter sido representado por Roger no filme).

É impossível não reverenciar o talento e a capacidade única de Pete e Roger em ter encontrado, há mais de 50 anos, a beleza e a poesia em meio a uma geração confusa, revoltada, violenta e desesperada por autoafirmação como eram os mods. Louvado seja o The Who por extrair da sua própria juventude degenerada, os anseios universais de qualquer jovem que se sente deslocado em um mundo dominado por padrões sociais que podam a sua essência.

Essa característica fica clara, por exemplo, em “I’m One”, faixa que abriu a sequência do Quadrophenia no show e pode ser considerada um hino da valorização da individualidade.

“Every year is the same
And I feel it again,
I’m a loser – no chance to win.
Leaves start falling,
Come down is calling,
Loneliness starts sinking in.
But I’m one
I am one
And I can see that this is me
And I will be, you’ll all see, I’m the one”

Pete e Roger deixam mais do que claro no palco que a sua essência revoltada e a necessidade deixar uma marca considerável na Terra nunca desapareceu, apenas passou a ser manifestada de forma cada vez mais madura e complexa. E que honra ter a oportunidade de assistir ao vivo uma banda que, depois de 50 anos, nunca deixou de crescer, mas também nunca deixou de ser jovem.

É por isso que ainda estamos degustando o que aconteceu na última semana no Brasil. O show e a obra do Who são experiências que devem ser vistas (see me), sentidas (feel me), e discutidas aos poucos. Sigamos falando de The Who e de todos os fenômenos que, assim como eles, representam uma resposta às amarras comportamentais criadas por moralismos e padrões sociais/políticos/culturais há tanto já obsoletos. We are the mods!

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27/09/2017

Rodrigo Laux

Rodrigo Laux