Resenha: Tudo tão bem, nenhum gesto custa mais que “Tetein”, de Ian Ramil

23/10/2023

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Por: Diogo Araujo

Fotos: Divulgação

23/10/2023

Mais do que todas as outras, e mais do que a música, a canção é a arte que deu certo. O cinema, que é a segunda colocada, não é tão capaz de gerar fetiche. Também é menos religiosa. A vida precisa de arte, espalhando-se o máximo e com a mensagem mais contundente, e é a canção que faz a crítica mais direta da elitização do gosto, quando este, sob a desculpa de se defender das baixezas do mercado pasteurizador, e outras, se prende na majestificação do contemplativo e sente nojo da rua – e da vida.

Com a canção vamos então pra fora, para a coisa mais bonita que é a alteridade. Chegamos, então, no tempo e na síntese, sem perder o pé no lúdico: três características bem fortes desta curta, mas a qualquer momento revisitável, forma de arte. Queremos, então, que a vida, podendo ser prazer, seja mais do que o prazer. Não é isso o que se quer dizer com a importância de sermos política?

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+ Entrevista | Ian Ramil lança o clipe de “O Mundo É Meu País”, do novo álbum “Tetein”

O disco Tetein, de Ian Ramil, é uma bela tentativa artística destes percursos. As letras monumentalmente diretas, que traem-se a si mesmas em suas utopias mostrando autocrítica ao mesmo tempo que, justo neste movimento, usufruem de liberdade plástica, estão lá – como em “Mil pares”. As canções enquanto investigação técnica, ou seja, aquelas que exploram a materialidade dos elementos musicais, mostrando que as simplicidades apresentadas são uma escolha e que dali se extrai algo singular, trazendo uma definição muito mais sofisticada do que o barroquismo derramado, também comparecem – como em “O mundo é meu país”. 

Hoje a questão da identidade como afirmação estética parece jurássica, tendo um de seus últimos suspiros em um tempo já longínquo, de um disco do Los Hermanos. Ian não precisou negar uma Anna Júlia: sua rigorosamente primeira faixa já cantava o movimento do seu bloco. Um efeito dessa diferença histórica está na naturalidade do uso do que, em certo sentido, é um expediente da “música inteligente”: jogar com aquilo que é tido como mau gosto. E ponho aspas na expressão porque “música inteligente” não devia ser um estilo ou nicho. A seu modo, toda arte feita com afeto estético (e não, a exemplo, afeto comercial) é inteligente. Eis a sagaz inteligência do tropicalismo, cujos movimentos filosofantes podemos encontrar também aqui.

Um exemplo disso se dá já nos primeiros segundos de Tetein: o “Oiii” da faixa-título lembra os vocais do country norte-americano antigo, consagrados como “kitsch”. Outro, mais conceitual: da terceira para a quarta faixa de Tetein, passamos de uma experiência industrial-acústica de “Macho-rey”, com refrão açucarado à la rock sessentista e timbres ricos (como em todo o disco), ao choro fiel de “Cantiga de Nina”, com baixaria, fagote e saída poética noelesca  –  em “passarinho canta por não saber/ que essa luz é o poste que dá”. A nuvem macabra que, positivamente, ronda o universo masculino no contemporâneo, levando-o a se questionar, transmuta-se em sussurro rendido, de canto para a filha dormir. É hora de acreditar, com uma força que não foi posta antes, na vida delas.

A compreensão da complexidade da criação da canção, a propósito, perpassa o trabalho do artista desde IAN (2014), seu primeiro disco. Há um saber-fazer que pode até ser visto como sendo natural, mas que é também assimilado. Já em sua participação no Cultura Livre, de 2014, vemos o artista falando sobre o fazer da canção como um artesanato, algo muito diferente da proeza estritamente pessoal. 

Em IAN, uma canção como “Zero e um” mostra essa engenharia de maneira explícita. Rota é outra, mais silenciosa, não sendo acaso que seja ela o meddley de “Passageiro” (canção de Vitor), na abertura da quarentenística live ainda em casa. Um video que já mostra um novo Ian e que se deu em um momento no qual Tetein já poderia ter sido lançado. Essa letargia que os tempos nos propuseram, porém, tem tudo a ver com o novo trabalho e certamente lhe emprestou parte da força meditativa.

Citei-as, lado a lado, quase por acaso, mas eis que vejo duas canções do segundo álbum de Ian, Derivacivilização (2015), como irmãs, cada uma, dessas duas outras: “Salvo conduto” e “Zero e um”, por sua arquitetura, são pares na minha cabeça, assim como “Quiproquó” e “Rota”, por seus comentários da interioridade. Nesta última, vemos a parte literária da arte da canção mostrar a força, natural, que verbo e melodia, juntos, constituem. São palavras simples e enumerativas as dos versos “a casa, o tempo, a fome, a fé, a grana, o futebol/a lei, o corre, a escolha, o galho torto, a luz do sol”. Mas o efeito é inesperadamente contundente.

Ian já tem seus “hits” como “Seis patinhos”, “Souvenir” e “Nescafé”, de IAN, e
“Coquetel Molotov”, “Derivacivilização” (a música), “Artigo 5” e “Devagarinho” do Deriva. São dois discos de rock, palavrosos e furiosos, mas preocupados com arranjos, ideias musicais. A bateria de Martin Estevez na espetacular “Não vou ser chão pros teus pés” merece meu culto, pois figura como uma espécie de “When the Levee Breaks” tupiniquim-contemporânea. A captação de seu som e sua energia nos fazem voltar e voltar a ela, ainda mais quando a mensagem verbal da canção é esta. “Artigo 5”, por sua vez, é o ready-made de urinol que figurou como uma das canções de Ian no recentemente lançado disco-show da Casa Ramil.

O intervalo bíblico que separa Deriva de Tetein, oito anos, se faz sentir. Uma canção como “Lego efeito manada”, uma das minhas preferidas, pode servir como o perfeito símbolo disso. A composição eleva a complexidade do desenho musical a um patamar radical. Aquelas primeiras notas, cheias de vazio, do violão, já nos preparam para o desafio da música. Seus movimentos são barrocos, sua reflexão literária tem em aparência algo de transcendental e excêntrico, mas a música como que se resolve, justo por isso, numa intensidade bem direta: “Revolução/Ocupar os arranha-céu/ Enxergar a paisagem/Abrir a passagem/O fim da viagem tá vindo.”

Aqui também o arranjo é exemplar das qualidades de Tetein: a estrutura truncada ganha efeitos de samplers e cordas em momentos precisos, o som do violão conduz a canção com belos timbres e texturas, a faixa se estende com sabedoria, abrindo espaço para um final de meditação respirante, com as perguntas: “Quem vai colher o que se plantar?/Quem vai colher? Quem?”

Ian é um bom ouvinte de Beatles. Isso não parece um grande elogio, mas defendo que na verdade é uma de suas proezas. A matéria da arte é, ao contrário da opinião excessivamente especializada (esta que se faz selecionadora para não ser corajosa), de saída abstrata: a sofisticação tomada como conquista é, na verdade, soberba de classe, a afetação de quem não sabe perder. E a canção é uma máquina de ironia diante disso. Quando você ouve “Vi dois siri jogando bola” ou “Êta, êta/ Etá” o que está ouvindo é isso: arte sofisticada, de museu, só que fora dele. 

Isso tudo pra dizer que a conquista sensível que o quarteto de Liverpool consegue com um Abbey Road, por exemplo, é a de uma ampla sofisticação desde o mínimo da expressividade, a qual faz crer superficiais muitos duros trabalhos tecnicizantes. É algo que cientistas estéticos demorariam tratados para provar (se isso fosse necessário), mas que está lá: o que está escrito não diz, a música é som. É por isso que devemos manter os ouvidos bem em pé se não quisermos deixar que a experiência da música se torne entretenimento e sinestesia simplória. É preciso atenção para reavivar a complexidade da passagem de um blues tornado bizarro, como em “Come together”, para a mini sinfonia de uma “Something”, seguida da aula musical de “Maxwell’s silver hammer”. Onde estão as notas de “Sun king”? Estão ali. Lá. Naquele-este-lugar.

Eis um aparato que podemos usar também para ouvir Tetein. Acredito que “Mil pares”, por exemplo e mais uma vez, é uma das canções que melhor realizam nos últimos anos uma reavivação das questões que, para nós, trouxe o tropicalismo. Sua enunciação é fria, não empostada, sua enumeração é figurativa (positivamente alheia à representação), constituindo-se como um quadro do contemporâneo feito de violência inteligente. Não quero generalizar o trabalho de outros artistas, mas essa frieza conceitual, essa crueldade literária (“E no joelho uma criança/ Sorridente feia e morta/ Estende a mão”) enfrenta forte resistência de assimilação, mesmo que as intenções sejam progressistas. Também a proliferação de imagens, sem dívidas com identidade ou ancestralidade, parecem encarnar um grito de liberdade que é uma conquista.

 Tetein reúne muitos movimentos. A canção-título, por exemplo, a qual demoro a comentar, funciona como uma incrível overture de todo o trabalho – em si sintético. Ela diz, em verdade de saída, que o artista está a esculpir, fingir que não pode mostrar mais. Ele está arando silêncios, disfarçando esta estética tetein, a qual, na linguagem de Nina Ramil, quer dizer um mínimo de eu “posso passar o dia olhando vocês”, muito mais merecidamente contemplativo do que aquele que nos faz viciados nas redes sociais.

“Tetein”, a música, “não se repete”, como nos diz o próprio Ian em entrevistas. Sua montagem nos insere num mundo musicalmente rico, de beatlemania levada a sério. A canção como que desenha dois interlúdios os quais, somados, resultam num efeito bem bonito: primeiro com “Tudo tudo/Tudo tão bem”, depois com “Dá pra ver/ E cheirar”. A distância entre ambos dá a sensação de curvas, suspenses e mini vertigens, tornando esta uma maneira sintética de apresentar o trabalho.

Vejo algo do mesmo movimento “operístico”, só que mais prolongado e experimental, nas três últimas faixas do álbum. “Teletransporte”, a anterior, ainda é graciosa, mas já traz sonoplastias, um tom de despedida, talvez. “Palavras-vão” vai começar a anarquizar o desenho como um todo, começando a nos libertar de tanta doçura. A sua pseudo explosão do final, a qual vai caindo em pedaços em meio ao que parecem tentativas de se levantar, num primeiro momento parece a rendição sinestésica de algo que costuma durar dois ou três ou quatro minutos. Ela e “Homem-bomba” podem mesmo ser vistas como um momento “tributo ao Araçá azul”, o qual se faz como o escuro do claro, o fora do dentro, a duração do conceito. “Cantiga de Nina II” reafirma o movimento apontado no começo do parágrafo e também a qualidade do trabalho vocal do álbum, percorrendo aqui intervalos inusitados. 

Claro que deixei por último  “O bichinho”, a pérola de Tetein. Jorge Drexler assim se pronunciou sobre o disco: “Todas as músicas têm uma ideia muito musical detrás! Tudo tão bem tocado e cantado! Cheio de ideias boas e surpreendentes. Não consigo parar de ouvir ‘O bichinho’.” A canção é a emoção concentrada da narrativa da vinda de Nina ao mundo. Ian canta: “Eu vi uma cachoeira sair/ seguindo teu corpinho a caminho do ar da terra/ que alvorava/ ansiosa por ti.” Sangue e esplendor solar são a mesma imagem aqui, em certamente um dos versos mais fortes desta carreira. Com Tetein ela atinge aquele nível de maturidade sábia, mas prazenteira, o qual sempre esperamos dos artistas que gostamos. Com “O bichinho” temos mais uma mostra do reflexo louco que o artista faz do mundo, ao falar extremamente de si. 

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23/10/2023

Diogo Araujo