Roger Waters encerra passagem pelo Brasil abaixo de chuva simbólica

31/10/2018

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Rodrigo Laux

Por: Rodrigo Laux

Fotos: Kate Izor/ Reprodução

31/10/2018

Roger Waters fez ontem, em Porto Alegre, um apoteótico encerramento da sua passagem pelo Brasil com a Us + Them Tour. O inglês responsável pelo conceito e pela composição de algumas das principais obras do Pink Floyd, trouxe ao palco do estádio Beira Rio um espetáculo visual e musical grandioso e sem precedentes, permeado por críticas políticas e sociais e centrado especialmente nos álbuns Animals (1977) e The Dark Side of the Moon (1973).

Sem deixar de fora outros álbuns clássicos do Pink Floyd, como The Wall (1979) e Wish You Were Here (1975), Waters também dedica um espaço considerável do show ao seu mais recente álbum solo, Is This the Life We Really Want? (2017), tocando em sequência na primeira parte do show as faixas “Déjà Vu”, “The Last Refugee” e “Picture That”, e guardando para a segunda parte do espetáculo o single “Smell the Roses”. O músico toca acompanhado de um time de músicos precisos e inspirados, que incluem o guitarrista Jonathan Wilson, conhecido no universo folk e psicodélico por grandes álbuns solo, além do seu trabalho como produtor e com a banda Muscadine.

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Como era de se esperar após todas as polêmicas envolvendo as manifestações políticas de Waters, que se apresentou pelo Brasil ao longo de todo processo eleitoral, a expectativa era grande por parte do público nesse quesito. Antes mesmo do show começar, o grito de “Ele Não” foi entoado por boa parte do público no Beira Rio, em um momento no qual foi possível observar um dos roadies de Waters atrás do palco reagindo com os braços de forma discreta, demonstrando apoio à mensagem.

Por volta de 20 minutos antes do show começar, o telão é ligado com um filme de uma mulher de costas sentada na areia de uma praia deserta olhando para o mar, ao fundo. Assim como o público que espera Waters pacientemente de frente para o palco, a mulher fica ali sentada, o vento batendo, e nada além da natureza acontecendo em frente aos seus olhos durante todo esse tempo. Quando a banda está a poucos segundos de entrar no palco, o céu por cima do mar começa a ser tomado de um vermelho assustador, ao que a banda entra e a imagem que o público acompanhava é sugada por uma psicodelia visual alucinante, e o show abre com “Breathe”, do Dark Side of the Moon.

Diferentemente dos outros shows da turnê, o show em Porto Alegre – o 1º no Brasil após as eleições – não fez nenhuma menção direta ao presidente eleito Jair Bolsonaro, porém as críticas indiretas estiveram presentes em inúmeros momentos, especialmente pela forte mensagem de resistência proposta na sequência do The Wall“The Happiest Days of Our Lives”, “Another Brick in the Wall Part 2” e “Another Brick in the Wall Part 3”.

Durante este trecho, 12 crianças vestidas com macacões laranjas e sacos pretos na cabeça sobem ao palco. É nesse momento que a mensagem “Resist” surge no telão, deixando clara a predominância de apoio do público às ideias expostas pelo ex-Pink Floyd. Ao fim dos sons, Waters faz questão de elogiar a participação das crianças, que integram o projeto Ouviravida – Educação Musical Popular, da Vila Pinto, no bairro Bom Jesus de Porto Alegre. “Bravo! Só encontramos essas crianças hoje às 16h30m, e elas foram magníficas!”, disse Waters. A partir daí, um intervalo de 15 minutos é tangenciado por mensagens de resistência no telão.

Os dizeres nesse trecho abrem com ataques a Mark Zuckerberg – destacando o fato de que o criador do Facebook começou com um aplicativo extremamente misógino de avaliação de garotas conforme o seu nível de beleza, e o fato de que ele vem censurando a internet junto a dois criadores do Google de acordo com as suas próprias visões de mundo.

Os pedidos de resistência seguem atacando ainda o anti-semitismo, Nikki Haley (embaixadora norte-americana às Nações Unidas), o neo-fascismo (momento que ganha apoio em especial do público, além de algumas vaias esparsas), as alianças com tiranos, o complexo industrial militar, a oligarquia global, os lucros da guerra, as forças policiais militares, entre outros. Waters também pede que parem de silenciar Julian Assange, principal editor e porta-voz do WikiLeaks, pedindo que “deixem ele continuar sendo um bom jornalista.”

Após o intervalo, as chaminés da capa do Animals sobem no telão e se tornam reais por cima dele, criando o efeito de que a banda agora está tocando em frente à fábrica da clássica imagem e anunciando assim a sequência “Dogs” e “Pigs”, do álbum, seguida de “Money”, do Dark Side of the Moon. Durante esses sons, Waters ataca contundentemente o presidente norte-americano Donald Trump, chamando-o de porco e incluindo áudios e citações ultrajantes do milionário no telão. É durante essa sequência também que um porco inflável flutua pelo estádio com os dizeres “STAY HUMAN” de um lado e “SEJA HUMANO” de outro.

Em especial no show em Porto Alegre, a segunda parte do show ganhou um adicional ao espetáculo por parte da natureza, visto que uma chuva crescente começou a cair anunciando um forte temporal. Alguns relâmpagos durante “Us and Them” e “Smell the Roses” pareceram fazer parte do espetáculo grandioso de Waters, arrancando aplausos do público.

Após a sequência que encerra o Dark Side of the Moon“Brain Damage” e “Eclipse”, que contou com lasers por cima do público na pista premium que recriaram de forma visualmente deslumbrante o prisma da capa do álbum, Waters anuncia que irá pular direto para o final, com receio de que o temporal que se aproximava pudesse causar problemas tanto para o público quanto para a produção megalomaníaca do espetáculo.

E foi com a clássica “Comfortably Numb” que o músico de 75 anos se despediu dos brasileiros. “Sejam gentis uns com os outros”, disse ele antes de partir e deixar os 44 mil espectadores no estádio Beira-Rio à mercê de um temporal no mínimo simbólico, dado o tom apocalíptico do show.

O final do espetáculo ainda guardava um plot twist: após a saída da banda, o telão volta a mostrar a mulher sentada na praia que o público acompanhou durante quase meia hora antes do show. E é aí que o filme revela uma menina que chega correndo pelo lado da imagem, mostrando que o tempo todo estávamos observando uma mãe esperando calmamente enquanto sua filha provavelmente brincava e corria livremente pela praia.

Não é necessária uma sensibilidade à flor da pele para receber com emoção o privilégio de presenciar um dos grandes artistas musicais do nosso tempo em plena forma e inspiração. Ao tangenciar toda a sua apresentação com mensagens humanistas e sociais, dar atenção especial ao público fora da pista premium e usar simbologias que transcendem simplesmente a crítica política, Waters cria um zeitgeist musical e visual perante os nossos olhos e ouvidos. Praticamente um mensageiro do mundo real para um povo tão preso em um universo limitado e controlado por notícias falsas, violência, discursos legitimados de ódio e realidades distorcidas e descontextualizadas.

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31/10/2018

Rodrigo Laux

Rodrigo Laux