O disco solo coletivo de Russo Passapusso

28/08/2014

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Revista NOIZE

Por: Revista NOIZE

Fotos:

28/08/2014

Fotos: Filipe Cartaxo

Paraíso da Miragem (2014), disponibilizado para download na última terça-feira, é o álbum de estreia de um veterano. Reúne sem pretensão as influências que Russo Passapusso acumulou não só nos últimos 10 anos, seu tempo de carreira, mas resgata aquelas de sua infância no interior da Bahia. Há, na obra, as rimas do Russo MC, conhecido pelo seu trabalho com o BaianaSystem, mas se sobressai o lirismo de um menos conhecido Russo cantor. Influenciado pelo coro – dos vendedores da feira, dos fiéis da igreja – e pela tradição cantada da pergunta e resposta, fez de seu próprio trabalho um produto coletivo. Ao mostrar nas viagens a São Paulo antigas canções ao amigo e parceiro Curumin, feitas desde sua chegada em Salvador, viu na entrega novas possibilidades, entre elas a de gravação.

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Quando o disco aconteceu, foi natural essa coletivização de sua música entre todos os envolvidos no processo – como os diversos timbres que compõem a textura de um canto de coral. Os arranjos foram distribuídos entre ele e os três produtores (além de Curumin, Zé Nigro e Lucas Martins) e todos os músicos convidados (Jeneci, BNegão, Anelis Assumpção, Edgar Scandurra) deixaram nas faixas mais do que o som dos instrumentos, sua interpretação.

Batemos um longo papo com Russo e sentimos que nem todo o zunzunzum gerado pelo lançamento dos compactos em meados de maio abalou sua tranquilidade em relação ao trabalho. Paraíso da Miragem saiu do fundinho dele. Ou melhor, deles.

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Foi nas primeiras semanas em Salvador que as canções de Paraíso da Miragem começaram as ser escritas, como “Flor de Plástico”, mais próxima de um Russo cantor. Ao escutar o disco dá pra sentir uma certa cronologia, começa bem pessoal e onírico e depois se aproxima do trabalho já em curso, desenvolvido com o BaianaSystem, mais eletrônico, mais rap, mais reggae, mais rimado…

Ele tem exatamente esse caminho. Eram muitas as músicas compostas anteriormente. “Paraquedas”, que abre o disco, eu fiz pra contextualizar, pra apresentar esse grupo de músicos que a gente tinha escolhido. É ali que eu apresento o Paraíso da Miragem, que começo a montar a fórmula e construir esse mundo. Por isso eu fiz essa música depois. Gravando, dentro do processo do disco, foi inevitável a percepção de que tudo era uma coisa só, mesmo que trabalhando com pessoas diferentes, em lugares diferentes. “Autodidata”, a música que encerra, já entra no processo da rima, como as pessoas me veem em Salvador, com esse lance da experimentação, samba-reggae, ritmos tradicionais da Bahia, juntando com a world music do hip hop, raggamuffin, kuduro, esses ritmos mais eletrônicos. Eles entraram no disco e não é tudo separado, é uma coisa só, vem de uma célula só. Isso eu não tinha percebido, eu separava muito as coisas. Fazia a canção no violão em um determinado momento e o momento da rua e das rimas era bem separado. Mas com o processo de criação coletivo, pronto. Vi que tudo faz parte da mesma história e graças a isso hoje tenho uma liberdade bem maior.

O disco é solo mas tem muito de criação coletiva dos três produtores (Curumin, Zé Nigro e Lucas Martins), e os arranjos foram distribuídos entre vocês quatro. Essa entrega foi como uma continuidade do momento em que você mostrou as músicas pro Curumin? E como foram as participações?

Isso foi a coisa mais de entrega do disco: a partir do momento em que eu mostrei as canções, elas ganharam vida própria. Cada pessoa interpretava de uma forma, tinha experiências diferentes com o som e acabava se colocando nele. As participações de Anelis Assumpção, do Jeneci, eram as visões deles sobre o que eu tava falando. Eu dava o tema, mostrava a poesia, tocava no violão de uma forma bem rústica e a gente colocava na mesa as ideias de arranjo de forma aberta. É tudo livre, não seguimos rótulos, nem estética, nem nada, só a interpretação do momento. Tudo com a supervisão, a magia total, de Curumin, de Zé e de Lucas. Por isso que o disco tomou caminhos muito novos nas canções. Eu até hoje capturo pedaços de trechos nas canções, aqui foi fulano, aqui foi sicrano, tá tudo misturado e eu consigo sentir.

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Acha que o disco contraria os rótulos de leve, introspectivo, reflexivo que as pessoas tanto usaram quando saíram os dois primeiros singles? Ou mesmo nas canções mais pesadas (como “Remédio” e “Autodidata”) se mantém uma certa leveza?

Não sabia que eu era introspectivo, cara. Comecei a respeitar os rótulos por ver que eu era de fato tudo aquilo. Mas foi muito ligado ao que aconteceu no pré: minhas experiências de vida eram relacionadas com as músicas diretamente, aí entrou esse aspecto de introspecção. Eu ouvia essas definições e estranhava, não acredito que seja tão leve em alguns pedaços. Embora “Paraquedas” tenha pergunta e resposta, seja mais participativa, “Flor de Plástico” é uma poesia pequena, de um momento único, como se a pessoa conversasse sozinha. Era uma música doce sobre um fato forte, uma forma singela de ver coisas tristes da vida.

E assustaram todas as expectativas que o compacto gerou?

No inicio se criou muita expectativa mesmo. Imagina, a gente não gosta de contar com esse tipo de coisa, faz música sem esperar nada, de uma forma despretensiosa. E a grande sacada da música é isso, fazer a música pela música. A partir do momento em que se chama a atenção pra coisa, concentra uma energia. É uma relação muito do disco, dos músicos com a gente mesmo, o mais importante é a verdade da canção, da mensagem. Como estamos focados nisso, não abalou não. Pode ser “o novo isso”, “o novo aquilo”, rola muito isso com a música da Bahia, o mercado tem essa necessidade de fazer esses rótulos. É até bom você estar fazendo essa pergunta porque mostra que as pessoas entendem, que não precisa de tanta indicação. Quando você vai ver um filme achando que é o melhor filme do mundo, você tem mais chances de chegar lá e não achar o filme tão bom. Na real o disco é despretensioso.

Fui pra Salvador e quando voltei tinha alguns ensaios pra fazer o show da pré, do compacto, eu tava muito tranquilo e de repente chegavam as pessoas “nova música da Bahia”. “O que você acha do Axé?”, “o que você acha da Bahia?”. Como assim, cara? O que é Bahia pra mim? Eu tinha que começar a dar conclusões sobre coisas que estão em mutação, e eu respeito elas assim. Sou muito de odiar e amar, por isso não conseguia dar um rótulo, “a Bahia é triste porque lá a política é assim, bla bla bla”. O ponto de vista tem que ser muito respeitado em relação a musica, por isso que o Paraíso da Miragem só sugere, quem se identificar se identifica.

Como você apresentaria o disco para quem está prestes a ouvir?

Um disco verdadeiro, de histórias verdadeiras. Um disco que faz parte de um processo de autoconhecimento e que celebra o respeito entre os músicos, que procura falar de fé, de amor, de verdade, de carinho, de revolta… de sentimentos que todo mundo tem, com trechos de uma história de vida.

Se as pessoas entenderem, ouvirem e gostarem, eu agradeço muito. E a minha intenção é gravar mais. Gostei muito de realizar. De tirar de dentro. É um parto mesmo, eu não entendia quando a galera falava, mas quando você mostra a composição, ela vai. O Curumas é muito respeitador disso, da música como um ser vivo, e ele me ensinou bastante.

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“As músicas não nasceram pro disco, eu não ia fazer um disco, eu tinha as músicas por compor em casa, quando precisava desabafar, não achava que isso poderia acontecer. As vezes eu fazia composição, mandava pra Curumin, e nunca tocava, só quando chegava lá que ia tocar. O disco que eu tava fazendo era o do Baiana, mas as coisas foram acontecendo, por isso eu digo que é tudo reencontro, descoberta.”

Você completa 10 anos de carreira esse ano. O disco tem um clima de balanço desses anos, pelas canções antigas, ou de olhos no horizonte?

O disco pra mim funciona como um primeiro passo de reconhecimento comigo mesmo, não pelo mercado ou o público. É uma relação de respeito com a música e com quem ouve a música. A primeira coisa que vem com o lançamento é esse reencontro, uma regressão no sentido de voltar e reviver as histórias gravadas. Eu já tinha as músicas e entreguei pras pessoas darem as suas interpretações. Eu já tinha uma visão concreta, já imaginava a canção toda, mas a partir do momento em que outras pessoas começaram a imaginar comigo, vi outras formas e a música apareceu. Então é regressão, reencontro, e é muito feliz porque eu não ia gravar. Só quando fui cantando pras pessoas é que senti a necessidade de gravar, então acho que a grande coisa boa desse disco é a despretensão.  Ninguém sentou e falou “vamos fazer um disco”. Começou com a minha relação com o Curumin, de “Passarinho”, “Afoxoque”, Arrocha (2013), da minha relação com os músicos de SP, com o Guizado… a partir daí a gente foi construindo uma história.


Passarinho uma das canções mais elogiadas de Arrocha (2013), de Curumin, é de Russo Passapusso.

Uma coisa que me chamou a atenção no disco foram as vozes femininas. Você tem uma relação especial com a voz de mulher, a tradição do coro nos sambas?

As minhas imagens foram todas de coro, pessoas cantando juntas, pessoas perguntando e pessoas respondendo. O coro tem muita relação com a fé. A minha raiz musical foi da feira, pessoas cantando pra vender, da igreja, pessoas cantando hinos da harpa juntas, do canto pra chamar o gado, e o gado vem. Eu percebi que a forma que eu compunha era com um coro, um canta e o outro responde. Cantaram a Laurinha da Nenê e a Clara da Nenê – da ala de coro da Escola de Samba Nenê de Vila Matilde (SP) – e, nossa, não poderia ser melhor, indicação do Curumin. Foi algo que a gente descobriu fazendo o disco e mais ainda depois que ouviu, quando via todo mundo cantando, eu, o Zé e o Curuma. Isso foi percebido depois e eu fiquei bem feliz, fala de união.

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E como está sendo a adaptação do estúdio para o palco?

Tá sendo agora, tá muito novo. O pré-lançamento com o Ganja foi bem cru, mas já deu pra enxergar. Agora a gente parte de outro ponto, fazendo a parte mais crua, na viola, pra irmos repassando e montando as imagens, pensamos em cenas e vamos ao som. O resultado vai ser bem sem maquiagem, sabe?

Já existem datas de turnê?

Por enquanto só o dia 11 [show de lançamento no Sesc Vila Mariana, em São Paulo]. A relação que eu tô tendo é muito interna, não espero nada do que os outros vão achar, pra mim é estranho ainda. A pré foi vivida, não teve muito tempo de ensaio. E agora tá dando pra dar um tempo, entender.

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Como foi a pré e o processo de gravação?

Toda a vez que eu vinha com o Baiana pra cá, eu ia pra casa de Curuma, que tem um estúdio. A gente ficava tocando, gravando, ouvindo, aí fui vendo a música nascer. Antes ela tava só dentro de mim, depois todo mundo começou a construir a história, rolou um desapego. Aí Curumin falou “tem três, quatro, cinco músicas, vamos colocar no edital da Natura. Se passar a gente lança o disco, senão a gente continua”. Não tinha nem uma data marcada: quando eu vinha pra SP eu ia lá, fazia isso, fazia aquilo, fazia nada. Quando passou que veio a história do disco, o susto. “Caralho, mas eu não canto. Que isso? É samba, não é samba, é rock, eu faço rock? Mas vamo nessa, respeita…”. Passei 24 dias focado em gravar as músicas. E Curumin fez, com Zé Nigro e Lucas, a mágica. Por isso que eles são produtores e parceiros do disco, tem interpretações deles ali que são muito fortes. As composições são minhas, eu canto, mas eles estão em tudo. A gente canta em coro, e quando você canta em coro acaba pegando o cacoete um do outro. A gente gosta de cantar junto a música pra sentir.

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“O disco caminha por vários momentos, tem o lance do rock, Jovem Guarda e Zé Rodrix, samba soul, tem a coisa dos beats de ‘Autodidata’, tem samba de roda em ‘Matuto’, tá cheio de imagens. Eu fico olhando e penso “nossa, quanta coisa”, sambas que se transformaram, trouxeram a carga do soul junto. As músicas nasceram mutantes e continuaram mutantes, ainda tão se mostrando pra gente.”

É difícil não pensar no Criolo, que também era de um terreno bem segmentado e lançou um disco cheio de influências de sons nacionais…

Eu acho sensacional isso, é o que a gente fala hoje da música livre, não ficamos nem quebrando rótulos, é natural. Não é cantando samba canção que a gente deixa de ser MC, nem cantando rap que deixa de ser sambista. Mais importante do que ver o que a pessoa tá fazendo é ver a essência da pessoa, a história que ela tem pra cantar. Vejo isso muito em Criolo, vejo isso muito em BNegão. E isso faz total sentido, o hip hop trabalha com samples de samba e é totalmente justificável que tenham músicas sampleadas de toda essa história. Sempre gostei muito, sempre fui apaixonado por Cassiano, Paulo Diniz, Música Popular Brasileira, e quando eu cheguei em Salvador as pessoas ouviam muito isso em vinil, era bem a época do Tim Maia Racional e quando ouvi tudo isso deu um “bum”, entrei em contato com todas as influências da música tradicional de Salvador e aí comecei a fazer tudo. Enquanto isso, dentro de casa contava as histórias da minha vida, das coisas que eu aprendia com as pessoas, do mundo, das experiências, tentava registrar e tirar aquele sentimento, como uma oração, uma contribuição. Fazia pra mim, mostrava pras poucas pessoas que confiava ou que tavam em casa, e de repente fiz o disco. Fiquei “pô, nao acredito”. Agora que tô entendendo o disco, o recado dele pra mim mesmo, ainda não tenho uma opinião formada.

“Autodidata” mostra que o disco termina atirando pra outro lado, diferente do que começou.

A gente foi fazendo e foi mutando. Algumas pessoas entenderam e eu me assustei com isso. Gostando ou não gostando, conseguir captar a mensagem já é vitória. “Autodidata” vem do meu trabalho e do trabalho de muitos músicos que tão ai, Criolo, BNegao, as formas de fazer canção e desenrolar a linguagem é algo muito deles e uma característica muito brasileira também. Pouca técnica, pouco aparato, mas uma necessidade de expressar que faz com que a coisa saia de uma forma verdadeira e singular.

Dividi com o Curuma minha forma de tocar violão – eu não toco violão, mas toco violão – minha forma de compor, de montar uma cena com outra cena, de ouvir versos e juntar momentos, até vir a poética da coisa, o Paraíso da Miragem. Quando eu cantava pensava em mim conversando comigo mesmo, depois veio a outra pessoa, o diálogo com o outro se construindo.

Os projetos estão parados ou tá tudo rolando?

Tá tudo rolando. O Ministereo Publico rola toda a quinta-feira, forte com a cultura do vinil, sobrevivente e muito atuante em Salvador. O Baiana também, a gente tem tocado, nos encontramos muito, firmes e fortes como sempre foi. Depois que o disco surgiu parecia que eu fazia outra coisa, mas eu sempre fiz isso. Sempre fiz várias coisas, como todo mundo faz várias coisas, músico, produtor, faz isso, faz aquilo.

Na época do lançamento do compacto, você disse que a forma ideal de escutá-los era em vinil…

Isso me ajudou a entender a ideia do que era o disco. Foi muito bom ter o single de “Flor de Plástico” e “Paraquedas”, não tinha como ser outro formato. É a maior alegria do mundo, a atmosfera do disco é total vinil. Tô amarradão no processo, a capa vem colada com a estética do vinil mesmo.

E vai continuar morando em Salvador?

Vou, vou, vou. Quero continuar em Salvador, conhecer mais músicos, incluindo o que eu já conheço. E tocar, fazer esse show, conviver mais. Viajar, voltar. Estamos bem tranquilos com esse modus operandi.

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28/08/2014

Revista NOIZE

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