Saulo Duarte e a Unidade através da ruptura

03/10/2016

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Nicolas Henriques

Por: Nicolas Henriques

Fotos: Victor Petresche

03/10/2016

Saulo Duarte é um cara que preza a amizade. Suas músicas sempre falam sobre o poder de nos unirmos, de contarmos com os nossos pares em momentos difíceis e acreditarmos que, através da união entre pessoas que se amam, coisas boas sempre acontecerão. Não é preciso alongar sobre o quanto isso é importante nos dias de hoje, por isso seu show, no frio sábado que antecedia as eleições municipais, se fazia tão necessário.

Mal a cortina termina sua abertura pontualmente às 21h, o baixo já começa a desferir porradas graves em nossos tímpanos. A banda está completa com seus sete amigos: Saulo Duarte (voz, violão, guitarra), João Leão (teclados, vocais), Klaus Sena (baixo, vocais), Beto Gibbs (bateria, vocais), Betão Aguiar (Guitarra), Tulio Bias (percussão, vocais) e Igor Caracas (percussões, vocais). Uma fã ao meu lado se mostra empolgadíssima e canta alto, curtindo ver seu ídolo ali ao lado. Olha para a amiga e diz “ele é incrível! Olha isso!”, enquanto o cantor canta “Meu Sangue”, música que inaugura o show mostrando exatamente toda a força da amizade para Saulo: “Não estou sozinho / eu tenho os meus amigos / posso me libertar”. Para terminar, emenda um pouco de Bob Marley, algo recorrente em seus shows, sempre muito bem interpretado.

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Quando luzes vermelhas baixam sobre o palco, Saulo deseja boa noite para a plateia, ele também vestido completamente em rubro. É a vez do single “Na terra vermelha”, cantada em parceria com Russo Passapusso e Curumin, este presente na plateia. Chamando a galera pra dançar logo na segunda música, que ouve o pedido e se levanta, afinal o show de Saulo não combina muito com a inércia, o cantor imita Russo Passapusso nos versos do cantor baiano, e termina repetindo o verso final de “vai lá pra ver” às palmas das pessoas e som das percussões. Logo em seguida, o espírito de Dominguinhos baixou no Sesc Pinheiros, quando a grata regravação de “Arrebol” entra em cena, numa versão um pouco mais roqueira, com direito a um solo de guitarra no bridge, guitarra essa com ares de algo próximo a um acid blues (existe isso?).

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Saulo grita reggae music e começa “Essa força”. O palco inteiro ganha ares de Kingston e somos transportados para um baile em alguma casa de dub na capital jamaicana. Ou pelo menos é isso que imagino. As luzes em vermelho, amarelo e verde, cores da bandeira rastafári povoam o palco, enquanto banda e plateia entram no clima de esperança que a própria música levanta. Durante uma pausa sob luzes azuis ao fim da canção, o cantor agradece a presença de todos e anuncia o processo de construção do excelente Cine Ruptura, álbum mais recente do cantor que também apresenta uma quebra sutil entre o que fora feito produzido anteriormente. Começa “Claridade”, aqui mais acelerada e pra cima, lembrando som dos discos anteriores, pois, em estúdio, Cine Ruptura marca os sinais de nossos tempos mais tensos e reflexivos.

Ao fim do acelero de “Claridade”, tivemos o momento perfeito para celebrarmos as músicas de “Quente” e de “Saulo Duarte e a Unidade”, primeiro álbum da banda. A sessão nostálgica começa com “Me dei conta”, música que, para mim, tem dos versos mais gostosos e bonitos da música brasileira recente: “Morena você é toda piscina”. É daquelas frases que dá vontade de dizer sempre, de mergulhar também nos olhos e em toda a pessoa que se ama e se quer aprender junto. Antes de terminar, para homenagear seu grande parceiro na plateia, Saulo emendou um “Afoxoque” e gritou um viva, Curumin, para a plateia. Após o mashup entre a Unidade e os Aipins, chega a vez de começar “Na companhia dos seus”, música, peço perdão pelo palavreado, muito fodida, com uma baita energia maravilhosa no ar. É daquelas músicas que dão vontade de dançar sem parar por dias e dias sem fim, com um final tão eletrizante que era perceptível ver as fagulhas dos corpos dançando e roçando ao pé da palco. Até aqueles que estavam sentados também dançavam muito.

Saulo começa um discurso sobre o processo do álbum e agradece a produção de todos que participaram, como cada compositor também deu seu toque pessoal a esse processo colaborativo de amigos que se uniram para fazer algo grandioso. Sem perder o bonde, anuncia dois grandes amigos seus, Daniel Medina e o percussionista da banda Igor Caracas como os compositores de “Quem quer seja”, a porrada abre alas do último álbum.

Quando luzes verdes e azuis povoam o palco como uma floresta feérica, o clima de suspense no ar anuncia a entrada de mais uma grande amiga, participando exclusivamente desse show com sua figura hipnotizante e performática. Uma intensa luz que brota no palco e paira no ar. Ava Rocha entra sorrateira pela esquerda, sussurrando. Ao ficar no meio do palco, começa “Você não vai passar”, música de Ava Patrya Yndia Yracema, excelente álbum do ano passado de Ava. O ar de baladinha ingênua da música contrasta com a letra que apenas te faz sentir como o sujeito que recebe essa canção, sabendo ser o eterno merdão de um relacionamento. Da vida de alguém. Sensação horrorosa, que nos faz pensar em nunca sermos vistos ou colocados nessa posição na vida de ninguém.

Após o tapa na cara inicial, começa a segunda música de Ava, “Mar ao fundo”. Música que possui, assim como todo o álbum da cantora, certa singeleza absurda, algo abstrato e complexo, mas impecável em sua estética que nos causa estranheza e conforto . A iluminação, inclusive em silhueta no final, complementa o tom caótico da música. O fundo do mar traduzido em luz. A luz do show, inclusive, estava impecável. Para fechar a participação de Ava Rocha, ambos cantam “Angorá, agora de “Cine Ruptura”. Com a despedida da cantora, o show volta ao ritmo acelerado desse carimbó fusionado com tudo da banda, com “Bamba” e seu reggae pesadão dando o tom. Mais uma vez o espírito de Bob volta a incorporar o cantor, que começa a pular com os joelhos altos e chacoalhar a cabeça, movimento característico do ícone jamaicano. Saulo, como que xamanicamente incorporado do espírito rastafári, declama que “o mar é o destino de todos os rios”, em mais outra bela frase, cheia de nuances e complexidades, como as próprias curvas do mar. A música acaba e luzes se apagam. Antes da plateia aplaudir, agora acappela, Saulo volta com o refrão por uma última vez. É o mar que volta para os leitos vazios como chuva, anunciando também o que seria a melancolia da próxima canção, a bela “Uma música”. O tom mais sério e soturno da música ganha a esperança do reggae como a própria letra denuncia. Apesar de tudo, as coisas darão certo.

O cantor apresenta a banda de amigos, que, mais do que necessariamente parceiros de estrada, tornaram-se amigos para a vida, pessoas que estão ao lado no dia a dia em todas as situações. Assim como é também o Sesc e seu apoio pelas bandas independentes, cena da qual o cantor se diz orgulhoso de poder participar e fazer um show no mês de aniversário da instituição.

Ao encerrar o discurso, o cantor deixa aquele recadinho para todo mundo que fica só naquela enrolação de cozinhar o outro, mas sempre sacaneando em cima. A excelente – e bem humorada – “Manda ela comprar um iglu” começa, com uma bateria mais de axé. Assim como a guitarrada que se inicia, e, jocosamente é interrompida pelo cantor, de “Mistério no olhar”, que encerra antes do momento do bis o show com pouco mais de setenta minutos.

Quando volta, começa a cantar, como numa roda entre amigos, “Cachaça”, música da cultura popular nordestina, famosa no ritmo dos Matingueiros. Antes de acabar, começa “Flores pelo ar”, seguida pela lindona – e constantemente pedida pelo público – “Zonzon”. Com uma hora e meia de show, a banda se despede com a percussão sendo o último ritmo, para lembrarmos que o batuque não pode parar. Que, aconteça o que acontecer, ainda teremos nossos amigos, que darão o ritmo e o tom para as nossas realizações. São neles que temos que nos ancorar nos momentos difíceis.

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03/10/2016

Sou pesquisador e escrevo resenhas de shows pagando de crítico musical porque gosto muito de música e minha verdadeira intenção era ser multi-instrumentista ou vocalista de alguma banda. O problema é que falta habilidade para tocar até campainhas mais complexas e meu alcance vocálico lembra uma taquara rachada.
Nicolas Henriques

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