Sobre sons de crianças, de pássaros, de vozes que parecem vir de florestas ancestrais das Américas e da África, João Bosco entoa repetidas vezes o canto yanomami: “waruku waruku waruku këëi moramakī waruku waruku waruku këëi” (“boca cheia, boca cheia, boca cheia, boca cheia de frutas, boca cheia, boca cheia”). São os últimos instantes de “Boca cheia de frutas”, disco de canções inéditas que o artista lança pela Som Livre e pelo NRC+ em vinil.
Portanto, na sinfonia que entrelaça a terra e o humano, João amarra no último ato de seu álbum o sentido exposto no título: “Boca cheia de frutas”. O anúncio da fartura de cores e sabores, do que nasce do solo tornado alimento, do fim da fome e das fomes todas. Metáfora de futuro auspicioso, vindo não por acaso em língua indígena, num momento em que fica cada vez mais evidente que é dos povos originários que virá o adiamento do fim do mundo. A sabedoria de ver o futuro que a origem guarda. Sabedoria que o compositor desde sempre destila nas cordas de sua garganta e de seu violão.
Sua voz e seu instrumento, sábias de tempo na plenitude de seus 77 anos, são frutas que se apresentam na enorme boca do álbum. Assim como são frutas os legados de Aldir Blanc e Tom Jobim celebrados ali. Os orixás invocados. Os dinossauros do samba. O renascer após a ruína da alma. João Gilberto, fruto do Juazeiro. O bilhete de amor que podia ser pra você. A descrição da magia vulgar e da vulgaridade mágica do nascimento de uma canção. O cio da terra, eterno.
“Boca cheia de frutas” é, assim, um disco sobre o Brasil. O país da distopia de “O canto da Terra por um fio”, de rios asfixiados, da mata que arde. O país que se revela nos versos de “Buraco”, inspirados na história real do indígena que viveu isolado, morreu num buraco e “ao não se mostrar/ mostrou o Brasil”. O país da ausência, do vão. A boca sem nada, enfim — essa mesma que se projeta aqui cheia de frutas, boca farta que também é o Brasil. O país opulento que, no álbum e na mente do artista, se sobrepõe àquele outro, oco. No sonho de João, o vazio é berço da abundância.
Queria começar essa conversa falando do nome Boca Cheia de Frutas, originário de um verso indígena. O que ele anuncia?
Esse verso Yanomami, “waruku waruku waruku këëi moramakī waruku waruku waruku këëi” [“boca cheia, boca cheia, boca cheia, boca cheia de frutas, boca cheia, boca cheia”] é de uma música cantada por crianças. Aponta para um ambiente fértil, esperançoso. Quando nós fizemos “O canto da terra por um fio”, que é algo que se coloca do lado oposto dessa expectativa que as crianças cantam, eu resolvi incorporar isso, mas não com as crianças cantando, e sim um adulto. No caso, eu. Então, quando eu canto essa canção, é um adulto querendo ver as transformações na direção da esperança. E outras coisas no disco amarram essa ideia.
Quando gravei “Dandara”, coloquei uma palavra na introdução, “obi”, um fruto indispensável nos rituais do candomblé, que traz esse sentimento afro-brasileiro. E, como nós estamos num país tropical, cada região do Brasil produz frutos diferentes. Você estar com a boca cheia de frutas também significa você estar se conectando com essa nação. Tem algo simbólico em “boca cheia de frutas”, de passar uma ideia de um amanhã, uma luz no fim do túnel.
Como o disco começou a nascer?
É muito difícil dizer. A música vem em fragmentos. Uma hora, você olha pra ela, ela olha pra você e há uma identificação. Agora, como isso acontece? A gente não sabe. A gente só espera acontecer. Você pode provocar evocar. Uma hora vem. Não sei quando eu comecei a chamar pelas coisas, mas elas me ouviram em determinados momentos e me atenderam. Isso virou uma crença e um exercício. Drummond utilizava muito a palavra “madureza” para falar de algo que vai se consolidando. Eu adoro essa expressão. As coisas passam por um processo de procura árdua, de trabalho duro. E depois vem um período que é a madureza, a maturação dessa dificuldade, dessa procura. E isso, então, vai se transformar, de uma forma mágica, em algo bonito, agradável de ouvir, ou que te chama a atenção, que te transporta. Acho que é isso: você está disposto a encontrar a coisa, pronto para recebê-la, trabalhando duro para que isso aconteça e de repente o sonho se dá.
E que canção fez você pensar que talvez o sonho desse disco estivesse se aproximando?
Quando eu e Chico [Bosco] fizemos “O canto da terra por um fio”, fiquei tocando essa canção e achei que eu tinha fragmentos de outras coisas que conversavam com aquilo. Eu tinha uma letra do Aldir que eu não tinha musicado, embora ele achasse que sim… Eu estava vendo o livro de Luiz Fernando Vianna sobre Aldir, vi que tinha uma letra lá que estava creditada “João Bosco e Aldir Blanc”. Eu não me lembrava, então acabei fazendo uma música nova pra ela. Tinha outra canção que eu tinha feito com o Roque Ferreira, “Dandara”. Eu já tinha essa música, já tinha “O canto da terra por um fio”, já tinha essa com Aldir… Eu tinha gravado primeiro “O canto da terra por um fio”. Não sabia se eu ia continuar além daquilo. Mas eu continuo sempre [risos].
Um dia, o Chico chegou aqui em casa, e eu falei: “Olha, eu tenho mais duas coisas aqui que eu posso mostrar”. Ele ouviu e disse: “Você tirou isso de onde, cara?”. Eu falei: “Tenho outras também”. Eu guardo no bolso. Às vezes guardo no bolso do tempo, esqueço pra lá. Aí um dia enfio a mão e tiro. “Ah, tem uma coisa nesse bolso aqui”. Olha, cara, eu nunca tive um gravador para registrar as minhas coisas inéditas. Eu sempre tive os meus bolsos. Se algum bolso estava furado e ela caiu na rua, era porque ela realmente não servia, o destino dela era esse. Quando elas ficam, é porque elas são perseverantes.
Ao lado da ideia da boca cheia de frutas, esse lugar de abundância futura, no disco você olha muito pra ancestralidade. Seja no samba, seja na questão indígena ou negra, você está sempre apontando pro ancestral. Qual é a importância da ideia da ancestralidade pro disco e pra sua música de uma maneira geral?
Nós não somos nada se nós não temos noção da ancestralidade. Se nós não sabemos de onde viemos, para onde vamos? Eu me encontrei com a ancestralidade na primeira vez em que eu vi a Clementina de Jesus. Foi a solidificação da existência da ancestralidade. Ouvia aquilo pela primeira vez e não estranhava, não era uma coisa que eu desconhecia. Quanto mais ela cantava mais eu crescia dentro. Eu ia me agigantando dentro de mim. Aquelas coisas já existiam dentro de mim. É a ancestralidade. Você traz dentro.
O que vocês buscavam na sonoridade do disco? Como queriam que o disco soasse?
Eu já estava há algum tempo pensando no Tom Jobim. Depois daquele show do Carnegie Hall, o Brasil se mostra para o mundo e o mundo vê o Brasil. E descobre a grande música brasileira. Entre outras coisas, vem o The Composer of Desafinado, Plays (1963), do Tom. O Chris Taylor, que era o produtor, resolve fazer um disco instrumental no qual o Tom toca o piano e o violão. E você tem um baixista, um trombonista e um flautista. E esse é o disco. É preciso olhar atentamente para essa formação. Quando morei em Ouro Preto, eu tinha uns 12 discos que andavam comigo. Eu tinha uma vitrolinha, cuja tampa era o alto-falante. E entre esses 12 discos estava o The Composer.
Era um disco que me espantava muito, pela forma como o Jobim tocava as músicas dele, só com a mão direita do piano. E eu fiquei um tempo pensando sobre isso. Ele não usava a mão esquerda porque tinha o violão. Então, o violão fazia a harmonia que a mão esquerda do piano normalmente faz. Em Boca Cheia de Frutas, essa é uma das minhas frutas, que eu trago comigo. Na canção “SobreTom”, o violão faz a parte harmônica do piano, o piano só faz a melodia, o baixo é acústico, o trombone é aquele e a flauta é aquela que tá no disco do Tom. Então, é uma homenagem a essa madureza, a esse momento mágico da música brasileira. Mas nada foi planejado. O disco começa a definir a sua sonoridade aos poucos, como um descobrimento. Você não descobre algo de repente. As embarcações estavam indo para as Índias e acabaram descobrindo o Brasil.
Além da homenagem ao Tom, tem uma homenagem ao Aldir no disco, “Gurufim”. Fale dessa canção.
Como a morte dele foi numa pandemia, não pudemos nos despedir. “Gurufim” foi uma espécie de despedida. O Chico [Bosco] e eu falávamos sobre isso, sobre a necessidade de uma canção para o Aldir com essa finalidade.
Nesse disco, você trabalha nas introduções com uma característica do seu canto, no qual mesmo que você não diga palavras propriamente, com um sentido declarado, há uma intenção muito nítida naquelas sílabas. Às vezes é um lamento, às vezes uma celebração. Queria que você falasse um pouco da importância desses vocalises para o disco.
É verdade. As coisas ora são dramáticas, trágicas, ora elas são ligeiramente alegres, suaves, ora elas são claramente tensas. Elas têm nuances. Eu acho que as vozes, com seus fonemas, suas inflexões, elas te direcionam para um lugar. Um lugar onde a música vai acontecer.
Uma espécie de preparação de terreno?
Exatamente. O assobio na canção com Aldir, “Dias que são assim”, é isso também. Ele traz a falta que me faz o Aldir. Se eu tivesse musicado essa canção naquela época em que ele estava aí, talvez ela fosse diferente. Talvez não tivesse nem o assovio. Porque eu assobio como em “Vida noturna”, uma canção que ele adorava. Ou “Me dá a penúltima”, outra canção que ele adorava. Quem sabe eu não quis fazer uma canção pra ele gostar? Eu pedi a Cristóvão que fizesse um solo que fosse “Tive sim”, do Cartola. Porque quando eu conheci o Aldir, essa era uma das músicas que ele gostava que eu o acompanhasse cantando. Toda a festinha de violão que a gente ia, ele dizia pra mim: “dó maior”. E eu já sabia que era o “Tive sim”. Então, tudo naquela canção foi escrito pra ele.
O assobio e o piano têm uma intenção. É como o que faço com as vozes. Gosto de trabalhar com as vozes porque escuto grupos indígenas ou africanos cantando e me emociono muito com os intervalos. E aquilo, às vezes, é cantado em idiomas que você não conhece. Mas a maneira como eles cantam, aqueles intervalos, é tudo tão bonito. Então, aquilo te diz tanto sobre você e o seu passado, que você usa aquilo pra você criar o seu futuro. Tudo é uma grande linha que se fecha.
Esta matéria foi publicada originalmente no livreto que acompanha o álbum “Boca Cheia de Frutas”, lançado pelo NRC+ em 2024.
João Bosco anunciou a tour do disco lançado pelo NRC+, com primeira parada no Vivo Rio, no dia 23 de maio. Depois, segue para Porto Alegre (30/05), São Paulo (07/06), Salvador (15/08) e Belo Horizonte (06/09). Confira ingressos para shows já disponíveis:
Rio de Janeiro:
Data: 23 de maio de 2025
Horário: 21h00
Local: Vivo Rio
Endereço: Avenida Infante Dom Henrique, 85 – Parque do Flamengo, Rio de Janeiro – RJ
Abertura da casa: 20h00
Ingressos: A partir de R$ 60,00
Vendas: Ticket360 – João Bosco no Vivo Rio
Porto Alegre
Data: 30 de maio de 2025
Horário: 21h00
Local: Teatro do Bourbon Country
Endereço: Avenida Túlio de Rose, 80 – Passo d’Areia, Porto Alegre – RS
Abertura da casa: 20h00
Ingressos: A partir de R$ 125,00
Link para compra: Uhuu – João Bosco em Porto Alegre
São Paulo
Data: 7 de junho de 2025
Horário: 21h00
Local: Teatro Bradesco
Endereço: Rua Palestra Itália, 500 – Perdizes, São Paulo – SP
Abertura da casa: 20h00
Ingressos: A partir de R$ 50,00
Link para compra: Uhuu – João Bosco em São Paulo