Elza Soares: a mulher do fim do mundo

06/10/2015

Powered by WP Bannerize

Nicolas Henriques

Por: Nicolas Henriques

Fotos: Victor Petreche

06/10/2015

Elza Soares lançou um dos melhores discos do ano. Não é exagero nenhum dizer isso. Talvez um dos melhores de sua carreira. Aqui talvez haja algum exagero, mas mais pela falta de conhecimento do que pelo arrebate causado pelo A mulher do fim do mundo. Em seu primeiro disco com apenas músicas inéditas, Elza resolveu se unir ao equivalente Globetrotter da música contemporânea paulistana, um dream team que conta com Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Rodrigo Campos, Guilherme Kastrup, Felipe Roseno, os metais do Bixiga 70, as cordas do Quadril e a poesia de Rômulo Fróes. É um time impressionante que, com a voz rasgada e singular de Elza, realizou um trabalho único. Sem rasgar mais seda do que já estou rasgando para esse show, fui no domingo até o Auditório do Ibirapuera, um baita lugar, diga-se de passagem, para acompanhar a segunda apresentação de Elza.

*

O Auditório do Ibirapuera e sua arquitetura lindona de Niemeyer naturalmente geram um clima solene a qualquer espetáculo. As rampas de acesso ao palco, a imensa escultura vermelha que se alarga como asas, seu formato icônico. Quando me sentei, quase tive a sensação de que as bermudas que trajava não estavam erradas apenas pelo frio repentino que a noite trouxe. Um vídeo apresentava toda a banda como se fossem créditos iniciais de uma grande ópera. Já dava pra saber da magnitude do que estaria prestes a presenciar.

Quando as cortinas se abriram, após uma introdução do quarteto de cordas onde nada se via, mas tudo se esperava, notou-se um palco poderoso: num primeiro nível, térreo, o quarteto de cordas centralizado na frente, Felipe Roseno à esquerda, Kastrup à direita cuidando da percussão e bateria, respectivamente. Num segundo nível, um pouco mais alto, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos ao lado canhoto do palco; Marcelo Cabral, só, empunhava seu violão e sintetizadores no lado oposto. E, acima de todos, soberana, rainha de si, a mulher do fim do mundo: Elza, com cabelos roxos, sentada num trono acima do bem e do mal, com um vestido tal qual raízes de um galho metálico, ou teias de uma viúva negra, escorregando por sobre as escadas, passando pelos músicos e morrendo na ponta do palco, no limite do fazer artístico. Parecia quase uma obra de Tunga esse vestido magistral, ressoando com um vídeo ao fundo de ruídos e teias vibrando conforme “Coração do Mar” tocava.

Mal a plateia tinha absorvido o momento do término da primeira música, entra a poderosa canção-título do álbum. Um grito quase lamúrio na voz de Elza trovoa pelo auditório todo. “Me deixem cantar até o fim” funciona para todos ali. Não que alguém colocaria algum impeditivo em Elza, quem seria capaz disso?, mas sente-se como um grito de liberdade de quem está aí sendo das vozes mais poderosas da música brasileira, representando a periferia, a mulher, negros e marginalizados há mais de 50 anos.

Começa “O Canal”, música de Rodrigo Campos, cantor sensacional que, pra mim, tem sempre algo de calmaria em sua voz. Por mais que a letra seja pesada, intensa, a suavidade de Rodrigo transforma tudo em marola gostosa. Na voz de Elza, essa breve sensação de paz se perde, vira tormenta, rebentação. É alto-mar em noite tempestuosa, que sabemos a importância de sair dali vivos para, em seguida, atingirmos um estado maior de saber e paz. Senti, enquanto Elza cantava, que as músicas do álbum foram feitas pra gerar estranhamento. Achei realmente lindo ver uma artista consagrada ainda se reinventando e juntando toda sua experiência com pessoas de talento imenso, mas de outra geração, sem aquele ranço que temos em muitos campos artísticos, ou na própria vida, de que não se faz mais como antigamente, aquele saudosismo tolo.

O quarteto de cordas Quadril retira-se em “Luz Vermelha”. A guitarra de Kiko, a bateria de Kastrup e a percussão de Roseno criam um samba líquido e difuso, com uma repetição caótica que quase nos faz entrar num mantra budista psicotrópico e urbana, mas, ao mesmo tempo, africano. É um som complexo e quebrado, mas harmônico. A voz rasgada de Elza no refrão atravessa as malhas que cobrem nossos corpos nesse frio fim de domingo. As imagens atrás se esfacelam em chamas, não há mais uma teia se sustentando bravamente contra o rufar dos tambores e graves do baixo. Tudo vira fogo, e as coisas que perdemos pelo caminho se sobressaem, apresentando-nos um espelho em que restamos só.

Com o arrebatador início calcado apenas nas canções do álbum mais recente, chegou a vez de Elza Soares cantar “A Carne”, música do álbum Do Cóccix Até o Pescoço (2002) com sua letra carregada de política, sombra dos oprimidos, grito do desespero e chamado para nos olharmos e acompanharmos o racismo que persiste em cada momento cotidiano de nossas vidas, em cada pequeno ato que, inconscientemente, quero acreditar, fazemos: no fechar de janela, no atravessar de rua, no segurar o celular ou apertar de mão mais firme da companhia. As luzes azuis e verdes em tons frios e escuros aumentam a dramaticidade da canção.

_MG_0120

O fim de “A Carne” gerou certo silêncio, que Elza aproveitou para elogiar uma das mentes por trás do álbum, aproveitando o momento para também convidá-lo ao palco. Rômulo Fróes sobe para fazer um dueto em “Dança”, música que vira uma bomba pulsante com a bateria de Kastrup no refrão estourando tímpanos e aproveitando toda a concha acústica do auditório. Parece que estamos olhando, naquele espaço fechado, um coração se acelerando ao ponto de enfartar, mas isso nunca ocorre, graças a voz doce e suave de Rômulo, quebrando a música, elevando-a a um estado desconcertante, de um samba que existe sem querer nos fazer sambar. Quando Rômulo sai, tal qual uma peça de teatro estrelada, entram quatro membros do Bixiga 70 para tocar “Firmeza?”, cantada em parceria com Rodrigo Campos. Luzes amarelas reluzem e expandem o naipe de sopros do Bixiga, gerando sombras reluzentes douradas nas laterais do auditório, tornando-os gigantes a altura da apresentação. Elza termina a canção falando que A Mulher do Fim do Mundo nasceu desse encontro com o “irmão moleque” Rodrigo Campos.

A próxima música é “Maria da Vila Matilde”, música que, na minha humilde opinião, é a melhor do álbum. Letra do gênio Douglas Germano, sambista que tem um álbum maravilhoso, Ori, que recomendo a todos. Essa música é impossível ouvi-la e não conjecturar algo na relação amorosa entre Elza e Garrincha, mesmo que as referências contemporâneas não a tornem um registro real do passado. As luzes vermelhas e o clima de desastre anunciado no final improvisado apenas reforçam, principalmente quando a cantora grita, em tom de deboche, “Sai pra lá, mané”. Quando a música acaba, Elza fala para todas as mulheres da plateia jamais esquecerem do 180, da Secretaria de Políticas para Mulheres. É aplaudida por todos.

Solta, a cantora começa a falar que gostaria de saber de Kiko Dinucci qual o motivo da próxima canção ter sido escrita do cantor para ela. Kiko apenas deixa no ar e começa a cantar “Pra Fuder”. A cuíca acelerada e os metais criam uma sensação de sexo intermitente em meio a um cenário caótico de centro da cidade. Vem uma imagem de carros correndo pra cima e pra baixo, daquela clássica fotografia de um centro onde todas as luzes parecem se encontrar em riscos verdes e amarelos, elas mesmas apressadas para bater num ponto sólido e iluminar o caminho adiante. Todas as musicas possuem várias transições e mudanças de clima. Exigem dos músicos virtuosismo apurado. É possível notar a dificuldade e complexidade do álbum apenas olhando para todos os instrumentos de percussão na batuta de Felipe Roseno. Praticamente uma mudança inteira esconde-se sobre seus tambores e batuques.

Sintetizadores pesados anunciam o início de “Benedita”. Um ser esguio e lascivo entra no palco como possuído, contorcendo-se demoniacamente. Sua voz de Ney Matogrosso e seus trejeitos dionisíacos complementam a letra sobre a força da cafetina trans Benedita. Há uma força sexual e dramática em cada gesto catártico do apoteótico Rubi. O cantor e ator dança e se enovela nas tramas intermináveis do longo vestido de Elza. Acaba morto no palco, estirado sobre o vestido, enquanto o quarteto de cordas volta e começa “Malandro”, de Jorge Aragão. Samba suave e melancólico, luz azulada fria remete a introspecção. No refrão, Rubi começa a se arrastar vestido acima, peregrina até sua padroeira Elza. Temos um retrato de uma Pietá de ébano, maior que qualquer Jesus Cristo.

Em “Solto”, a cantora homenageia Marcelo Cabral, responsável pelos arranjos de corda do álbum. O até então baixista empunha um violão de 7 e senta-se, enquanto Kiko junta-se ao músico e vai para o sintetizador. Rodrigo Campos sai e, com poucos músicos no palco, percebe-se uma música mais minimalista. Quase de câmara. Mas sempre há uma contemporaneidade atemporal na voz de Elza que desloca a música para um eterno estado de agora. Soarei ousado, mas seria diminuir a música configurá-la apenas como de câmara. É transgênera. Quando ela acaba, entra o momento mais bonito do show.

O sintetizador pesado, causando ruídos desconfortáveis, alto, quase uma broca de dentista ligada em amplificadores potentes, começa a ser tocado. Luzes fortes e claras, dum amarelo-halo se abaixam e todos os músicos e responsáveis pela produção do show entram no palco. No entanto, são apenas silhuetas. Não conseguimos distinguir nenhum ali, apenas pessoas inexistentes, sombras, rabiscos e rascunhos de gente. Todos se voltam e, como plateia, olham para Elza. É uma coroação. Fica tudo escuro. Uma luz dramática incide como um interrogatório divino apenas para a cantora. Começa “Comigo” e sua letra sobre a presença de sua mãe. Só a voz de Elza no auditório inteiro, em silêncio absoluto. Talvez, nos pequenos respiros da cantora, seja possível ouvir um eriçar de pelos. As cortinas se fecham. A platéia em pé aplaude e a reverencia como os músicos estavam fazendo há pouco. É o quase-fim do show que, se acabasse ali mesmo, as pessoas levariam uma meia hora para saírem de seus lugares.

Quando as cortinas se abrem, Rômulo volta e declama “Metade pássaro”, poesia de Murilo Mendes que fala sobre “a mulher do fim do mundo”. Sua voz é acompanhada de um eco proposital, ressoando a solidão do próprio apocalipse. É necessário alguém para ser poeta, músico, artista, cantor. Começam os agradecimentos e, Elza, após falar de todos aqueles que tornaram o show possível, inclusive as marcas que apoiaram o projeto, como Natura, Red Bull etc. obriga a plateia a pedir por mais. Enquanto todos não gritavam e clamavam por mais, ela não se dava por satisfeita. Rainha de Copas. Quando a unanimidade impera, Elza começa “Volta por Cima”, clássico de Paulo Vanzolini, aqui numa versão também urgente, com guitarras lembrando sirene, atravessando o palco, sabendo que, se não sacudirmos a poeira agora, a poeira nos engolfa. É pura emoção.

A cantora volta a agradecer, exclusivamente, o maquiador Wesley Pachu, prodígio que fez seu cabelo e a maquiagem. E avisa que que vem muito mais pela frente. Tomara. Entra o samba de “Sim”, com todos os músicos voltando ao palco para cantar o refrão solto e desprendido, laia-laiá leve e gostoso, para encerrar a noite dramática com um tom otimista. O quarteto em cordas Quadril senta na calda do vestido de Elza e olham para o alto, admirando a cantora. Todos levantam. Plateia termina o show cantando.

Com o fim do show, apoteótico, plateia aplaudindo por muitos minutos, fiquei com a sensação de que Elza Soares é a única pessoa possível para um fim do mundo. Só ela seria capaz de encarar Deus na chincha e perguntar: “E aí, qual é?”.

Tags:, , , , , , ,

06/10/2015

Sou pesquisador e escrevo resenhas de shows pagando de crítico musical porque gosto muito de música e minha verdadeira intenção era ser multi-instrumentista ou vocalista de alguma banda. O problema é que falta habilidade para tocar até campainhas mais complexas e meu alcance vocálico lembra uma taquara rachada.
Nicolas Henriques

Nicolas Henriques