Uma aula sobre relacionamentos com Sharon Van Etten

15/06/2015

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Nicolas Henriques

Por: Nicolas Henriques

Fotos: Victor Petreche

15/06/2015

Are We There foi um dos melhores álbuns que ouvi em 2014. Devo ter ouvido sem parar ao longo do ano passado inteiro. De certa forma, ele é tão impactante para mim como foi o filme Her. Posso estar viajando, mas sinto ambos análogos, na maneira meio farol baixo de tratar relacionamentos, com ar nostálgico e colorido desbotado, apegado a alguns detalhes pequenos que são de fato formadores do sentimento amor. Até no pequeno humor silencioso que existe no filme e, nas músicas de Sharon Van Etten, ele parece ser replicado de uma outra maneira que não sei bem explicar, senti em Are We There algumas faíscas bem verdadeiras do que nós somos. Diante desse cenário, não é preciso dizer que o show da cantora era algo que esperava ansiosamente.

A sexta-feira do Dia dos Namorados é um dia um tanto quanto curioso para acontecer um show sobre fins de relacionamentos. Parecia ali haver algum sinal divino, para as pessoas que estavam lá (muitos casais) entenderem como, muitas vezes por acaso do tempo, espaço, destino, vai saber, relacionamentos desandam. E como, por isso mesmo, era importante aproveitar cada momento com a pessoa amada. O show funcionava como um alerta. Não como se fosse alguém gorando, mas mais como um mestre carinhoso mas duro, que já passou por várias situações na vida, e apenas quisesse fazer os casais ali absorverem a importância dos momentos passados a dois. Sharon estava ali nessa posição, que parece um tanto quanto ingrata, mas que, para ela, soa fácil, graças ao seu carisma. Só na maneira tímida e segura de entrar no palco, com roupas simples, como se saísse de casa meio atrasada para o show, ou então como se já soubesse que não precisa parecer artista para ser uma, deu para sacar que ela conquistaria todos ali.

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Após um contido “hi”, daqueles meio de criança, abanando a mão meio desajeitada e logo após mexendo as franjas que caem nos olhos, começa o piano e violão de “Afraid of Nothing”, música que parece ser feita para você entender a importância de entrar de cabeça num relacionamento, de estar presente e bancar situações difíceis, mesmo quando tudo parece pedir para não fazê-las. É uma música que entra como uma lança torcendo seu coração, revivendo, ao extrair parte de suas entranhas, decisões erradas que todos nós já tomamos alguma vez, pois ter medo é inerente em diversos momentos da vida. O tom começou soturno, e talvez continuaria assim, não fosse a pequena cacofonia provocada pelo som do Cine Joia, que falhou diversas vezes, desapontando a cantora, mas dando, nesse caso específico, certo charme. O termo desapontar é muito importante para entender um pouco mais sobre a personalidade de Sharon Van Etten. Você não consegue imaginá-la com raiva de nada, apenas desapontada. Há certa frustração complacente em seu olhar, uma melancolia disfarçada por uma carcaça de simpatia e de piadas irônicas que ela soltou ao longo do show inteiro. Ao fim de cada música, a cantora aparecia com esse lado e entrava um outro show, para além de suas músicas, em que Sharon se mostrava uma pessoa incrivelmente carismática e fofa.

Quando “Afraid of Nothing” acabou, alguém gritou que Are We There era o melhor álbum do ano passado, no que ela retrucou ser impossível, pois Bon Jovi havia lançado material em 2014 também. E emendou a frase agradecendo a presença de todos os loucos que estavam presentes ali para ouvir músicas depressivas em pleno Dia dos Namorados. Ao terminar de falar, o sintetizador e a linha de baixo de “Taking Chances” entraram para começar a segunda das quinze músicas tocadas ao longo do show. A primeira e a segunda músicas possuem significados quase invertidos: há uma submissão implícita em “Afraid of Nothing”, enquanto, na segunda, o contrário ocorre; parece que Sharon compreendeu perfeitamente a Roda da Fortuna mística que é um namoro, na qual ora se está por cima, ora por baixo, na qual o equilíbrio da relação se dá mais pela compreensão de seu próprio desequilíbrio e aceitação do mesmo, de entender quando ceder e quando se impor, e todas essas coisas bonitas.

A cantora realmente mexeu com a plateia, como se todos nós ali escutando estivéssemos em certa histeria de beatlemania, mas esta também mais contida. Ao fim da segunda música, várias pessoas começaram a gritar “eu te amo” e, para cada uma, aparecia uma resposta incrível e irônica, como um “não te conheço, mas você deve ser legal” e outras frases espirituosas. Na verdade, Sharon possui um humor autodepreciativo extremamente empático.

Na terceira música do show, “Save Yourself”, a tecladista Heather Woods Broderick, que tocara ao vivo com a excelente Efterklang, mostrou toda sua voz (também excelente) em uma composição com Sharon que lembrava quase um jogral, só que simultâneo, onde cada uma, num tom parecido, mas diferente em poucas escalas, causavam um ar feérico ao ambiente. O humor da cantora voltou ao final, quando ela disse que precisava muitas vezes dar um Google nas próprias letras, pois esquecia com frequência. De novo, a referência a Her passou por mim: você até ri com suas piadas e sua leveza, mas, na hora do vamos ver, é bom tirar o lencinho do bolso. Em seguida, a cantora cantou “Give Out”, do álbum Tramp, de 2012, na qual a bateria de Darren Jessee, diferente na versão de estúdio, mais violão, parecia um grande pulsar de veias e artérias, um bumbo pesado transcorrendo como sangue ao longo da música, regando e aquecendo pontos frios e escuros de nossos corpos. Ao fim da música, ela agradeceu todos estarem ali como masoquistas querendo sofrer, e ainda pagando por isso. Ótimo.

As próximas duas músicas voltam ao último lançamento: “Break Me” e a maravilhosa “Tarifa”, na qual, ao final da música, ela senta no canto do palco do Cine Joia (que a cantora elogiara pela arquitetura e beleza), e o guitarrista vai para frente. A plateia está entregue, todos ali estão um pouco mais apaixonados, como se Sharon Van Etten fosse o Chico Buarque indie dessa galera, encantando meninos e meninas, sendo capaz de destruir o coração e o relacionamento de qualquer um, caso ela quisesse. Mas o mais bonito é saber que ela provavelmente jamais faria isso, o que aumenta ainda mais a admiração pela cantora.

Em seguida, ela canta seu mais novo single, “Tell Me”, de seu novo EP, I Don’t Want To Let You Down (2015). Como todas as músicas, a cena de fim de relacionamento está ali, latente, as súplicas para isso não acontecer também. As luzes do palco ficam inteiras vermelhas e uma delas incide como um feixe néon sobre a parte de baixo do prato aberto da bateria, que batia lentamente, parecendo um disco-voador querendo sair dali, mas preso por algo maior. Ao fim da música, Sharon precisa de certa forma externar para a plateia que ela não é uma pessoa triste como suas músicas. Parece claro isso, mas ela sentiu necessário e avisou “quero sair do armário: sou uma pessoa feliz. E não como na música de Pharrell, mas feliz mesmo assim”.

Na próxima música, a banda inteira sai e ela fica. A cantora avisa que é uma música do primeiro álbum, que inclusive ela trouxe alguns para vender. Ela diz que essa música foi escrita no porão de seus pais e é dedicada a todos que já estiveram apaixonado por alguém que já esteve também por você, mas que a pessoa é tão estúpida que não consegue enxergar isso. E assim ela começa a cantar “Keep”. Após essa música, que baixara de novo o humor do lugar, unindo casais em um abraço terno daqueles que se dão os amantes, a cantora resolveu, mais uma vez, quebrar qualquer tristeza e apresentou toda a banda, composta pelos já citados Derren, na bateria, e Heather, no piano, além do guitarrista Doug Keith e do baixista Zeke Hutchins.

Com uma hora de show computada, a sensação de que algumas músicas muito importantes ainda faltavam era geral. Mas Sharon Van Etten tratou de já matar a ansiedade com pelo menos uma delas, a poderosíssima “Your Love Is Killing Me”. Cacete!, que música. Confesso: acho uma música particularmente difícil de ouvir. Ela é daquelas que automaticamente te transportam para seu inconsciente, para os fantasmas de relacionamentos passados, para cenas de algo que não deu certo. Um choro no carro. Uma mão que se desgarra. Um elogio que não ecoa ou não volta. Um grito de desespero. Um pedido para tudo ser como se foi sonhado. Nessa música sucumbi às lágrimas que estavam até então entaladas na garganta. Era inevitável que elas viriam. Mas, como num show que possui certa narrativa, a cantora resolveu tocar “Serpents”, carregada de certo rancor que quer superar a dor de um amor que quase a matou. As duas músicas compuseram, junto com a que vinha logo em seguida, provavelmente o momento mais forte do show. Ao término de “Serpents”, Sharon vai para o piano e começa “I Love You, But I’m Lost”, provavelmente a música que mais clama por uma redenção entre todas. Logo que ela acaba, a banda sai para voltar com mais duas músicas e encerrar o show.

A primeira música do bis da platéia foi “Don’t Do It”, música em que a cantora sabe que seu amado não precisa fazer aquilo que ele está prestes a fazer. É uma música de antecipação, do conhecimento do fim, assim como o show. Sabíamos que aquele momento mágico estava para acabar, que toda a beleza de Sharon (e quando falo beleza, dá quase vontade de pagar de prepotente e usar a palavra com letra maiúscula, pois ela é, acima de tudo, uma pessoa muito bonita) está para partir, com ela agora terminando com a plateia. Justo ela, que parece que sofreu tantos términos, está terminando com quem mais está amando ela naquele momento. C’est la vie. E parece que ela sabe como esse término com a plateia é sempre doloroso, que mesmo com o nascer do sol, tudo continuará levemente borrado, estranho, sujo; que as marcas do passado e a história vivida pelo casal permanecerá, por mais que alguém tente apagar de maneira inconsequente. “Everytime The Sun Comes Up” encerrou com chave de ouro esse Dia dos Namorados muito especial.

Ao cabo e ao rabo, o show de Sharon praticamente me deu vontade de anular todas as minhas paixões por shows anteriores. Não sei nem dizer tanto se foi pela qualidade da música (que é realmente impressionante), mas muito mais por ver ali uma artista num nível de humildade e franqueza que nunca tinha visto. Achei impressionante presenciar como tudo que estava acontecendo ali jamais pareceu uma performance, mas um grande desabafo que estávamos vendo. Um desabafo bonito, sobre os relacionamentos que acabam e que, como diria Paulo Diniz em “Chega”, “é tão comum, o que existe acabar”. Sharon estava aberta, sincera, uma pessoa mostrando todas as suas fraquezas e virtudes para a plateia. Parece que ela consegue, ao expor seus vícios e medos, suas tentativas de fazer algo dar certo e não conseguir, mostrar para todo mundo o que é ser humano e como tudo, no fim, pode acabar bem, basta sermos sempre sinceros com nós mesmos. Não sei, mas, mais do que um show, acho que saí dali com uma lição de vida.

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15/06/2015

Sou pesquisador e escrevo resenhas de shows pagando de crítico musical porque gosto muito de música e minha verdadeira intenção era ser multi-instrumentista ou vocalista de alguma banda. O problema é que falta habilidade para tocar até campainhas mais complexas e meu alcance vocálico lembra uma taquara rachada.
Nicolas Henriques

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