Entrevista | Do que é feito Naná Vasconcelos?

09/03/2016

Powered by WP Bannerize

Paula Moizes

Por: Paula Moizes

Fotos: Itamar Crispim/Divulgação

09/03/2016

Na manhã de hoje, 9 de março, Naná Vasconcelos nos deixou. O músico morreu em um hospital do Recife, vítima de câncer de pulmão, após uma luta de vários dias internado.

Tudo o que ele precisava era de seu próprio corpo e o que a natureza pudesse lhe oferecer. Encantador da água, da terra, do fogo e do ar, Naná Vasconcelos foi um dos maiores nomes da percussão mundial e disseminador da cultura afro-brasileira. É através do berimbau, instrumento que mudou pra sempre a vida do compositor, que sua música flui.

*

Naná tornou nossa música reconhecida fora do Brasil, mas, desde que começou aos 12 anos no grupo recifense Batutas de São José, sua missão também foi fortalecer e enriquecer o som feito no seu país. Depois de passar duas décadas experimentando lá fora, chegando a morar em Paris e Nova Iorque, a partir dos anos 90 Naná Vasconcelos passa a se envolver novamente com o cenário brasileiro, sem nunca esquecer de suas raízes africanas.

Milton Nascimento, Itamar Assumpção, Caetano Veloso, Marisa Monte, Gato Barbieri, Walter Bishop, Pat Matheney, B.B.King, Don Cherry, Colin Walcott, Jean-Luc Ponty e Talking Heads são apenas alguns dos nomes que tiveram a honra de tocar com Naná. A discografia dele também é extensa. Seu último disco é 4 Elementos (2013), em que extrai música até da água, uma experiência que já havia feito no álbum anterior, Sinfonia & Batuques (2011), vencedor do Grammy de Melhor Álbum de Música Regional.

Além dos shows, o percussionista realizou workshops orgânicos e projetos pelo país, como o Língua Mãe, em que reuniu no mesmo espetáculo 120 crianças do Brasil, Portugal e África.

Leia abaixo a entrevista que fizemos com o maestro da natureza em agosto do ano passado:

Por onde você anda, Naná?
Esses dias eu tava na Argentina, no Uruguai, no Chile. Eu sou daqui de Recife. Depois de mais de trinta anos fora, eu voltei. Aqui é bom pra se esconder. Eu viajo o mundo todo e volto pra casa pra recarregar as energias.

Tem conseguido ficar bastante em Recife?
Depois de vinte sete anos em Nova Iorque, cinco anos em Paris, voltar pra casa é sempre bom. Eu nunca sai daqui, mesmo quando eu tava morando fora. Fui embora muito cedo, mas eu adoro aqui. Não saio de casa. Tenho saído de manhã pra caminhar no parque, depois volto pra cá, tem a piscina, eu tomo um banho às vezes. Sou muito caseiro, sabe. Eu tô com setenta anos, vou fazer setenta e um em agosto, então eu sei como são muitas coisas. Eu tô fazendo o que eu quero fazer. Eu quero ficar aqui agora.

Como foi seu show na Virada Cultural em São Paulo?
Foi maravilhoso! A Virada é muito bem organizada. Devia ter em outros lugares do Brasil. É uma grande oportunidade para os artistas se exporem e mostrarem seus trabalhos. No ano passado eu ia tocar lá três horas da manhã. Disse ‘não vai ninguém’. Cheguei lá tava cheio! (risos)

O que você acha da mistura do orgânico com o eletrônico?
Isso aí é um negócio que tem que ser. Em discos anteriores, como o Bush Dance (1986), foi onde eu comecei a usar a bateria eletrônica. Impossível você evitar a tecnologia hoje. Onde quer que você esteja, aonde você for, tem tecnologia. Você tem que saber como lidar com isso. Eu acho que é importante, porque você não pode evitar. Eu tinha medo, eu não queria usar isso. Trabalhei num grupo que usava muito eletrônico, e eu não queria usar. No Pat Metheny, eu coloquei voz na música deles. Eles tinham muita música eletrônica e usavam esses meus elementos orgânicos. Eu mais misturava minhas coisas orgânicas com a sonoridade do tecladista. Nos discos, tem horas que você escuta e pensa que sou eu, mas é o tecladista, ou pensa que é o tecladista e sou eu. Isso é importante, principalmente pros jovens, porque por exemplo: a coisa do manguebeat, do Chico Science, foi exatamente o resultado da mistura do maracatu, que é uma coisa primitiva, com a coisa do eletrônico. Antes de mexer com o eletrônico, os jovens tinham que ir nas raízes, pra saber como é realmente a coisa. Depois ele pode mexer com o que quiser. Tem que saber de onde você vêm, qual é o seu ponto de referência. Eu nunca me perdi. Nunca perdi minha identidade porque eu entendi que eu tinha uma coisa que os norte-americanos não tinham. Quando eu entendi isso, eu fiquei na minha. Eles precisavam de mim.

Como você foi parar no jazz?
Foi tudo acontecendo. Eu nunca procurei emprego. Sempre tive a felicidade de tá no lugar certo, na hora certa. Pra você ter uma ideia: eu tava aqui no Brasil tocando com Milton Nascimento quando passou o músico Gato Barbieri que nos chamou pra fazer uma série de concertos na Argentina. No meio dessa série de concertos ele disse assim: ‘olha, saiu o meu primeiro contrato com um selo dos Estados Unidos, vamos?’ ‘Vamos!’ Então quando eu cheguei nos Estados Unidos já estava contratado para trabalhar em discos dos músicos da panela do jazz. Foi aí que eu descobri que eu tinha alguma coisa, porque os jornais só falavam de mim. Eu era uma coisa que eles nunca tinham visto, eu e o Airto Moreira que chegou mais ou menos na mesma época nos Estados Unidos. Nós somos os responsáveis por colocar percussão no jazz.

Por que aqui no Brasil não existe espaço para percussionistas solo?
Se eu tivesse ficado aqui, estaria acompanhando cantores. Porque o Brasil precisa da palavra. A música instrumental tá em segundo plano. Ainda mais um instrumento melódico como a percussão. Depois que eu me dei conta disso, procuro fazer música com percussão. Por isso que eu uso a percussão como se fosse uma orquestra. Os instrumentistas daqui ficam querendo tocar jazz. Querem ser imitação de americano. Eu acho horrível. Com pouquíssimas exceções, como o Yamandu, que faz uma música brasileira improvisada extraordinária. Esses outros músicos que vem do samba e da bossa-nova ficam querendo fazer jazz, e a música pode ser improvisada e não ser jazz. O pessoal de Rio e São Paulo nunca vai fazer jazz, porque deixa de ser brasileiro e não consegue ser americano. Isso é um problema racial, porque, quando você toca uma música, o brasileiro bate palma no tempo e o americano no contratempo. É uma coisa natural.

Qual é a próxima experiência musical que você quer ter?
Eu tive uma ideia quando fui pra casa do [Renato] Borghetti com Yamandu [Costa] que era fazer o Extremo Som. Seria pra fazer o som dos extremos, do norte ao sul. Seria Borghetti, Yamandu, eu e um flautista daqui. Ficamos ensaiando por alguns dias, depois o Yamandu desistiu porque queria fazer mais um disco pra carreira solo dele e tal. E eu acredito que ainda é possível de fazer isso.


Você é um representante importante da cultura afro-brasileira. Como acha que esse resgate de nossas raízes africanas acontece no resto do país?
A África é a espinha dorsal da nossa cultura. Eu queria que isso ficasse esclarecido pra todo mundo. Muita coisa veio da África para o Brasil, e tem coisas da África que foram se misturar só no Brasil. O que você vê no Brasil são muitos encontros. Cada estado tem uma África diferente e tem uma mistura de África e Europa diferente. Aqui no Nordeste é onde a miscigenação é mais rica. Tudo vêm pelo mar, tudo chegou pela costa. Então foi tudo desenvolvido na costa. Foi aí que entrou todo mundo. Aqui predominou a cultura africana. O comportamento do negro na Bahia é totalmente diferente do daqui de Pernambuco. Aqui tiveram os coronéis do açúcar, então o negro daqui é muito cabisbaixo, sisudo, parece que carrega um ranço. Lá na Bahia o negro passa o óleo no corpo e é assim: ‘sou bonito, toco bongô e jogo futebol’ (cai na gargalhada). Eles tem uma auto-estima incrível. É o dendê que faz isso! Aqui não tem dendê.

Grande parte de suas composições tem um tom muito ritualístico. Pra você, que relação a música tem com a religião?
Depois de ouvir muito [Heitor] Villa-Lobos, eu entendi com ele que a potência visual existe na música. Tem aquela música que você não só escuta mas também vê por intermédio dela. Então quando eu tive que montar um show solo, resolvi que iria contar histórias sem palavras. Eu levo você, ouvinte, pra o cenário brasileiro que eu quero te mostrar. A partir disso, a gente começa a pensar a música como uma outra coisa. O primeiro instrumento é a voz, ou melhor, o corpo. O resto é consequência disso. A música tem essa força de mexer com os sentimentos. A partir disso, daí vêm a coisa da espiritualidade que você quer saber. Isso é uma coisa pessoal minha, coisas que vêm de outras vidas, coisas que eu acredito e que não quero que ninguém mais acredite. Se eu acreditar, basta. A música é um trabalho muito espiritual porque é de corpo e alma. Se eu não tivesse essa coisa dentro de mim, não fluía minha música. Mas como isso é a única coisa que eu sei fazer, sai assim, com essa religiosidade. Porque eu sou muito religioso, mas não faço parte de nenhuma instituição. No Codona, Don Cherry praticava budismo tibetano. Então eu praticava quando tava com ele, pra gente ficar na mesma sintonia.

O que você acha dessa coisa de apropriação cultural?
O norte-americano procura desmistificar tudo que é cultura. Eles não acreditam em religião e tradição, porque eles não tiveram a África e essa mistura que nós tivemos. Essa coisa cultural é muito por causa da religião. Eu acredito muito nesses músicos alternativos a partir do momento em que eles tenham o conhecimento do ponto de referência, das raízes deles. A partir daí eles podem desenvolver uma história a partir de uma coisa que é dele, não tá mexendo com coisa de ninguém.

Tags:, , , , , , ,

09/03/2016

InfinitA
Paula Moizes

Paula Moizes