Trupe Chá de Boldo desnuda o novo álbum “Verso” faixa a faixa

09/08/2017

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Divulgação

09/08/2017

Dez anos se passaram desde que nasceu a Trupe Chá de Boldo e é certo que, se não fosse pela pequena ajuda dos seus amigos, essa década de música não seria possível. O quarto álbum deles, Verso, lançado em junho, homenageia o círculo de amizade criativa que envolve a banda trazendo onze de composições de autores de fora, como André Abujamra, Iara Rennó, Negro Leo, Alzira E. e Pélico.

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Pedimos à Trupe para repassar conosco cada uma das faixas de Verso e o resultado foi uma polifonia de vozes bastante esclarecedora. As respostas mostram a banda como ente orgânico, um bicho vivo, ora homem ora mulher ora tudo. Aliás, sempre tudo. Teatral, lírico, político, sexy e subversivo.

“Fiu-fiu”, por exemplo, foi comentada pelas mulheres da Trupe, que contam que a música suscitou um debate amplo sobre diversas questões de gênero dentro do coletivo. “O disco está todo mais feminino”, dizem elas, “e isso não quer dizer meramente uma maior participação das vozes das meninas, mas das vozes femininas de todos”: “É um disco mais visceral e mais aguerrido, também, talvez um pouco embebido nas lutas do nosso momento político”, explicam.

Sendo Verso o primeiro disco em que o grupo assina a produção musical, ampliou-se ainda mais o processo de coletividade autogestionada que rege o trabalho da banda. Os comentários abaixo também são fruto desses movimentos, confira.

1. “Entre o Mangue e Mar” (Alzira E. / Arruda)
A parceria de Alzira E e arrudA nos lembra que a vida é feito as marés. Uma banda é assim também, a cada disco o mar avança. Para além disso, segundo relatos, é uma música que nasceu na Enseada da Baleia, Ilha do Cardoso (SP), praia onde a banda mergulhou muitas vezes e que recentemente teve que se mudar em decorrência do inevitável encontro das águas do mangue e do mar.

2. “Cabeleira de Capim” (Gero Camilo / Tata Fernandes)
Ouvimos pela primeira vez em 2009, durante a temporada de shows que fizemos ao lado de Gero Camilo e Bando. A convivência com o bando foi fundamental para a Trupe Chá de Boldo. Conhecemos Alfredo Bello, produtor do nosso disco Bárbaro (2010). Ali na temporada, notamos que as mais de vinte pessoas envolvidas nos shows, compunham de fato um jardim selvagem, uma existência coletiva que não se sobrepunha ao brilho de cada um.

3. “We need nothing” (André Abujamra)
Originalmente gravada pelo Karnak, no disco Estamos adorando Tóquio (2000), essa canção do André Abujamra resume em quatro versos o que essencialmente importa: comer e fazer amor. O Abu é um parceiro muito especial da banda, protagonizando episódios memoráveis e tendo participado do nosso segundo disco, Nave Manha (2012), na faixa “Belém Berlin” munido de sua guitarra, além do show de lançamento do mesmo álbum, no SESC Vila Mariana.

4. “Fera Mastigada” (Negro Leo)
Do álbum Água Batizada, do Negro Leo. A gente escutou nessa música uma potência tão grande. Ressoamos. Ela vibra em vários lugares do corpo. Sobre as escolhas não serem definidas como simplesmente parece mostrar a razão da primeira superficie. Sobre as escolhas não serem simples gangorras e os caminhos poderem ser uma dança mais inesperada. Sobre quando a gente topa ou se rende, ou se precipita a atravessar a loucura, e vai de encontro com o que ela carrega de são. Quando a gente se precipita a atravessar o medo e experimenta o que ele carrega de seguro, com a possibilidade da gente não se perder, da gente ser fiel. Ou atravessar o perigo no que ele carrega de coragem e de verdadeiro. É pra escutar dançando. Festejando. Ainda hoje. Ainda assim. Gravamos “Jovem Tirano Príncipe Besta”, som de Negro Leo, no Presente (2015), nosso terceiro disco. “Fera Mastigada” é mais uma música do Negro Leo ligada no agora. Diante da violência neopentecostal, da força da grana nas cidades, “não trocaria sábado pelo domingo”, “não trocaria árvore por edifício”. Leo canta em praça pública, feito um cão, Diogenes, pra todo mundo ouvir.

5. “Oração de Carnaval” (Leo Cavalcanti)
Temos carne de carnaval. Ao longo dos nossos 11 anos inventamos muitos pré-carnavais ao lado do nosso mano Tatá Aeroplano. Mas, sobre o caso específico da canção do Léo Cavalcanti, notamos que, apesar do título, ela afirmava outra força. Foi um desafio prazeroso inventar essa versão.

6. “Meus Vãos” (Iara Rennó)
Ano passado Iara Rennó fez um lançamento conjunto de dois discos simultâneos: Arco e Flecha. O disco Arco trazia uma banda de mulheres, o disco Flecha uma banda de homens. “Meus vãos” está no Arco com outras canções que carregam, talvez, mais este universo “côncavo”, como a Iara gosta de chamar. A concavidade de meus vãos é a declaração afiada, clara, inacabada, urgente por se completar, este estado da sede que é a própria água da gente, o tesão.

7. “Fiu-fiu” (Marcelo Segreto)
Fiu fiu é um tapa. Composição do Marcelo Segreto, da Filarmônica de Passárgada. Ridiculariza as cantadas machistas. É um caso antigo nosso, essa música. Pintou primeiro em um show da Trupe em que chamamos o Marcelo e a Paula Mirhan, também da Filarmônica, para cantar conosco. Foi natural que ela viesse para o disco Verso. Partiu dos meninos a sugestão de ela ser agora remusicada toda pelas meninas. A gente (meninas) estranhou (risos), pensamos com ironia em pleitear essa bala na agulha para outras musicas em que a gente eventualmente sentisse dificuldade de ser ouvida (acontece em todo lugar, por que na Trupe não?). Por que aquilo era uma iniciativa dos meninos? Apontamos a questão, batemos esse papo juntos, vários pontos apareceram. Esse ambiente instaurado de troca de figurinhas para o disco é em especial muito bacana, pois é um lugar em que os ouvidos estão abertos com especial carinho. O disco está todo mais feminino. E isso não quer dizer meramente uma maior participação das vozes das meninas, mas das vozes femininas de todos. “Fiu-fiu” nasceu sendo uma composição de um homem, na eu lírica (sic) de uma mulher. Agora ressurgiu também quando os meninos sugeriram que a gente (mulheres) falasse musicalmente sobre essa composição – esse era o jeito deles falarem também, e ao mesmo tempo de falarmos juntos. É um disco mais viceral e mais aguerrido, também, talvez um pouco embebido nas lutas do nosso momento político (não tem como não ser). O clipe da versão original da música é muito foda, e, estrelado pela Laerte, cutuca também esta questão de qual o sujeito da voz feminina, qual o sujeito da voz que grita seu direito.

8. “Decência” (Tatá Aeroplano/Gustavo Souza/Fernando Maranho)
Decência é a faixa de abertura do disco Deus e o Diabo no Liquidificador (2015), da banda Cérebro Eletrônico. Uma baita faixa de abertura: é um amanhecer. Que, como todo amanhecer, teve um dia antes, e uma percepção do acordar e do não importa-o-que-vai-vir-depois. Salve as narrativas em primeira pessoa onde a gente descobre que o lugar que importa, na verdade, é o lugar que a gente habita naquela hora por dentro. A vida acontecendo no corredor, afinal, o que não deixa de ser uma premissa meio John Lennon, né?: “Life is what happens to you while you’re busy making other plans”. A vida é o que acontece no corredor – ele como simbólico aqui do não-lugar, ou do qualquer-lugar, ou melhor: do lugar-a-prestes-de, que é o verdadeiro lugar, o lugar do fogo no coração, como diz a canção. Uma delícia de canção.

9. “Naquela casa” (Pélico)
A vida não tem utilidade. Operacionalidade. Utilitariedade, por assim dizer. É onde encontramos de novo que “o melhor da vida a gente faz sem renda” (verso de “Diacho”, música do Presente). Talvez seja diacho na versão Pélico, meio Johnny Cash dos Andes e mais ainda desencantada. Talvez até alguém queira notar uma ironia apontada: de que catzo adianta tudo isso se não há amor? “Naquela casa”: nosso flerte com Pélico, Tom Waits, Cohen e Cash.

10. “Distraída” (Peri Pane/arrudA)
“Distraída” é a única canção inédita do disco, composta pelos nossos parceiro de longa data Peri Pane e o poeta arrudA. Quando a escolhemos para o repertório do disco e começamos a pensar no arranjo, surgiu uma questão: afinal, do que tratava a canção? Uns argumentaram que era um consolo entre amigos, pelo fato da vida ser, às vezes, ingrata, tortuosa, distraída… Outros sugeriram que era uma canção de consolo à ex-presidenta Dilma, que havia sido recentemente destituída de seu posto por um Congresso abominável, muito abaixo da crítica (tal entendimento parecia inverossímil ou uma premonição, pois a canção teria sido composta antes de tal fato). Entre outros…
Fato é que, com diferentes entendimentos, o arranjo foi se construindo de modo errático, com duas roupagens contraditórias que se intercalam: uma com percussões frenéticas, com sonoridade de repique de samba, junto a um riff simples e festivo das cordas; a outra, meio cool jazz, com uma linha de baixo um tanto embriagada (se é que é isso mesmo). No fim, admitindo a tese da premonição do impeachment, a banda toda repete em uníssono um riff dodecafônico, de quarta em quarta, que vai crescendo, ganhando corpo e saturando (como nossa paciência diante tamanha cretinice parlamentar), como se a população se preparasse para invadir Brasília.

11. “Canção do mundo maior” (Juliano Gauche)
De nítida inspiração revolucionária, “Canção do mundo maior” é a música que encerra o disco. E não por acaso. Em tempos de sobrevida agonizante de um velho mundo que insiste em perpetuar a barbárie, a canção clama por um “vento mais forte” que o desmanche por completo. Quando o Juliano Gauche veio morar em São Paulo, com a Silvana Ramalhete, nossa produtora, alguns integrantes do grupo formaram uma banda para acompanhá-lo e desde aquela época construimos essa parceria com o compositor capixaba. Isso foi logo depois de lançarmos o primeiro disco Bárbaro (2010).

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09/08/2017

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Ariel Fagundes

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