O momento pedia que eu fechasse os olhos. Deixei a música tomar conta do meu corpo e em poucos segundos me vi oscilando de um lado para o outro, de uma maneira estranha, mas ritmada. Meus braços se ergueram involuntariamente. Meus dedos indicadores se moviam na cadência da música. Minha cabeça pendia para trás e quando abri os olhos vi raios de todas as cores dançando no céu. Dançavam juntos, os raios, meus dedos indicadores e outros milhares de festivaleiros. Todos unidos pela música que vinha do palco principal. Entre palavras confusas, que se misturavam à potência das caixas de som a poucos metros dos nossos ouvidos, escutei uma amiga anunciar:
– Essa música libera a alma.
O concerto do duo francês Justice, foi o ponto alto daquela noite, para mim e para algumas das 30 mil pessoas que comparecem ao SOS 4.8, um dos festivais mais importantes da vanguarda musical contemporânea. O evento, que ocorreu nos dias 3 e 4 de maio na cidade de Murcia, sul da Espanha, é conhecido não só pelas suas 48 horas ininterruptas de música – que incluem grupos de indie rock, indie pop e eletrônica –, mas também por oferecer outros tipos de atividades como sessões de arte contemporânea, debates sobre tema atuais e exposições artísticas.
Nos seus melhores anos, o SOS chegou a arrecadar mais de 2 milhões de euros em verbas públicas e corriam boatos de que essa edição tinha enfrentado algumas barreiras. A crise europeia, que solapa a economia espanhola a um ritmo de 100 metros rasos, chegara ao ramo do entretenimento e o valor arrecadado fora de 400 mil. Para enfrentar a questão financeira, a organização do evento buscou patrocínio da iniciativa privada. Ainda que a programação contasse com bandas de renome no cenário da música independente, como M83, The xx e Bloc Party, o evento não anunciou nenhuma grande surpresa como nos anos anteriores, quando levou Chemical Brothers ou Franz Ferdinand.
O festival – parte 1
Mesmo a quilômetros de distância dos palcos que iam protagonizar o grande espetáculo daquele fim de semana, era possível sentir o clima de excitação. A cada cinco pessoas, duas delas levavam a pulseirinha amarela e laranja amarrada no braço, uma cara de entusiasmo e aquele estilo “vou de festival”. As ruas estavam cheias de tênis de cano médio, shorts jeans, jaquetas coloridas e óculos atômicos.
Da entrada se podia escutar o som que vinha do palco mais próximo. Montado em cima de uma piscina, ao lado de um gramado verde com guarda-sóis e cadeiras de pano, o ambiente era de festa na praia. E quem fez a festa por ali foram BeGun e Finest Cut. O primeiro, um barcelonês fruto de uma geração que produz música em casa, ajudada pelas artimanhas internéticas, animou a pista com uma proposta melancólica e instrumental. BeGun, que na vida real se chama Gunsal Moreno, soube levar o público ao ritmo de dubstep e house, nas suas formas mais doces. Não menos dançantes. O espaço fritou de novo à meia noite, com o Showcase Finest Cut, uma pick up que unia Andrés Arias, Carlos Cmix e Iñigo Surio.
A banda mais esperada da noite subia ao palco tempos depois. As músicas divertidas se transformaram em canções melódicas e o ritmo desenfreado se acalmou. Os ingleses do The xx imprimiram magia ao festival. Os fãs cantavam com tanto vigor que a impressão era de que todos estavam ali só por causa da banda – inclusive eu mesma.
A melodia silenciosa e sufocante de “Try” abriu o espetáculo, que seguiu apresentando as melhores canções de “XX” e “Coexist”, os dois álbuns do grupo. Quando os primeiros acordes da “Crystalized” soaram, o show atingiu seu momento sublime. Gritinhos de “ai ai ai” ecoavam por todo o recinto de La Fica. As clássicas “Chained”, “Islands” e “Angels” deram continuidade ao espetáculo de uma banda que sabe, como ninguém, fazer o silêncio virar música. A máxima “menos é mais” ganhava seu contorno musical.
Logo depois subiram os compatriotas do grupo Bloc Party. Esse talvez tenha sido o concerto com mais alusão ao rock progressivo de todo o festival. Os fortes acordes de guitarra de “So Here We Are”, “Helicopter” e “Truth” foram alguns dos sucessos que animaram o show. As canções fizeram o público pular e gritar… mas no palco se notava um Kele Okereke menos motivado. Se faltava animação, sobrava arte, principalmente por parte dos técnicos que fizeram do céu de Murcia um show de luzes e cores.
O festival – parte 2
Os rostos dos festivaleiros exibiam dois tipos de expressões no dia seguinte. A primeira era de quem dizia “ainda resta um dia inteiro de música boa pela frente”. Já a segunda era de quem não dizia nada.
Nesse dia não senti o tempo passar. Se em um momento eu tinha os olhos meio fechados por causa dos raios de sol, em outro eles tinham quase o mesmo tamanho, mas por causa do brilho que vinha do palco principal. Dezenas de pontos luminosos cintilavam na tela negra. O céu que se formava na parede do palco durante o show do grupo M83 parecia mais real que aquele que estava sobre nossas cabeças. A junção entre efeitos visuais e música de qualidade, proporcionada pela grande atuação da banda francesa, fez o público acordar na última noite do SOS.
Era bom mesmo estar de olhos bem abertos para o concerto que vinha logo a seguir. Talvez o festival tenha vivido o seu grande momento durante o concerto do Justice. Os franceses Gaspard Augé e Xavier de Rosnay subiram ao palco no exato momento em que os projetos de luz branca formaram as famosas cruzes no ar, símbolo do duo. Eles olharam para os lados buscando quantificar o número de pessoas por metro quadrado e, sem aviso prévio, começaram a discotecagem.
Um silêncio excitante precedeu o hino daquele festival. “Because we are your friends…” e a sequência seguiu sem o auxílio de melodia, entre vozes trêmulas e corpos irrequietos. O SOS chegava ao seu êxtase. O refrão de “Never Be Alone” foi repetido cinco vezes. E outras tantas vezes, espontaneamente, durante o resto da noite. E na manhã do dia seguinte, na viagem de volta e até agora, em intervalos rotineiros, quando alguma parte do corpo pede pra voltar. Com crise ou sem crise, o festival ainda é capaz de entoar canções que liberam a alma.
(Fotos: Juliana Afonso)