DJs e rolezeiros em geral foram convidados/forçados a se adaptar com o isolamento social e isso certamente afetou o consumo de música. Muita gente acostumada às batidas 4×4 do house e do techno ou às baterias quebradas e beats acelerados do jungle e do footwork precisou desacelerar. Ok, muita gente não, mas eu fiquei no time dos que baixaram o pitch. Nesse processo, escavar referências antigas ou estudar novas é sempre um desafio instigante. Em meio a delírios de produtor musical, eu mergulhei nos beats instrumentais, inspirado pelas quatro temporadas de Hip Hop Evolution. Então, nesse momento, o disco de beats achados e perdidos do produtor paulista MJP, músico e artista plástico, lançado pela dsrptv rec, caiu como uma bomba.
Beats são um momento em que o tempo ganha intensidade, vislumbre de uma vida em poucos minutos. Poucos minutos, mas muitos segundos. Uma vida dentre tantas, convenhamos. Ninguém vive apenas uma vida, e o beatmaker se aventura por entre os infinitos caminhos que já sonhou ou percorreu. No beat, ele vira naquela esquina que não virou. Encarna na sua criação o “se“, que fica martelando na cabeça eternamente, como potência e paranoia. Sempre fui fascinado pelo universo dos beats. Sou daqueles que tentava catar cada sample utilizado, vibrando ao identificar alguma referência que já conhecia.
A produção de beats forma um universo praticamente infinito. Seja para serem acoplados a uma letra, um rap – que incorpora melodia, lirismo e verbo à música –, seja para ressoarem instrumentais, os beats dão vida à sagacidade do produtor, surgem a partir da coragem de profanar. Trabalham na construção de cenas, dando outras camadas à música. Talvez a vivência do MJP como artista visual tenha inspirado o músico, ou talvez o contrário, é impossível definir. Narrativa não verbal, montada com samples, artesania total.
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MJP é de São Paulo e vive intensamente várias cenas musicais urbanas. Seja de rolê pelas galerias no centrão no início dos anos 2000, onde vibrava uma cena de rap com infinitos beatmakers e MCs – vários deles famosos hoje –, seja no rolê shoegaze, ou mesmo no fervo das festas de rua e raves urbanas contemporâneas, como Metanol (coletivo do qual fez parte), Mamba e Capslock, o artista sempre metabolizou sua vivência nas ruas em forma de arte, com forte influência do expressionismo, urbanismo, arquitetura, texturas e outras fitas que podem ser tão abstratas quanto concretas. Atualmente focado na pintura, MJP produz house, techno, post punk ou beats sempre de forma experimental, rótulo que se afirma mais como posicionamento ético em relação a arte, não apenas como estética.
Os beats de seu último lançamento, B-Sides Vol. 2 (Lost Beats 2003-2008), publicados em setembro de 2021 pela dsrptv rec, compilam nove faixas produzidas na primeira década dos anos 2000. Estranhos demais pra época, as músicas produziam um ruído na estética vigente, o que pode ser percebido em um clima desconfiado que é traduzido na música. Afiados, feitos de loops curtos, usando samples com attack, as (re)interpretações são por vezes agressivas, por vezes sarcásticas.
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As faixas curtas apresentam mudanças de direção repentinas. Pá pum, quando vê já passou. Fica no ar uma indecisão. No chão, sujeira. Robóticos, são como uma maquinaria funcionando, que liga as blue notes do jazz, com trompetes e pianos, a timbres estridentes. Baixo e bateria vigilantes, atentos, espertos. Fragmentados, fica difícil identificar a origem dos samples, picotados e transformados em outra coisa. Os beats lembram um frame congelado, um loop paralisado, que ganha vida com a bateria. Zero palavras, abstração total.
Q-Tip, membro do lendário grupo A Tribe Called Quest, comentando sobre a febre de sampleamento que pegou na sua geração de beatmakers, na NY dos anos 1990, conta que rolou uma verdadeira corrida do ouro nas lojas de discos. A busca visava encontrar uma melodia, um groove, uma nota que fosse, que concentrasse tanto sentimento ao ponto de empurrar os limites da música através da reinterpretação, da arte do sampling. Nos anos 1950 e 1960, época em que vários clássicos do jazz foram gravados, o acesso a estúdio e equipamentos era escasso. Quando um pianista tocava ou um trompetista soprava, isso era feito com a sua alma, porque aquela era uma chance praticamente única. Por isso, ao ouvir esses discos, é possível sentir toda intensidade do músico. Samplear essas músicas mobilizou toda uma geração de músicos do hip hop.
Agora, diferente da busca por nitidez e por um som aveludado, outras gerações de músicos estão mais preocupados em distorcer, recortar e entortar os pedaços que retiram de outras músicas para compor. Sobre esse tipo de postura, o próprio Q-Tip lembra do efeito explosivo que os beats do jovem J Dilla causaram no cenário hip hop no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. É neste grupo de profanadores radicais que se encontra o trabalho de MJP, que no Brasil encontra reforço no trampo de outros malucos como Parteum, por exemplo. Inclusive, a relação despreocupada com a tecnologia é algo em comum entre ambos os artistas. As músicas gravadas e lançadas nas Lost Beats foram produzidas em um computador antigo, estilo PCzão mesmo, com gabinete, monitor e mouse, no Fruit Loops, há quase 15 anos, sem nenhuma pretensão de soarem ao que o mainstream entende como “bem”. Low-fi before it was cool, os beats haviam sido perdidos e foram encontrados. Agora estão disponíveis em formato digital e também em uma fita cassete especial, acompanhada de cartões postais, com artworks de Gabriel Rolim. Sorte a nossa.
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