A eletricidade queer do novo álbum de Ana Frango Elétrico

20/10/2023

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Hick Duarte/Divulgação

20/10/2023

Um disco não precisa ser feito de certezas: às vezes, é a dúvida que move a procura artística. Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua, o aguardado terceiro álbum de estúdio de Ana Frango Elétrico chega às plataformas de streaming hoje celebrando a potência do incerto, a força de uma lacuna aberta. “É um disco que provoca dúvidas, não entendimentos, o próprio título já confunde de alguma forma”, comenta Ana na entrevista que segue aqui.

Naturalmente, a artista carioca vem sendo reconhecida como uma das cantoras mais interessantes de sua geração, mas a verdade é que tal atuação artística é apenas a ponta do iceberg. Além de produzir seus discos, Ana está presente na produção de trabalhos como Sim Sim Sim (2022), do Bala Desejo, vencedor do Grammy Latino na categoria de “Melhor Álbum Pop em Português”. Ela explica que, hoje, o que mais lhe move é o trabalho de produção musical. “O que mais tem me despertado o desejo é a produção, certamente. Eu me considero uma pessoa que trabalha com estética, arte, sinto que a produção tem um caminho de identidade e estética, evocação, que me interessa muito.

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Flertando com diferentes vertentes musicais, MCDGQESS referencia sonoridades de épocas distintas da música brasileira, e Ana explica que a intenção é apresentar um mosaico através do qual o ouvinte pince as citações que lhe chamarem atenção: “Cada um vai acessar diferentes autores e álbuns, talvez o maior objetivo seja esse, seja provocar lembranças em cada um que não tem a ver com as minhas próprias”.

Sobre os temas das letras, é, sem dúvidas, o álbum mais romântico da discografia dela, mas não espere um romance normativo. É o amor queer, não binário, que apaixona Ana neste momento. “Quis trazer um pouco da minha subjetividade, falar do meu processo, confusão, autoteorias e micromutações. Construções e desconstruções da minha própria imagem, que estão em processo, como um trabalho aberto para qualquer um que quiser acompanhar minha trajetória”, diz.

Lançado simultaneamente pelo selo RISCO, no Brasil, pelo Mr. Bongo, na Inglaterra, e pelo Think! Records, no Japão, MCDGQESS sairá em CD e vinil, reforçando a carreira internacional de Ana. Inclusive, em novembro, ela fará uma turnê europeia, com dez shows, passando por Portugal, França, Alemanha, Reino Unido, Bélgica e Holanda. Na conversa abaixo, Ana fala sobre a expansão de sua música mundo afora, o pensamento que orientou a criação do novo álbum, o cenário artístico carioca em que está inserida e o potencial artístico da nostalgia.

O que mais tem encantado você no trabalho musical hoje: a performance, a composição ou a produção? E por quê?

O que mais tem me despertado o desejo é a produção, certamente. No sentido de construir mundos, eu me considero uma pessoa que trabalha com estética, arte, sinto que a produção tem um caminho de identidade e estética, evocação, que me interessa muito. Tenho sentido cada vez mais vontade de que as minhas produções não fiquem limitadas à estrutura da canção. Sinto que elas ainda são muito ligadas à canção e à música orgânica, muito ligadas à expansão delas. Gostaria de expandir minha produção por outras searas, transbordar para outras formas de composição e expressão. Tenho composto muitas peças no piano e tenho vontade de me aproximar do instrumental e do experimental.

Por um lado, o disco aprofunda uma estética que você vem refinando há anos (algo como um “chamber-pop-indie-funky-pós-tropicalista”), mas você também está se aventurando em novas sonoridades. A eletrônica instrumental “Let’s Go To Before Again” e o rap do JOCA, em “Dela”, são bons exemplos disso. Queria que você falasse sobre as suas buscas sonoras: o que tem passado pelos teus ouvidos e que sons você se sente instigada a fazer?

Meu ouvido realmente passa por muitas décadas da indústria fonográfica, me sinto instigada a experimentar muitas coisas e a evocar essas misturas. Tem a ver com proposições. Minha pesquisa ainda é esse passeio pelas décadas e nostalgias passadas e futuras, confundir o ouvinte, apertar e esticar o tempo.  Acho que o disco do Dada Joãozinho, por exemplo, me marcou nesse último tempo e me inspirou a continuar experimentando essa expansão da canção e me deu muita vontade de experimentar mais sonoridades eletrônicas dentro da minha música. Negro Leo é outro que me inspira muito filosoficamenete, tô produzindo o novo disco dele, o que já está revirando a minha mente e reverberando profundamente. Fora isso, grandes parceiros sempre me inspiram. Tenho ouvido também muito um álbum de 2012 chamado Cookie Dough, da dupla WildCookie; a banda Macabre Plaza, e as produções do Pharrell Williams e Quincy Jones estão sempre nos ouvidos porque são faculdades. 

Hick Duarte/Divulgação

Como você vê a força da nostalgia na cultura popular contemporânea? Como isso inspira você?

Acho que essa é a minha forma de reverenciar uma indústria que entendeu muitas coisas dentro da música orgânica. E como uma artista que trabalha com elementos orgânicos, é uma forma de reverenciar a ela, mas também introduzir novos pontos de vista (meus) dentro do que já foi feito. Ao longo do disco eu respeito muito o que conhecemos como um fonograma clássico. Mas ao mesmo tempo proponho novos olhares, proponha a bateria e baixo como protagonistas pra traçar uma ponte com o agora, as cordas são altas. Synths também. Neste trabalho puxei protagonistas na estrutura do fonograma que ainda não tinha dado tanta ênfase. 

Você conta, no texto de release do álbum, que o disco começou com o intuito de se “expor subjetivamente” e “de demonstrar sonoramente entendimentos e sentimentos sobre um amor queer”, fala mais sobre isso? E esse é o seu disco que mais fala de amor: como os seus processos afetivos influenciaram a sua composição?

Com amor queer eu quero dizer um amor divergente, não binário, não heterossexual. Um amor que não vemos na TV, e se vemos, é só uma imagem, sem subjetividade. Até temos imagens, imagens de uma pessoa trans, uma pessoa bi, de uma pessoa sapatão, mas nunca de suas subjetividades. Com esse disco, quis trazer um pouco da minha subjetividade, falar do meu processo, confusão, autoteorias e micromutações. Construções e desconstruções da minha própria imagem, que estão em processo, como um trabalho aberto para qualquer um que quiser acompanhar minha trajetória. É um disco que provoca dúvidas, não entendimentos, o próprio título já confunde de alguma forma. Por mais que o título seja exclamativo, o assunto é interrogativo. 

Hick Duarte/Divulgação

Você faz parte de uma geração de artistas cariocas, que trabalham muito juntos. Como você vê esse cenário atualmente e o seu papel dentro dele? Seu disco abre espaço pra Dora Morelenbaum estrear como arranjadora, por exemplo.

Não sei, sinto que é uma cidade segregada e ponto. Sinto que trabalho com pessoas que outras pessoas com quem eu trabalho não se batem ou não trocam. Então não sei, pessoalmente o meu desejo é trocar cada vez mais com quem admiro de vários setores e ondas sonoras. Não consigo me ver de fora e entender meu papel, mas sinto que gosto de incentivar e exaltar pessoas que admiro! Dora ter feito os arranjos foi uma forma de dizer pra ela que acredito muito no ouvido/coração musical dela e que acho que ela tem tudo pra ser uma puta arranjadora. 

O disco sai com uma dedicatória ao artista visual Caio Paiva, seu parceiro desde os seus primeiros lançamentos e que faleceu recentemente. Comenta, por favor, a importância que teve Caio na sua obra e no cenário artístico do Rio?

Caio foi um artista incrível e que na minha trajetória foi muito importante, marcou minha discografia e a de muita gente. Um cara genial que fazia como ninguém esse lance de acessar um design de discos clássicos e trazer sua visão atual. Pra sempre estará na minha obra, e ele pra sempre me deixa com uma semente estética. Agora sinto cada vez mais vontade de me aventurar no setor visual das obras sonoras que trabalho. 

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O álbum está saindo no Brasil, Inglaterra e Japão, e você tem tido reconhecimento internacional crescente. Como você sente que a sua música é ouvida lá fora? A presença de músicas em inglês no disco tem a intenção de ampliar esse diálogo?

Eu sinto que a minha música é ouvida de uma forma não tão estereotipada, o que talvez seja um grande objetivo. Eu não tenho interesse que a minha música reproduza, principalmente esteticamente, clichês clássicos que o gringo vai entender. Como uma estética visual muito tropicalista ou uma estética musical bossanovista. Talvez um dos principais objetivos desse álbum seja esse passeio pelas décadas que evocam uma música brasileira do mundo. Que a música feita aqui pode ser muita coisa além de bossa nova e tropicália. Eu acho que os gringos ouvem e entendem que é uma miscelania de uma musica brasileira com junções internacionais bem clássicas, que vão de Michael Jackson à city pop japonês. Cada um vai acessar diferentes autores e álbuns, talvez o maior objetivo seja esse, seja provocar lembranças em cada um que não tem a ver com as minhas próprias.

Como você vê as possibilidades de contato entre a música independente nacional e o público estrangeiro hoje?

Acho que é um contato muito mais fluido do que já foi, uma vez que as estruturas do mercado e sua verticalidade vêm sofrendo sérias transformações desde o advento da internet. Hoje um ouvinte de qualquer parte do mundo pode conhecer um artista independente de qualquer outra parte do planeta. Apesar de que quando o assunto é o show, a mobilidade segue limitada, é extremamente difícil viajar com uma banda sem o devido investimento e reconhecimento do contratante, entendimento que nossa moeda está 5x a deles e etc….

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20/10/2023

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

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