“Eu curto animal print desde criança, acho que todo mundo já quis brincar de ser bicho. Então, quando você usa uma roupa com essa estampa, sei lá… Pinta uma graça, um frisson. Parece que a gente se animaliza”, diz Letícia Novaes, artista carioca mais conhecida como Letrux, cujo último disco – Letrux como Mulher Girafa (2023) – fala muito sobre a nossa relação com o mundo animal.
“Acho que, por ser da Amazônia, eu cresci com esse imaginário da floresta, e a estampa de onça sempre significou força, poder, superação e beleza pra mim. É um símbolo que está muito atrelado ao tipo de música que eu faço”, complementa Gaby Amarantos, estrela do eletrobrega contemporâneo. “Meu disco fala sobre sexualidade, sobre flerte, sobre gênero e acho que isso do tigre e da zebra tem muito a ver com isso – a caça e o caçador – e tudo isso com alguma ironia”, segue Ana Frango Elétrico, que lança – Me Chama de Gato que Sou Sua – pelo NRC.
“Quem usa onça tem uma força e a geração Z está muito interessada nesse maximalismo – na contramão do quiet luxury e da estética clean girl que assolaram a moda recentemente”, analisa a pesquisadora de tendências Nina Grando. Como o tema felino parece estar em alta mais uma vez, atravessamos aqui a história do icônico print que, ao longo dos anos, tem acumulado sentidos, por vezes, paradoxais. Ainda assim, é na música que suas versões mais potentes costumam dar as caras.
Túnel do tempo
A padronagem começa a aparecer na indumentária humana já no Antigo Egito – só que na forma da pele real do próprio bicho. Jo Weldon – performer burlesca, pesquisadora, professora, escritora, ativista e autora do livro Fierce: The History of Leopard Print (Harper Design, 2018) –, em uma entrevista ao podcast Dressed: The History of Fashion, conta que tanto o clero quanto a nobreza egípcias se cobriam de onça ocasionalmente. “Alguns deuses, inclusive, eram representados nas pinturas religiosas nesse tipo de vestimenta”, continua.
Ou seja, desde o primeiro momento desta relação entre a moda e a padronagem pintada, havia algo de sagrado e de luxuoso na receita. Vale também lembrar do povo Zulu, da África do Sul – a religião Shembe contava com rituais que envolviam as peles de leopardo que, há pouco mais de dez anos, foram substituídas por versões sintéticas, buscando uma alternativa à caça animal. Na época da troca, inclusive, o líder religioso Lizwi Ncwane disse ao The Guardian que a pele de leopardo era usada por ser “uma demonstração de poder”: “Estamos usando pele falsa e trazendo, entre o nosso povo, a conscientização a respeito dos motivos dessa mudança”.
Um novo look, nem tão novo assim
A padronagem em tecido, contudo, ganhou fama nas mãos de Christian Dior. A mais importante coleção da história da grife do icônico estilista francês aconteceu em 1947. Pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, findou-se também a restrição métrica para uso de tecidos por peça na alta-costura francesa. Romântico e dramático, o couturier aproveitou a oportunidade para deixar sua marca indelével na linha do tempo da moda e criou uma coleção posteriormente conhecida como “New Look” – um novo visual, com cintura marcada e saia rodada, que capturou drasticamente o espírito do tempo e definiu o estilo da década seguinte. E, em algumas das roupas desfiladas, lá estava ela: a estampa de leopardo. Em versão print, ela tornou-se um hit – só que entre um grupo bem específico de pessoas.
Pessoas estas que, com a volta dos homens da guerra, queriam reintegrar aquela sensação de família tradicional. As mulheres, que tiveram que trabalhar nas fábricas durante os conflitos, voltavam ao lar e o figurino à la Dior – que, inclusive, recuperava a silhueta do século passado pautada por corseletes sufocantes e uma profusão pesada de tecidos e adereços – carregava consigo essa conotação algo conservadora, quando vista em retrospecto.
No entanto, no mesmo período, a onça que virou pano fazia vestidos e saias, mas também decorava lingeries e maiôs – estas últimas, bastante mal vistas aos olhos do patriarcado da época. “Mais uma vez, essa ideia de independência e autonomia vinda do próprio bicho, dentro desse contexto de praia ou de intimidade, era reprimido”, diz Weldon.
Mau gosto pra quem?
“Eu gosto muito dessa ideia de que, na moda, as coisas não ganham ou perdem sentido, elas acumulam diferentes sentidos”, prossegue Weldon. E isso é fundamental para o entendimento do caráter da estampa de onça no decorrer do século XX — em especial, pensando na influência da música nesse jogo semiótico. Há que se pensar que a conotação de vulgaridade da onça também já estava pilulando no meio desse emaranhado simbólico da padronagem: era esta, na verdade, a estratégia do machismo para atrapalhar o sucesso do print e do que ele poderia suscitar na sociedade.
É aí que no punk, rockstars como Wendy O. Williams e Debbie Harry passaram a se cobrir de leopardo. O intuito era ironizar o argumento masculino – uma provocação em cima de uma suposta proibição. Ao mesmo tempo, no mercado de luxo, Yves Saint Laurent – um dos estilistas mais importantes na concepção do que foi a moda naquela década – lançava mão do animal print e corroborava com essa mesma releitura.
No mesmo período, inclusive, vale lembrar que essa interpretação de feminilidade exacerbada, “vulgar”, também catapultou um frenesi felino entre os homens do glam rock. “Era uma peça-chave para o movimento”, diz Nina Grando. Pense em Marc Bolan, em David Bowie, e em tantos outros que, em uma época de homofobia declarada e incentivada, faziam uso desse tipo de roupa para chacoalhar os ideais tóxicos de masculinidade.
Mais adiante, os New Romantics reforçam o movimento – Duran Duran e Roxy Music são ótimos exemplos. “Lembro de olhar para a Grace Jones e pensar ‘uau, esse visual é maneiro'”, conta Letrux. “Gosto de pensar no electroclash, dos anos 2000, que lia com ironia a estética do new wave dos 1980”, adiciona a jornalista de moda e escritora Erika Palomino. E, na moda – para além de YSL, que continuava cada vez mais obcecado pela padronagem –, surgiam Roberto Cavalli e Versace: marcas essencialmente pautadas por essa suposta vulgaridade da onça. “É uma obsessão do prêt-à-porter italiano”, assegura Palomino.
É em cima desse efeito camp que o DNA de ambas as marcas foi consolidado e conquistou fãs ao redor do mundo – inclusive, fãs estrelados do mundo da música. Donatella Versace – a atual diretora criativa da grife e irmã de Gianni, o seu fundador –, por exemplo, é amiga pessoal de ícones que vão de Elton John ao grupo Migos, passando por Lady Gaga e Bruno Mars e muitos outros. O mesmo se aplica à Cavalli: recentemente, uma horda de celebridades como Miley Cyrus e Cardi B começaram a recuperar vestidos vintage da marca para desfilar pelos tapetes vermelhos de diferentes eventos.
Now and forever
Portanto, no século 21, a estampa de onça tem um milhão de possíveis significados. Na capa de MASSEDUCTION (2017), ela aparece no maiô da roqueira St. Vincent que, naquele momento, estava dedicada a falar sobre desejo, sexo, dor e solidão em seu LP. Por sinal, o print aparece também em uma das guitarras de sua linha para a Ernie Ball Music Man, na coleção especial lançada em paralelo ao disco.
No clipe “Leopard Print”, da drag queen Alaska Thunderfuck, a padronagem explode em sua veia camp de modo a quase aterrissar no surrealismo. Já no vídeo da estrela country Shania Twain para a canção “That Don’t Impress Me Much”, um conjuntinho de leopardo é o seu figurino – ainda que perdida no meio do deserto, enquanto recusa a carona de um boy motorizado. Afinal de contas, ela sabe o caminho de volta para si melhor do que ninguém.
Em Black Is King (2020), Beyoncé encomendou da Valentino um macacão de onça com mais de mil cristais cravejados para celebrar o poder, o luxo e a nobreza de sua ancestralidade africana. “Acho que é um dos momentos mais marcantes da estampa de onça. Ali, a Beyoncé falava sobre uma referência de excelência preta que une todos nós e isso tem muita relevância e importância”, comenta Gaby Amarantos.
O enredo da Grande Rio deste ano, “Nosso destino é ser onça” fala sobre a valorização do papel da cultura indígena e dos povos originários na concepção do nosso país. “A inspiração foi o livro Meu destino é ser onça, de Alberto Mussa, lançado em 2009″, especifica Palomino. “No Carnaval brasileiro, a onça ganha a rua e eu acredito que é no calor dos trópicos que ela ganha sua leitura mais divertida e pop”, continua a jornalista.
“É um dos bichos mais lindos do mundo. Símbolo brasileiro. É hipnotizante”, descreve Letrux. “A onça dá medo, mas também é apaixonante. Tem uma malemolência que te rouba o olhar”, diz Gaby Amarantos. “Eu acho que a maior influenciadora da estampa de onça é a própria onça. Basta olhar para a sua independência, para sua força, para sua beleza – são animais fascinantes”, argumenta Jo Weldon. Há quem diga que nós, humanos, também somos meio assim. Talvez por isso essa fixação.
Esta matéria foi publicada originalmente na edição da Revista Noize que acompanha o vinil “Letrux como Mulher Girafa, de Letrux, lançado em 2024.