“A música me salvou”, diz Armandinho, o rei da guitarra baiana

26/02/2025

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Por: Marcos Lauro

Fotos: Divulgação/Lara Lins, Raphael Muller

26/02/2025

A música era uma brincadeira, uma diversão em casa. Osmar Macedo, o pai, sonhava com a profissão musical, mas ficou assustado ao ver que diversos ídolos viviam em más condições financeiras quando viajou da Bahia para São Paulo a fim de fazer um curso de torneiro mecânico. 

Na volta, decidiu seguir o caminho de seu pai, que já tinha uma oficina mecânica há muitos anos, e se dedicou à metalurgia. Entre músicas, mecânicas e metalurgias, Osmar se juntou a seu compadre Dodô, e essa história você, provavelmente, já conhece: as ideias do inventivo Dodô se somaram ao conhecimento técnico de Osmar e surgiu assim o primeiro trio elétrico em 1950, com a dupla montada num Ford 1929, com as cornetas (as “caixas de som” da época) amplificando as cordas, e a banda tocando em movimento. A continuação dessa história foi vista no Carnaval desse ano, será vista no próximo e assim por diante. 

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Naquele ambiente, a música logo contaminou o filho de Osmar, Armando Macedo – ou simplesmente Armandinho. Nascido em 1953, ele teve uma infância regada a Garoto, Jacob do Bandolin e outros grandes nomes da música instrumental brasileira dos anos 1950 e 1960. Perto dos 10 anos de idade, Armandinho já ganhou seu Trio Elétrico Mirim para tocar (em movimento e alto!) com sua primeira banda de frevo. 

“A música me salvou. Minha mãe faleceu quando eu tinha oito anos, e pra mim foi traumático. Eu dei até uma apagada mental desse período, levou quase um ano. E aí é que eu começo a sair com meu pai nos fins de semana e pegar o bandolim dele. Com isso, eu saí daquele processo introspectivo”, conta Armandinho, que ficou cerca de dez meses nessa rotina até chegar ao trio mirim. 

Não bastasse o pai inventivo e a referência dos grandes instrumentistas brasileiros, Armandinho viveria uma revolução na sequência: “Em 1964 eu ainda não tinha ouvido Beatles. Então, eu toco em 1964 e 1965 no trio elétrico. Mas em 1965 é que eu começo a ouvir Beatles, e minha vida muda, eu começo a querer aprender guitarra e violão. Meu pai detestou!”, confessa o músico.

A invenção da música voltada para o público jovem, capitaneada pelos Beatles e seguida de perto no Brasil pela Jovem Guarda, traria novos ares e era um movimento imparável. O diferencial de Armandinho é que ele não substituiu o instrumental brasileiro pelos Beatles, mas somou. 

Na música brasileira, um dos outros filhotes dessa mistura foi Novos Baianos. Armandinho já ouvia Pepeu Gomes quando este tocava contrabaixo no grupo Os Minos. Em 1970, Armandinho recebe de um primo a estreia dos Novos Baianos em disco, É Ferro na Boneca, e aumenta ainda mais sua admiração por Pepeu, nesse momento já na guitarra. 

“Aí em 1973, quando estouraram, [os Novos Baianos] vieram fazer um show aqui em Salvador, e eu fui ao sítio onde eles estavam. Nesse dia foi meu primeiro contato com Moraes Moreira”, relembra Armandinho, que seguiu por um tempo ainda tendo mais assunto com Pepeu, aumentando sua admiração e também sendo admirado.

Como Moraes Moreira foi decisivo para a expensão do carnaval como o conhecemos

“Eu passei a afinação de bandolim pra Pepeu usar na guitarra. Ele foi uma influência pra mim e, pô, eu tenho a satisfação de ouvir ele dizer que eu fui influência na guitarra baiana. É uma troca muito gratificante, porque Pepeu é referência dessa guitarra fusão, né? Essa guitarra que toca samba, que toca Jimi Hendrix. Era o que mexia com a gente nessa época. Quem fizesse um toque que lembrasse Beatles e Hendrix tava falando comigo e com toda uma geração de Beatlemania e Hendrixmania”, conclui. 

A aproximação entre Armandinho e Moraes Moreira se dá com a saída de Moraes dos Novos Baianos e a sua ida definitiva para o Rio de Janeiro em 1974. Na busca de Moraes por uma banda, Armandinho recebeu um recado quando viajava pra São Paulo num projeto de música baiana com Riachão e Batatinha. Na volta, fez escala no Rio de Janeiro: “Moraes disse: ‘Traga o bandolim’! Aí pronto! Fui pra casa dele umas cinco da tarde e saí cinco da manhã. Passamos a noite tocando chorinho, fazendo um som”. Deu liga! 

Uma das primeiras composições dessas noitadas foi uma música em homenagem a Davi Moraes, filho de Moreira, que tinha por volta de um ano de idade: “Davi ficava querendo pegar no bandolim e Moraes ficava: ‘Davi, peça licença!’. Ele foi aprendendo a falar: ‘Davi, licença’, ‘Davi, licença’… Aí nasceu a música ‘Davilicença’”, faixa que está presente no álbum Cara E Coração (1977). 

O lance é que essas noitadas foram se estendendo, e num determinado momento, Armandinho já achou melhor morar por lá mesmo. Naquela mesma filosofia comunitária dos Novos Baianos, Armandinho passou a viver com Moreira e sua então esposa, Marília Mattos, e os pequenos Davi e Cissa Moraes. “A gente ia dormir cinco da manhã e às sete Davi já me acordava pedindo pra pegar o bandolim”, lembra Armandinho. 

Essa rotina durou cerca de quatro meses e já se ensaiava para o primeiro disco solo de Moraes. Ao mesmo tempo, Armandinho formava a banda base, que depois se tornaria A Cor do Som. Vieram Dadi Carvalho (baixo), que também saiu do Novos Baianos, Gustavo Schroeter (bateria) e Mú Carvalho (irmão de Dadi, que havia sido chamado para fazer teclado apenas em uma faixa, caiu nas graças de Moraes e ficou). 

“Aí eu voltava pra Bahia, passava dois meses e Moraes chamava pra algum show ou gravação. Em 1975, ele se separou da mulher, que foi com os filhos pra casa da mãe, d. Cândida, e a gente foi batendo de apartamento em apartamento. Afonsinho, o jogador de futebol, tinha um apartamento em Botafogo. Quando ele ia jogar fora do Rio, a gente ficava no apartamento dele. E aí em 1977, a gente ficou na casa de uma namorada de Moraes. Eles brigaram, Moraes saiu, mas Ary Dias [percussionista] e eu ficamos”, relembra Armandinho. 

A partir de 1978, Armandinho conseguiu alugar uma casa na Barra da Tijuca pra servir de moradia e de sede d’A Cor do Som, que estouraria no ano seguinte com “Beleza Pura”. “Moraes também já estava com ‘Pombo Correio’ estourado, com um trabalho mais estabelecido, e a gente deu aquela separada de banda. Mas eu segui ligado a Moraes, a gente estava sempre junto, toda semana tinha uma noitada, geralmente na casa dele, na Gávea”, conta Armandinho. 

Desses encontros saíram diversos hits, como “Chame Gente”, que já se tornou tradicional no Carnaval da Bahia. Agora, em 2024, Armandinho presenciou Léo Santana tocando o hit no ritmo do pagode baiano e lembrou também de outra ocasião: “Quando deu aquele rolo de vaiarem Claudia Leitte no Carnaval [em 2022], o que ela fez? Puxou ‘Chame Gente’. Porque essa música é uma oração, representa muito o jeito, o espírito baiano”. 

Assim como o pai brincava com a música, Armandinho leva o mesmo jeito. Até hoje ele não tem esse momento de parar para compor. É brincando com as cordas que as melodias vão saindo e as músicas vão sendo criadas. Ele conta que, um dia desses, perdeu mais de mil melodias que estavam gravadas num celular que parou de funcionar. 

Esse comportamento, de compor a todo momento, ajuda na economia de tempo no estúdio. E isso vem desde o começo: “A gente não levava muito mais do que um mês gravando. Com mais crédito da gravadora, a gente aumentou os prazos mais pela liberdade conquistada e tal, ia fazendo no nosso tempo. Mas ‘Pombo Correio’, por exemplo, a gente gravou numa tarde. Era a última música do disco, que já estava pronto. Guto Graça Mello, produtor, escutou e correu pro estúdio: ‘Vamos fazer isso já pra entrar nesse disco!’. Aí a gente entrou, gravou numa tarde e foi um estouro nacional de Moraes”, relembra Armandinho, que também capitaneou os discos do Trio Elétrico Dodô e Osmar, mesmo sem colocar seu próprio nome na capa.

“A gente gravou o primeiro disco do trio [Jubileu de Prata (1975)] praticamente em uma semana, se muito. Com a mixagem, em dez dias. A gente já chegou com tudo pronto. Foi gravar as bases, depois botar os cavaquinhos, a voz, e acabou”, completa. 

Inclusive, esse álbum, Jubileu de Prata, foi o responsável por imortalizar em estúdio a entrada de Moraes na sonoridade baiana carnavalesca do trio elétrico. Armandinho resume bem toda essa história: “Ele foi pro trio e lá tinha um microfone só pra meu pai dar ‘boa noite’. Era: ‘Boa noite, meus amigos’. A gente chamava o microfone de ‘meus amigos’. O microfone não ficava nem em pedestal, ficava guardado. E num dia, Moraes pede pra deixar o ‘meus amigos’ ligado, que ele ia cantar. O som ainda era muito baixo, o que a época permitia… Então a gente conseguia ouvir o povo, e o povo começou a cantar junto, deu uma vibração diferenciada. E aí é que meu pai declara que Moraes foi o primeiro cantor em cima do nosso trio elétrico”. 

A história conta que o fato de um cantor dominar um trio elétrico totalmente, se tornando quase que um solista, aconteceu apenas no começo dos anos 1980, já com o início do movimento que ficaria conhecido como Axé Music — inicialmente, nomeado assim de maneira jocosa por um jornalista equivocado, e logo depois, assumido com orgulho pelos artistas. 

“Daniela Mercury mesmo fala que ela subiu num trio elétrico em 1983 pela primeira vez pra cantar, mas que ela esperava horas o cavaquinho solando, que o povo gostava daquele cavaquinho. Aí ela cantava e entrava o cavaquinho de novo, porque ainda era uma coisa muito instrumental. Em 1978, eu botei o nome de guitarra baiana e caiu como uma luva, porque era uma característica muito forte, sonora. Não era qualquer cavaquinho elétrico ou qualquer guitarra. Essa guitarra é baiana! E batizei com esse nome, ninguém mais chamou de cavaquinho elétrico como era chamado”, conta o orgulhoso Armandinho. 

Hoje, Armandinho se dedica aos shows em que reúne os irmãos Macedo para contar e recontar as histórias de seu pai, Osmar, seu compadre, Dodô, e do trio elétrico. Ao relembrar os shows d’A Cor do Som em 2016, que passaram por São Paulo e Rio de Janeiro, Armandinho também se lembra de uma história que usa até hoje no palco. 

“Rapaz, uma amiga, que é espírita, me disse que a entidade que a guia, chamada Valentina, estava nesse show de São Paulo e curtiu muito. E disse também que a entidade gostava do trio elétrico — e não só ela, que muitos espíritos gostavam também. E eu acredito!”. Se Armandinho representa esse espírito, esse jeito de ser de um guitarrista baiano, parece que os espíritos se sentem representados. Atrás do trio elétrico vai até quem já morreu.

Esta matéria foi publicada originalmente na Revista Noize que acompanha o vinil Moraes Moreira” (1975), lançado em 2024.

26/02/2025

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Marcos Lauro