Digital Belém, novo disco do cantor e compositor Saulo Duarte, chegou às plataformas de streaming no último dia 18/7. O registro traz uma incursão do paraense por suas origens musicais, em diálogo com métodos digitais de produção musical. No álbum, Saulo mistura à cumbia, o carimbó, a guitarrada e outros ritmos do Norte com sintetizadores e MPCs.
Com foco na canção popular, o álbum traz participações dos antológicos Aldo Sena e Manoel Cordeiro, mestres da música do Pará, Layse, destaque da nova safra do estado, dos baianos Russo Passapusso e Larissa Luz, e da cantora franco-senegalesa Anaïs Sylla. Através de letras que trazem uma perspectiva, nas palavras do artista, “terceiro mundista”, Saulo relê os ritmos de sua infância e os repensa no contexto atual de sua vida e carreira.
“Por mais que eu tenha me afastado geograficamente de Belém, isso foi inversamente proporcional à minha aproximação passional, inconsciente, desse lugar afetivo da música paraense”, declarou o artista, em entrevista à NOIZE, sobre os motivos que o levaram a conceber e realizar o álbum.
Confira nosso papo completo com Saulo sobre Digital Belém, a música do Norte do Brasil e suas expectativas com o novo trabalho:
Tu nasceu em Belém e os ritmos do Norte têm ganhado cada vez mais destaque no cenário nacional. Como surgiu a vontade de fazer um álbum voltado para essas influências?
Cara, basicamente esses ritmos latino-amazônicos sempre estiveram, consciente ou inconscientemente, dentro do meu universo. Nasci e morei em Belém até os 13 anos de idade, então obviamente faz parte da minha memória afetiva, é o lugar onde começou o meu interesse por música. Os ritmos eram brega, carimbó, cúmbia, guitarrada, mas só depois eu fui entender o que eram esses gêneros. Na época, eram as músicas que tocavam. Eu escutava de forma passiva, porque quem botava o som eram os adultos. Ou ouvia no ônibus, na feira. Na minha adolescência, quando fui resgatar essa memória, eu falei: “Caramba, eu já gostava disso há muito tempo”. Minha mãe me teve muito jovem, então, uma das minhas primeiras memórias de vida é minha mãe passando no vestibular e tocando a “Marcha do Pinduca”, um carimbó. Em 2014, eu fiz um disco que se chama Quente com a minha banda antiga, Saulo Duarte e A Unidade, que já era uma reaproximação desse universo. E isso cada vez mais foi ficando forte. É louco, por mais que eu tenha me afastado geograficamente de Belém, isso foi inversamente proporcional à minha aproximação passional, inconsciente, desse lugar afetivo da música paraense. Pra resumir, o álbum nasce de dois singles, que eu ia lançar com o produtor musical do disco, Lucas Martins. O Russo Passapusso estava ouvindo essas duas faixas e falou: “Pô, bicho, muito legal isso aí, meio digital Belém”. Ele soltou essa frase, ficou na minha cabeça porque tem tudo a ver com esse conceito. A gente não está inventando a roda: o próprio tecnobrega parte desse princípio, de usar as tecnologias disponíveis para dar vazão à música da periferia. Mas, ao mesmo tempo, para a minha obra, isso é novo. Então, é essa ideia, de usar os elementos digitais e eletrônicos. Bateria eletrônica, baixo synth, samples, MPC e SPDS para ler os ritmos latino-amazônicos. O compositor é o mesmo, sou eu, só que de roupa nova, digamos assim. É como se estivesse falando sobre os mesmos assuntos, trocando as mesmas ideias, com o mesmo swing, só que atravessado por um novo estímulo, fazendo surgir uma terceira coisa.
Queria que tu falasse um pouquinho mais a respeito da interlocução entre os ritmos locais e a tecnologia. Como tu disse, isso já é quase uma tradição, essa apropriação das ferramentas de forma criativa, principalmente em espaços periféricos. Como foi pensar isso na obra?
É exatamente isso que você está falando. As estéticas mais sofisticadas nascem da limitação. Se você for pensar no funk carioca, no tecnobrega, são as caras na periferia do Rio de Janeiro ou de Belém. Ele não tem o Pro Tools mais atualizado, mas tem as ferramentas digitais. Quando você pensa, normalmente é basicamente uma batida, uma voz e, no máximo, três elementos. Isso é muito sofisticado. Lá na gringa, a galera chama de minimal e pensa nisso como estética. E aqui no Brasil, cara, vem de uma autoconfiança gigante. O Brasil tem isso, essa coisa meio antropofágica com as referências. Belém é muito interessante nesse aspecto, com as versões em português de músicas em inglês, adaptada às nossas maneiras, do jeito que a gente gosta de escutar. Isso é muito foda. Eu também me aproprio disso, das artimanhas do terceiro mundo. Eu pago muito pau mesmo para o tecnobrega, o funk, o piseiro, o pagodão, para essa galera brasileira que fala: “Eu vou fazer à minha maneira, vou botar bacurinha que é meu instrumento, eu vou colocar aqui a guitarra tunada”. E disso surge uma autenticidade, uma linguagem, muito fresco, algo muito mais interessante do que o pop tradicional, que vem seguindo uma cartilha. Máximo respeito, adoro pop, inclusive, esse disco é pop, no sentido de popular, pras pessoas cantarem. O que eu quero dizer é que estou mais interessado nessa estética da escassez do terceiro mundo, nessas possibilidades de devorar uma coisa e vomitar outra. O Lucas Martins é um cara muito importante, porque ele trouxe esses códigos e fez essa primeira provocação: “Pô, Saulo, os teus discos, soam sempre mais orgânicos”. Eu tive banda grande, eram os instrumentos, baixo, bateria. “Por que não pegar o teu som e colocar nessa outra estética?”, ele perguntou. A partir disso, a gente foi tateando, buscando um pouquinho das referências do tecnobrega, do funk, das coisas gringas que a gente gosta de ouvir, só que traduzindo isso pras músicas que a gente tinha na mão.
O disco lida sobretudo com canções, com essa construção de melodia e letra junto com os ritmos, colocando a música em um lugar em que é feita para ser cantada pelo ouvinte. Pode falar um pouco disso?
É ótima a tua observação, porque eu já não sou mais nenhum jovem, então as minhas referências são do cancioneiro brasileiro, compositor, canetada. Você pega Gilberto Gil, “Se Eu Quiser Falar Com Deus”, aquilo vai para além do fonograma e dos arranjos das músicas. Se ele tocar a voz e violão, a gente vai dizer: “Wow, o que é isso?”. Então, esses compositores todos, Djavan, Gilberto Gil, Bob Marley, são artistas da canção e têm um compromisso com a palavra, com o que querem dizer ali. A harmonia da música está contextualizando o que as palavras que eles estão dizendo. É um trabalho de artesão pelo qual eu sou muito apaixonado. Meus ídolos e os contemporâneos que admiro perseguem isso. Estamos sempre atrás da palavra para falar na canção. Converso muito disso com o Russo. A gente se aproximou recentemente do Antonio Carlos e Jocafi, o Russo trouxe eles pra mais perto da gente, e enfim, nessa troca de ideia, a gente percebe que é uma continuidade, desde a geração deles buscando esses códigos. Porque, no final das contas, a canção é como se fosse a essência, a pessoa pelada. O fonograma são as roupas que a gente coloca. É como escolher botar um casaco, com ou sem capuz, isso ou aquilo. A canção é a essência, é o que tem que estar mais sólido esteticamente. O meu processo de composição, inevitavelmente, é pegar o violão, um papel, uma caneta e tatear esses signos, tramando essas coisas. Esse disco foi diferente para mim, me tirou dessa zona de conforto. Tudo nasce como canção, tem refrões, a estrutura natural, estrofe a, estrofe b. É música. Às vezes fico um pouco chateado com essas fórmulas rápidas de internet, música pra TikTok. Respeito todo mundo que é consumidor, porque eu também sou assim, muito ansioso, me incluo nisso. Mas também estou tentando, na minha vida pessoal e da minha carreira, propor outro tempo, de uma introdução longa, uma música onde você possa viajar na letra de um disco que tem 33 minutos. Você pode ouvir duas vezes em uma horinha. São essas as propostas. Então, basicamente é isso, Eric, a vontade e o compromisso com a canção popular. A partir disso, os arranjos vão nascendo, na estética de hoje, mas sendo aquela canção tradicional, digamos assim.
Como tu vê esse movimento das músicas do Norte se espalhando pelo Brasil?.
A gente está vendo cada vez mais o Brasil inteiro ter mais conhecimento sobre a música feita no Norte e, consequentemente, se apropriar disso tudo. Eu vejo isso com bons olhos, muito embora, a gente tenha que entender que durante muitos anos houve um silenciamento da região, um apagamento dessa cultura. A música feita no Norte foi excluída desse termo “MPB”, o que é uma heresia, porque se tem uma música que é popular, é a música do Norte. Se isso não é popular, eu não sei o que é. Durante muito tempo ficou esse estigma de “música regional” ou ” música exótica”. Nos anos 80 teve o boom da lambada, com Beto Barbosa, Banda Kaoma, Fafá de Belém, foi o primeiro gol. Nos anos 2010, tivemos aquele período do tecnobrega, em que o Miranda, um grande produtor musical, trouxe o ritmo para São Paulo. Vimos o surgimento da Gaby Amarantos, o próprio Felipe Cordeiro, o Manoel Cordeiro voltando à tona. E agora, sinto que estamos num terceiro momento. Não podemos deixar de citar a questão ambiental, porque o mundo passa pela preservação da Amazônia. Não existe mundo sustentável sem a Amazônia e consequentemente não existe plataforma de expressão mais importante do que a música do Norte, das pessoas de lá. Vejo com bons olhos essa apropriação, desde que os originais, as pessoas que fizeram a parada no início, sejam devidamente reconhecidas. O Aldo Sena, por exemplo, que é o guitarrista inaugural da guitarrada, um ritmo que virou patrimônio nacional, exclusivo e único do Brasil. Esse cara está vivo e vive bem, graças a Deus, mas não como deveria, porque ele é um Eric Clapton, um BB King. Deveria ter um reconhecimento à altura, porque ele é tão importante quanto esses caras, só que é brasileiro. Quando tiver um botãozinho de carimbó ou o botãozinho do tecnobrega, quando essas pessoas estiverem devidamente bem remuneradas e essa música for devidamente reconhecida e valorizada, aí sim a coisa está certa.
Tu traz essa galera da velha guarda, como o Manoel Cordeiro e o Aldo, colocado no mesmo álbum que o Russo, a Larissa. Então, tem esses dois lados. Como tu selecionou essas participações?
Vou ser sincero, é muita sorte poder cruzar com essas pessoas. A música é muito generosa, cuida dessas relações de uma forma muito bonita. Na verdade, tudo foi consequência da relação natural. O Russo é meu parceiro das antigas. Eu toco no trabalho dele, na carreira solo dele. Temos longas trocas, ele é padrinho do disco, deu o nome. A música que ele participa, para você ter uma ideia, fiz a letra como se fosse um folião do Navio Pirata do Baiana System. A letra fala: “Estava na avenida quando aquele delírio começou”. Na primeira vez que vi o Navio Pirata fiquei bastante impactado. A participação do Russo foi consequência, ele é um embaixador da música baiana e dialoga com muito respeito com as músicas de outros estados. O Manoel Cordeiro, desde 2014 a gente estava pensando nisso, há 10 anos. Ele gravou no Quente. Sou fã desses caras. Manoel Cordeiro e Aldo Sena são duas referências de guitarra para mim. Quando olho para essa obra toda, só posso dizer que sou muito grato. Não foi nada premeditado. O Aldo, o Manoel e a Layse eram três participações que achava fundamentais no disco. O Aldo, que é o ato inaugural da guitarrada, e a Layse, que é a nova safra, fresca. Ela é baterista, cantora, compositora, toca boleros, bachatas, carimbó. Temos um recorte gigante da música paraense. O disco chama Digital Belém e não teria como não trazê-los. A Larissa Luz também foi consequência, porque eu admiro demais ela como cantora e artista. Na parte que ela canta na música, eu ouvia um pagodão. É uma música que vai por um arrocha, tem um signo de reggae ali, mas em algum momento eu sentia que podia rolar um pagodão. E nada melhor do que alguém da Bahia, autêntica, para cantar aquele pagodão.
Pra fechar, queria saber: quais são tuas expectativas com o disco? Como é que tu quer desdobrar esse trampo dentro da tua carreira?
Hoje em dia, os lançamentos são muito pulverizados. A gente sabe que se eu lançar o disco à meia-noite, às 10:00 da manhã ele já não está mais no feed das pessoas. O fluxo de informação é muito grande. Então, a primeira coisa é alinhar essas expectativas com esse tempo mais disperso. Estou encarando esse lançamento a médio e longo prazo. É claro que lançar é um evento simbólico, mas sinto que ao longo do segundo semestre eu vou trabalhar muito esse disco. Sou um cara de estrada, então a coisa que mais quero fazer é show. Onde me chamarem, quero ir, porque esse disco é muito gostoso de adaptar para o show, ainda mais porque ele dialoga com outras fases da minha carreira. O show novo está muito bacana. A gente já vem montando e já tem data de lançamento aqui em São Paulo e em algumas outras cidades também. O carro-chefe da divulgação serão os shows, inevitavelmente. As pessoas interagindo com aquela experiência e a partir dali voltando para casa para ouvir o disco. Esse é o primeiro passo. Tem clipe para sair, tem uma sessão ao vivo das faixas, que vamos lançar no segundo semestre. Agora, o desafio é captar a atenção das pessoas com os conteúdos que a gente for gerando. As pessoas vão tendo tempo delas para ouvir. Às vezes é muito injusto com um disco essa coisa de comparar com artistas grandes. Eles fazem aqueles posts e, caramba, em menos de 24 horas o disco teve milhões de views, mas para a maioria dos artistas, isso não é a realidade. Então, não podemos tentar nos medir com essas réguas do mainstream, tem muita injeção de grana nisso. No meu caso, é trabalho orgânico, trabalho de formiguinha. Um show na cidade, o povo gostou, espalha para o amigo. Tática de guerrilha mesmo, irmão. Amo muito o que faço, então quero defender com muito afinco e resistência esse meu filho que nasceu agora. Dialogar com as pessoas que querem ouvir ele, ter tempo para a galera que gostou e que quer saber do disco.
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