ÀIYÉ cria elos entre passado e futuro em “TRANSES”

04/05/2023

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Isabela Yu

Por: Isabela Yu

Fotos: Hannah Carvalho/ Divulgação

04/05/2023

Em TRANSES, o segundo disco como ÀIYÉ, a baterista carioca Larissa Conforto une referências afetivas em um caldeirão poderoso de ritmos e sonoridades. Lançado no final de abril, o registro conta com 13 faixas, e produção musical da artista em parceria com Diego Poloni. Há ainda participações especiais, como a produtora musical Alejandra Luciani em “Flui”, e a artista portuguesa Sús em “Oração”. 

Nos multiversos que compõem o registro, há uma tentativa de dar sentido aos desafios cotidianos. Para ÀIYÉ, o canto de Clara Nunes e Alcione saudando os orixás se une à abordagem eletrônica-experimental do trabalho de Rosalía e Flying Lotus. “O disco carrega a minha pesquisa das histórias do tambor, por isso ele é diverso. Você vai achando as coisas, vai ficando com tesão de misturar tudo aquilo, de ver como soa”, explica a compositora. 

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O pontapé do disco aconteceu em dois de fevereiro do ano passado, quando estava em Salvador para a festa do Dia de Iemanjá. A espiritualidade aparece de forma definitiva em TRANSES, dando um passo além na história iniciada no primeiro disco, Gratitrevas (2020) – ambos lançados pela Balaclava Records. Depois de aceitar a missão de cantar sobre a espiritualidade, o trabalho se desamarrou naturalmente nos meses seguintes. 

Criado e gravado pela artista de forma caseira, o disco foi lançado sem patrocínio ou edital, mas contou com uma série de colaboradores nas músicas e no visual do disco. Em paralelo ao trabalho solo, como baterista, atualmente, Larissa integra as bandas do Paulinho Moska e da Duda Brack, e está sempre aberta a novos convites. 

“Todos os dias são uma luta para achar caminhos e encontrar uma forma de trabalhar que não me agrida. Se não, você vira uma pessoa refém das regras, dos algoritmos e das demandas. Estou olhando para o que é importante para mim e o que consigo fazer sem que me maltrate”, pontua a musicista. As primeiras paradas do lançamento de TRANSES aconteceram no último final de semana em Goiânia (29/4)  e Brasília (30/4), e nos próximos meses, ela continuará na estrada com esse novo repertório. Leia uma entrevista com a artista a seguir: 

Como as vivências no exterior impactaram na construção das músicas e na sonoridade do álbum? 

No ano passado, fiz uma turnê de quatro meses na Europa e foi muito especial porque amadureci em muitos sentidos, especialmente na performance – foram mais de 30 datas em sete países. Estou tentando fazer um show cada vez mais visual e emocional, no sentido de ser honesto, com mais sinceridade e menos carão. Quase como um culto ou uma gira. Então a viagem me abriu os horizontes, até porque eu já estava compondo essas músicas. Vivi momentos de frio em Inglaterra e na Dinamarca, momentos de calor em Portugal, Espanha e Itália. Visitei as igrejas no sul da Itália, percebi que o altar tinha um jeito brasileiro, com um monte de santo e flor de plástico. Percebi que era a estética que eu estava pesquisando, então fiz uma roupa com várias imagens de santo e as rendas da Umbanda. A estética que estou caçando passa pelo lugar do altar de todos os santos, desse Brasil meio baixa renda, da minha história em Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Tudo isso revela uma Larissa que eu não conhecia, mas fui enxergando ela. A gente se molda para tentar se encaixar, lembrei das vezes que tentei pertencer a um lugar que não era meu. Agora estou experimentando apenas sentar no lugar que me pertence e representar as coisas que sempre me permearam. Esse meu jeitinho carioca de vamos dar um jeito. Pega uma cortina, coloca no vestido, junta com um santo, um strass e a cruz de LED. 

Esse processo também se refletiu na hora de escolher cantar em português, iorubá, espanhol ou inglês? 

O disco ter várias línguas também vem dessa mistura. Escrevi “Bad Omen” quando estava em Portugal: é uma música sobre xenofobia, falar português era perigoso para a minha integridade física, então falava inglês porque não queria ser vista como brasileira. O espanhol vem desse lugar de pesquisa, faz anos que viajo pela América Latina em busca de ritmos para encontrar elos entre os ritmos ancestrais, como os afroperuanos e afro uruguaios. É um disco sobre os nossos ritmos ancestrais. Estou há sete anos na Umbanda, agora sou consagrada como Ogã de uma casa, o que é louco porque sou mulher, e teoricamente não pode. Eu tocava na curimba, mas agora sou responsável pelos atabaques. Essa responsabilidade me propôs um mergulho, de buscar entender o que esses ritmos representam e perceber como são expressões conectadas a outras culturas. O ijexá do Rio de Janeiro, que está no meu disco em “Cores de Oxum”, é diferente do ijexá baiano. Observo que o mesmo ritmo carrega traços de cada lugar e como isso deságua nos outros países. Eu tive muitas bandas de rock, vejo que esse olhar subversivo está nas músicas das periferias latino-americanas. O reggaeton, funk e brega são o novo punk. Para mim, esses são os sons do futuro, a revolução está ali. O disco carrega a minha pesquisa das histórias do tambor, por isso ele é diverso. Você vai achando as coisas, vai ficando com tesão de misturar tudo aquilo, de ver como soa. 

Em Gratitrevas (2020), há uma introdução à questão da espiritualidade em músicas como “Terreiro”. Como TRANSES intensifica essa relação? 

Eu não me sentia convidada a falar sobre Umbanda ou lançar as músicas que eu compunha dentro do terreiro. Não achava que era o meu lugar de fala, por ser branca, então demorei para entender como incorporar no meu trabalho – e só fiz porque fui chamada para fazer isso. Primeiro, recebi o nome ÀIYÉ (terra em iorubá), que eu não entendi muito bem como usar, mas adotei mesmo assim. Não à toa, soltei “EXU (Tenho fome)” como primeiro single porque eu queria abrir os caminhos. Já no segundo single, “Onda”, foi Iemanjá que pediu. Em dado momento, Iemanjá aparece na minha vida e fala: “gata, seu disco não tá andando porque você não está colocando as suas músicas de santo. Se você não fizer nessa vida, vai ser na próxima”. Era para eu dar o meu jeito de fazer isso. Essa missão foi dada em dois de fevereiro em Salvador, e ela foi cumprida no momento em que girei a chave. Depois disso, foi tudo muito rápido. Fui achando as saídas, de buscar a leveza, brincadeiras, beats, algo pop, e uma forma despretensiosa de falar sobre o assunto usando outras alegorias. Estou falando sobre sexualidade, vida e amor, então os orixás entram nesse lugar de auxílio. Estou aceitando essa missão com todo amor e respeito que posso. 

Como foi o processo de seleção das 13 faixas? 

As músicas tiveram muitas versões. “Ori”, por exemplo, quase não entra. Ela seria a primeira, mas ficou como última. No meio do processo pensei em traduzir do iorubá para o inglês, mas não queria abrir o disco com uma faixa em inglês. A coisa mais difícil foi escolher o setlist e a capa. Tudo nesse disco aconteceu dessa maneira, ia tateando até encontrar. Foi um laboratório: vamos ver se isso explode com isso? Tudo na tentativa e erro. Me permitir viver esse mar de sensações, esse ir e ver, testar e ouvir, até que abandonei, se não, o disco não acaba, né? O nome eu já sabia desde o início. Lá no início da produção das músicas me veio o nome. 

Na faixa “Intro”, que abre o disco, você fala que TRANSES é “uma encruzilhada, um altar de todos os santos e a mistura do Brasil com o Egito”. Por que começar com esse áudio? 

Eu já tinha mudado o setlist diversas vezes. Pedi opinião para todo mundo, mas cada pessoa mandou uma ideia diferente. O que vou fazer? Sentei com o Diego (Poloni) para bater o martelo. De início, abriria com “EXU (Tenho fome)”, mas entendi que ela precisava vir depois de “Pomba Gira (Ela Reina)”. Lembrei de um áudio que tinha mandado para ele, onde explicava a ideia de encruzilhada. Acho a introdução explicativa, sou eu sendo honestíssima. Senti que as pessoas não entenderam nada quando lancei “Onda” como single, as pessoas falavam: “Larissa vai fazer axé”. Depois de “Diablo XV”, acharam que eu ia para o espanhol e reggaeton. Então acho que a faixa ajuda a explicar a graça, a bobeira da coisa, porque é um monte de coisa junta, então melhor ir até o final. É uma forma despretensiosa de apresentar o disco, um áudio sincero de como eu me sinto em relação a isso. Vejo que foi uma decisão acertada porque é uma mistura do Brasil com o Egito. 

Como aconteceu o processo de criação da imagem da capa? 

Tem várias coisas! Tem uma pintura que o PAES, uma ilustração do Vallada, uma foto minha do Caike Molina, e o Rafa Rocha criou a colagem com mais uma porção de prints. Coloquei alguns símbolos na headpiece – faço minhas joias desde que comecei a pensar na cenografia da ÀIYÉ –, mas não sei se dá pra ver, mas tem o símbolo de Exú, espada de São Jorge… Em algum momento, achei que seria apenas foto, mas depois achei que precisava ter tudo Então, tem foto do Kung Fu, porque troquei de faixa enquanto estava gravando. Tem a foto da oferenda que levei pra Iemanjá, print de pedido do Pop Vegan, o olho da Bjork, um monte de easter eggs escondidos. A capa conversa com a estética que eu já adotava, como no clipe de “Mito e a Caverna”. Em 2018, quando a ÀIYÉ nasceu durante a residência no Centro da Terra, eu abria o Google e projetava as páginas com coisas que tinham a ver com o tema do dia. Gosto dessa estética meio pós internet. A grande diferença nesse disco, é que eu falava da internet pelo lado sombrio, e agora busco o lado das luzes, de que a internet pode trazer algo positivo. 

Quais são os planos para os próximos meses? 

Estou com um monte de data, graças a Deise, então vou fazer bastante show. Todos os dias, me pergunto sobre como sobreviver com a forma que o mercado da música está me tratando agora. O que eu sei fazer é do jeito punk. É viajar, fazer o show, me conectar com as pessoas, trocar ideias com elas e voltar para a minha cidade. Daqui a três meses eu volto e toco de novo para um terço a mais de pessoas. Eu sei fazer isso, fazer turnê e ficar na estrada, como uma boa filha e Ogum. É isso que estou fazendo, com toda a minha vontade e todo o meu amor. Tenho muitos sonhos, quero desenvolver um show com mais músicos e fazer o lançamento no Rio e em São Paulo. Mas por enquanto, o plano é viajar para lugares profundos do Brasil. Vou pela primeira vez para Cuiabá e Campo Grande, também faço Ribeirão Preto e Uberaba, depois disso vou para Argentina, Uruguai e Chile. Tenho dois formatos de show, um com percussão e bateria, ou uma versão reduzida com os meus pedais. Entendo que esse show é uma ponte de LED que une o terreiro e a pista, um conector para esse transe. Sinto que posso levá-lo para muitos lugares, já fiz festival de MPB a festa de música eletrônica em Berlim, voz e violão dentro de um apartamento em Portugal e em praças no interior da Itália. Além de conseguir ir para muitos lugares, é uma maneira de eu me conectar com os músicos locais e tentar trazer trocas para que cada apresentação seja diferente porque ainda tem muito espaço para improviso. Ainda que tenha esse lugar de pregação, onde falo das coisas que acredito, é um espaço de falar sobre política e orixás, de explicar da onde eu venho e dividir no que eu acredito para o mundo. 

Agora que você está voltando a viajar, como enxerga as mudanças no circuito independente? 

Muito diferente. Poucas casas reabriram, e as que resistiram, estão em formatos novos. É bonito ver a galera voltando, mas ao mesmo tempo, vivemos uma recessão no país. Todo mundo está sem dinheiro, mas tudo está mais caro. Sinto que a música está estagnada. As coisas estão voltando? Sim, mas a gente não tem uma margem para uma reviravolta, então é um traço que observo em todos os lugares. Todo mundo está entendendo como se portar ou como divulgar os eventos. Os eventos no Facebook ainda funcionam na Europa, por exemplo, mas cada localidade e nicho vai ter a sua forma de se relacionar com o público. Estou aprendendo, vejo uma estudante surfando nas mil ondas dessas mudanças. Uma alternativa precisa surgir porque todo mundo está nadando no mesmo mar sem saber onde é a borda. E o que a gente vai fazer? Não tem como ficar sem. O meu negócio é a performance, a expressão, a conexão com as pessoas. Entender como a música naquele lugar soa de forma diferente e como aquele olhar vai reverberar em mim. Então não tenho outro jeito de fazer a coisa que não seja estar na estrada. É uma necessidade, é o alimento da minha alma. Se eu ficar em casa fazendo mais música, vou ficar triste, como fiquei na pandemia. Tem muita coisa negativa e muita coisa a ser mudada. Por outro lado, está sendo maravilhoso lançar o disco, porque o primeiro foi em 2020, então agora consigo ir para a rua e ver como as pessoas respondem. O público dança no show, que é algo novo. Está sendo um processo novo, importante e maravilhoso. 

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04/05/2023

Isabela Yu

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