Carlos Eduardo Miranda: 10 discos de uma vida de som

23/09/2024

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Gustavo Brigatti

Por: Gustavo Brigatti

Fotos: Rafael Kent

23/09/2024

Imagine uma linha do tempo da música brasileira. Mas não qualquer música brasileira, só a mais original, disruptiva, ousada e interessante. Estique essa linha do começo dos anos 1980 até o dia 21 de março de 2018, quando partiu desta para uma melhor o principal nome dessa linha: Carlos Eduardo Miranda.

Produtor, jornalista, diretor criativo, músico de improviso, executivo diletante e até jurado de shows de talentos, Miranda jogou em praticamente todas as posições da cadeia musical. Seu principal troféu foi ter sido responsável pelo boom da cena independente brasileira nos anos 1990, quando fundou o selo Banguela, mas trabalhou incansavelmente antes e depois. Sempre em busca do talento, estivesse onde estivesse. 

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Fica o legado de um dos maiores incentivadores não só do rock, mas da música de todos os gêneros produzida no Brasil. De Porto Alegre a Belém, escolhemos 10 álbuns decisivos em que o Miranda se envolveu para contar a história de sua vida.

Boa viagem!

Rock Garagem (1984)
Vários Artistas

Miranda surgiu para a música em cima do palco, na Porto Alegre do início dos anos 1980, quando a capital gaúcha começava a sintonizar o rock em suas frequências moduladas. Em uma cena que se caracterizava pelo dinamismo de formações e pluralidade de subgêneros, ele encontrou seu lugar participando (com maior ou menor protagonismo) de uma série de bandas, sempre dialogando com a experimentação e sem nenhuma paciência para o lugar comum. Revezando-se entre vocal, teclado, guitarra, programação de beats e samples, fez hard rock com pegada metal nos primórdios do Taranatiriça, se meteu com punk rock e pós-punk no Atahualpa Y Us Panquis e misturou teatro com new wave na Urubu Rei. Com esta última, aliás, conseguiu um dos poucos registros em disco, na coletânea Rock Garagem. O álbum é considerado a pedra fundamental do que viria a ser conhecido como Rock Gaúcho e traz a faixa “Nega”, com Miranda nos teclados e vocais. A Urubu Rei, que tinha em sua formação Castor Daudt na guitarra, Flávio “Flu” Santos no baixo e Biba Meira na bateria, se desmancharia pouco depois de participar dessa coletânea. Por volta de 86, Flu e Castor se juntaram à Biba em outra banda fundamental do Rio Grande do Sul, o De Falla, liderada pelo pupilo e amigo de Miranda, Edu K.

Com Amor Muito Carinho (1988)
Graforréia Xilarmônica

Em meados dos anos 1980, a cena roqueira de Porto Alegre fervilhava. Entre os destaques estavam Os Replicantes, expoente do punk brasileiro que àquela altura tinha um fã-clube considerável e tocava em casa clássicas da capital gaúcha, como o bar Ocidente. Miranda, que já havia trabalhado com a banda em seu primeiro single, “Nicotina”, se juntou à trupe para fundar o Vórtex, misto de estúdio, produtora, bar e selo. Pelo Vórtex, foram lançadas fitas cassete de bandas representativas daquela cena, como Os Cascavelletes e Julio Reny. Mas talvez o K7 mais importante que o selo lançou ainda com a participação de Miranda na equipe tenha sido a demo Com Amor Muito Carinho, que apresentou a Graforréia Xilarmônica para o grande público. Formada por Carlo Pianta, Frank Jorge e Marcelo Birck, a Graforréia não tinha apenas o nome bizarro: enquanto a sonoridade se inspirava em uma esquecida Jovem Guarda misturada com rock experimental, as letras flertavam com o nonsense, cruzando cultura pop, regionalismo e o duvidoso senso de humor porto-alegrense. Sem contar, que diferentemente da imensa maioria dos envolvidos com a cena do rock no Rio Grande do Sul, o trio realmente sabia fazer música – e Miranda sabia disso. Tanto que viria a trabalhar com a banda novamente em 1995, lançando o primeiro registro oficial da Graforréia, Coisa de Louco II, lançado nos estertores do Banguela, seu selo descobridor de talentos dos anos 1990. Com o tempo, a banda ganhou uma aura cult, chegando a ter duas músicas suas regravadas pelo Pato Fu, “Eu” e “Nunca Diga”, sendo que essa última também já foi tocada pelo Los Hermanos. 

Raimundos (1994)
Raimundos

No começo dos anos 1990, o mainstream da música no Brasil estava tomado pelo sertanejo e pelo axé. Sem muito espaço no rádio e na TV, o rock (re)encontrava seu caminho em festivais independentes, espaços alternativos e em bandas que lançavam seus trabalhos em demos caseiras.
Nesse momento, Miranda já não morava em Porto Alegre, estava em São Paulo trabalhando como repórter da revista Bizz e vivendo ativamente a cena de música alternativa da cidade, envolvendo-se de forma mais ou menos ativa com o trabalho de vários grupos. Nesses anos em que viveu na redação, ele recebia muitas fitas demo, incluindo as primeiras gravações de grupos ainda anônimos, como Nação Zumbi, Planet Hemp… Seu faro lhe mostrou que alguma estava acontecendo. Durante a gravação do Titanomaquia (1993), Miranda se aproximou do Titãs e resolveu mostrar pra banda essas demos. E os caras do Titãs piraram. Foi assim que nasceu o selo Banguela. Miranda mostrou para o Titãs (e depois pra Warner, gravadora à qual o selo era atraledo) que, com o orçamento normal de uma major desse porte para um disco, ele conseguia fazer vários. O primeiro deles foi o álbum de estreia de um grupo de Brasília que unia ritmos nordestinos com hardcore com letras debochadas. Contrato assinado, Miranda botou o Raimundos no estúdio e sentou atrás da mesa de som deixando que a banda soltasse sua fúria criativa em um disco ousado em conceito e estética. E o tiro foi certeiro: faixas como “Selim”, “Nega Jurema” e “Puteiro em João Pessoa” viraram hinos para aquela geração e, em pouco tempo, o Raimundos virou sucesso de crítica e público, transformando Miranda no olheiro oficial do rock independente brasileiro. Cinco anos depois, Miranda coproduziria ainda Só No Forevis, o disco mais vendido do Raimundos e o último de estúdio com a formação original.

Samba Esquema Noise (1994)
Mundo Livre S/A

Se, com os Raimundos, o Banguela e Miranda tinham seduzido as massas, Samba Esquema Noise, do Mundo Livre S/A, era seu biscoito fino. Um dos fundadores do manguebeat ao lado de Chico Science e Nação Zumbi, o grupo liderado por Fred04 já somava dez anos de atividade sem um registro oficial – até encontrar em Miranda a força necessária para levar adiante a empreitada. No estúdio, sob a batuta do produtor, Mundo Livre S/A misturou samba, rock, punk e funk sem nenhum pudor em faixas como “Musa da Ilha Grande”, “Homero, o Junkie” e “Livre Iniciativa”, que contaram com participações especiais de Nasi (vocalista do Ira!), da atriz Mallu Mader e dos Titãs Paulo Miklos, Charles Gavin e Nando Reis. Considerado um clássico instantâneo e um dos discos mais emblemáticos dos anos 1990, Samba Esquema Noise foi também o primeiro revés do Banguela: custou mais que o previsto e vendeu pouquíssimo, não compensando as horas gastas em estúdio. Mesmo assim, colocou o Mundo Livre S/A na pauta do noticiário musical e foi uma prova de que o Miranda conseguia enxergar muito além do rock n’ roll.

Cansei De Ser Sexy (2005)
Cansei De Ser Sexy

No começo dos anos 2000, a internet ainda engatinhava no Brasil e a troca de arquivos via P2P ainda não havia se consolidado. É nesse cenário que surge a TramaVirtual, braço digital da gravadora Trama que, sob os cuidados de Miranda, se transformaria em um dos maiores distribuidores de música independente do Brasil na época da internet discada. Centenas de bandas encontrariam ali um canal para finalmente se conectarem com o público – e uma delas foi a Cansei de Ser Sexy. Misturando indie rock eletrônico com performances teatrais, o grupo agitava o circuito de inferninhos paulistanos e passou a ser notícia dia sim, dia também, nas colunas de música dos jornais. Miranda não chegou a participar diretamente da produção do disco homônimo de estreia do CSS, mas era entusiasta da anarquia sonora que o grupo produzia e fez uma sugestão inusitada: lançar o CD junto com um CD-R, para que o comprador pudesse copiar o disco nos gravadores de CD caseiros que já estavam se popularizando e dá-lo para outra pessoa – uma espécie de pirataria incentivada. O álbum fez a banda estourar e engatar turnês pelo Brasil e Exterior, em um movimento que animou as grandes gravadoras a olhar a internet não como inimiga, mas como uma aliada. Com a chegada da web 2.0 o site da TramaVirtual foi definhando até morrer, em 2013 – mas a semente plantada por Miranda já havia germinado e não havia mais volta.

Carrosel (2006)
Skank

A relação de Miranda com o Skank remete aos primórdios da banda mineira, quando Samuel Rosa, Henrique Portugal, Lelo Zaneti e Haroldo Ferretti eram quatro garotos aficionados por ska, rock britânico e MPB. O próprio quarteto admitiu mais de uma vez: a história do Skank seria bem diferente sem Miranda, cujos contatos na imprensa foram fundamentais para apresentar os mineiros para o eixo Rio-SP e daí para o restante do Brasil. A aproximação entre ambos era inevitável, uma vez que a música produzida pelo Skank era exatamente aquilo que empolgava Miranda: festiva, com sotaque regional, inteligente e diferente de tudo aquilo que era produzido na época. Foi com toques do produtor gaúcho que o Skank começou a virada em sua carreira, com o disco Maquinarama (2000). Seis anos depois, a parceria entrou no estúdio, com Miranda produzindo quatro das 15 faixas de Carrossel: o rock de acento indie “Mil Acasos”, a balada sessentista “Lugar”, o rock de acento folk “Antitelejornal” e a lúgubre “Seus Passos”.

C_mpl_te (2009)
Móveis Coloniais de Acaju

O Móveis Coloniais de Acaju surgiu no final dos anos 1990, no boom de bandas que cruzavam influências de indie rock com ska e produziam um som dançante e cheio de fanfarronice com uma pitada de MPB. Depois de lançarem um debut produzido por Rafael Ramos e lançado de maneira independente, procuraram Miranda para dar uma burilada no som e crescer em direção ao mainstream. O produtor gaúcho meteu a mão com vontade nos dois discos seguintes do grupo: C_mpl_te, lançado gratuitamente pelo selo virtual que Miranda comandava, o TramaVirtual, e De Lá Até Aqui (2013), que saiu pela Som Livre. Neles, mandou a banda ouvir discos clássicos de punk e ska, aparou os excessos do primeiro álbum e organizou as ideias da trupe brasiliense, conseguindo uma unidade e peso até então inéditos em disco. O toque de Midas de Miranda funcionou tão bem que “O Tempo”, um dos singles de C_mpl_te, virou tema da novela Araguaia, da Rede Globo, e o Móveis virou figurinha fácil nos principais festivais de música brasileiros – incluindo o Rock in Rio de 2011.

Treme (2012)
Gaby Amarantos

No segunda metade dos anos 2000, Miranda estabeleceu uma forte ligação com o Pará. Chegou a se mudar para Belém de mala e cuia para trabalhar, produzindo projetos ligados ao governo do Estado e o que mais pintasse. Foi quando teve contato com a Beyoncé do Pará, sucesso local e em certos nichos virtuais. Mas a “Beyoncé” tinha nome próprio e talento para ser mais do que um meme ou uma sombra de artista gringa – só faltava o direcionamento correto. Trabalhando como diretor musical, Miranda aproveitou seu feeling de trabalhar com artistas regionais (mas de grande apelo pop) para estabelecer a identidade que faria de “Treme” o cartão de visitas de Gaby Amarantos para o resto do Brasil. O disco de estreia era tudo o que o cenário pop brasileiro precisava na época: ousado na estética sem abandonar suas raízes, mirava a vanguarda sem deixar de ser pop. Tecnobrega, carimbó e guitarrada comandavam, mas o resultado era 100% radiofônico, recomendado para qualquer tipo de paladar sonoro. Gaby subiu para o mainstream do centro do país feito foguete, cavando seu lugar nas top charts do rádio, participando de festivais e programas de TV e colocando música em abertura de novela da TV Globo (a faixa “Ex Mai Love” virou tema de Cheias de Charme).

Mahmundi (2016)
Mahmundi

Outra aposta de Miranda, Mahmundi (nome artístico de Marcela Vale) surgiu com voz própria nos anos 2010 no EP Efeito das Cores. O trabalho chamou a atenção da mídia e do público e em 2014 ela levou o Prêmio Multishow de Nova Canção com o single “Sentimento”. Não demorou para Miranda chamar a carioca para o selo Stereomono, o braço da Skol Music que era capitaneado pelo gaúcho e tinha em seu cast nomes graúdos do indie, como Boogarins. Sob direção artística do Miranda e produção dela própria, Mahmundi lançou seu primeiro disco, homônimo. Investindo em beats lo-fi e vocais limpos e super afinados, o álbum respirou a atmosfera pop dos anos 80, mas sem ser saudosista: sob a batuta de Miranda, Mahmundi olhou pra frente, em faixas possantes como “Desaguar” e “Eterno Verão”. Em entrevistas na época do lançamento, ela comentou que um dos pilares da filosofia que sempre norteou o trabalho de Miranda foi fundamental para o sucesso do álbum: liberdade. Segundo ela, Miranda pouco opinou sobre repertório ou arranjos, limitando-se a indicar caminhos e reforçar que ela deveria focar no que fosse sua identidade, sua verdade. Deu no que deu.

La Cumbia Negra (2016)
La Cumbia Negra

Entre 2006 e 2018, Miranda trabalhou também como jurado de vários programas de TV, tendo passado pelos canais SBT, Band e RedeTV! – fato de pouca relevância artística, mas que lhe garantiu uma fama nacional que ele nunca havia experimentado antes. Em um dos seus últimos projetos musicais, Miranda saiu dos bastidores para voltar às origens: o palco. Antenadíssimo com o avançar da música latina em território brasileiro, decidiu fazer parte da nascente cena que trabalhava a cumbia como seu ingrediente principal. Juntou os guitarristas Guri Assis Brasil e Gabriel Guedes, o baterista Thiago Guerra, Klaus Senna no baixo, Guilherme Almeida nos teclados e assumiu a percussão junto de Igor Caracas. A La Cumbia Negra lançou um único disco, homônimo, mas suficiente para dar o seu recado ao estilo Miranda: era cumbia, mas também rock, psicodelia, distorções… e muita diversão. O disco soa exatamente como a banda é, uma junção de amigos tirando um som sem se preocupar com certo ou errado. Apenas deixando rolar e acreditando que aquela música é o certo a ser feito naquele momento como um testamento para um futuro possível. Não tem como ser mais Miranda do que isso.  

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 88 da revista NOIZE, lançada com o vinil de Rasgacabeza, da Francisco El Hombre, em 2019.

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