Everyday Robots veio para acabar com qualquer tipo de introdução a Damon Albarn. Ele já não é mais o frontman do Blur, um dos principais nomes do Britpop ou o cérebro por trás do Gorillaz. É Damon Albarn, um dos artistas ingleses mais criativos do século 21.
Com os seus mergulhos pelo rock, pop, hip hop, trip hop, psicodelia inglesa dos anos 1970, música africana e ópera, é impossível não colocá-lo na perspectiva de músicos inventivos como Brian Eno, John Cale, David Byrne e o camaleão David Bowie. Damon Albarn é herdeiro direto de Bowie — o artista inglês mais criativo do século 20.
(Não entro no mérito de quem influenciou mais. Afinal, são outros tempos e o impacto Bowie, um abalo sísmico em todos os campos da cultura, dificilmente será igualado.)
A herança se dá não tanto pelo estilo, mas por uma capacidade de reinvenção constante, fruto do talento para combinar elementos aparentemente aleatórios de forma coesa para conceber uma obra autêntica (também conhecido como “criatividade”) e de uma bússola de referências que aponta para todos os lados (também conhecido como “curiosidade”).
‘Fashion’, de Bowie, com participação de Damon Albarn
Aos 46 anos, Damon lançou ou participou ativamente de pelo menos 19 álbuns: sete com o Blur, quatro com o Gorillaz, The Good, The Bad & The Queen, Rocket Juice & The Moon, o “sketchbook sonoro” Democrazy, Mali Music, Kinshasa One Two, Maison des Jeunes (com Africa Express), Dr. Dee e Journey to the West (trilha da ópera Monkey: A Journey to the West). Entre outras coisas, também tocou teclado no Elastica e produzir o disco de Bobby Womack The Bravest Man in the Universe.
‘Democrazy’, sons que Damon Albarn fez em quartos de hotel com seu iPad
De uma forma ou outra, toda essa trajetória está presente em Everyday Robots. Apesar de pouca gente comentar isso, quem é fã de Blur deve ter encontrado eco nos discos mais abertos musicalmente da banda, 13 e Think Tank, no álbum solo de Damon.
‘Out of Time’, do Think Tank, é uma peça do Blur que faz parte da colcha de retalhos do ‘Everyday Robots’
Impossível não encontrar também resquícios da pesquisa musical que Damon faz sobre a música africana, em trabalhos como Mali Music e Africa Express, em Everyday Robots.
‘Sunset Coming On’, do Mali Music
O tema da melancolia, tão caro a Damon Albarn, foi o coração do Plastic Beach do Gorillaz e é também o de Everyday Robots. Mas no disco solo a melancolia corrói e lapida canções como Hollow Ponds, enquanto no Gorillaz ela é exorcizada com mais barulho — de primeira qualidade, é claro.
‘On Melancholy Hill’, do Gorillaz: submarino mergulhado num oceano de melancolia de água cristalina
Melancolia é o estado de espírito de Everyday Robots. E, para compreendê-lo por inteiro, é preciso dar uma volta pela infância de Damon Albarn em Leytonstone, na periferia leste de Londres, e na bucólica Colchester, em Essex. Lá estão enterradas as ferramentas que o artista usou para esculpir sua obra solo.
Damon Albarn nasceu em 23 de março do icônico ano de 1968, em Londres. Na sua casa, circulava boa parte da contracultura inglesa da época. Sua mãe, Hazel, era cenógrafa do Theatre Royal Stratford East. Influenciado por ela, Damon devorou Brecht e descobriu Antonin Artaud, cujo Teatro da Crueldade influenciaria as performances do Blur anos mais tarde. Seu pai, Keith Albarn, é um artista especializado em patterns na ativa até hoje (vale a pena dar uma olhada em Pattern and Belief). Ele foi professor de arte e escreveu o livro The Language of Pattern sobre padrões na arte islâmica. Além disso, ajudou a patrocinar a primeira exposição de Yoko Ono em Londres, em 1966. E foi, durante um breve período, empresário da banda inglesa de jazz fusion e rock psicodélico Soft Machine.
Com nome inspirado no livro de William Burroughs, a Soft Machine teve como empresário Keith Albarn, pai de Damon
Keith Albarn também era próximo das bandas inglesas de rock progressivo e psicodélico dos anos 1970 Caravan e Camel, integrantes de uma cena que inspirou Damon Albarn a criar a sonoridade do Blur algum tempo depois.
‘Caramel’, faixa experimental do disco ‘13’ do Blur que homenageia as bandas Caravan e Camel
Além do rock e do blues, ouvia-se muita música africana e indiana na casa dos Albarns. E essa imagem do passado — o pequeno Damon presenciando encontros hippies regados a música africana na sala de casa — ressoa com muita coerência nos projetos atuais do artista ligados a músicos africanos e na forma como Everyday Robots bebe do passado para projetar o futuro.
É da rua onde Damon cresceu em Leytonstone que vem o coro de Mr. Tembo. Quando era pequeno, ele costumava se sentar próximo aos degraus da igreja pentecostal para ouvir o coral de domingo.
Quando tinha 10 anos, Damon se mudou com a família para uma casa de campo em Colchester. Foi a época em que ele mais se sentiu um outsider, tendo que enfrentar diariamente o conservadorismo e a solidão. A veia da contracultura herdada dos pais começou a pulsar mais forte. Nascia o artista marginal.
Quando entrou pra Stanway School, em Colchester, Damon contava com poucos amigos: sua irmã mais nova, Jessica Albarn (que mais tarde se tornaria artista plástica e escreveria o livro infantil The Boy in the Oak, que inspiraria um curta com a trilha sonora composta por Damon), um professor de música e um garoto tímido, de óculos, que na chamada atendia pelo nome de Graham Coxon. Com ele, descobriu The Jam, The Who, The Smiths e por aí vai. Mais tarde, começariam a tocar juntos e formariam uma que outra banda — entre elas, o Blur.
Hollow Ponds é uma área de Colchester que faz parte da Epping Forest, floresta do sudeste da Inglaterra onde Damon Albarn literalmente enterrou objetos da sua infância. É o centro psicogeográfico do disco, por onde ele andou desenterrando memórias, gravando ruídos para construir texturas sonoras e se nutrindo de inspiração e energia para compor Everyday Robots.
Everyday Robots é escrito em primeira pessoa. É um processo de arqueologia da alma em praça pública. É a obra de um artista que rasga o peito e, sem desviar os olhos, mostra suas vísceras feitas no tecido da dor de mundo característica dos grandes poetas. É Damon Albarn sem personagens, máscaras ou heterônimos.
As músicas são costuradas na linha delicada da contemplação, tecendo comentários sobre a tecnologia e a condição humana no século 21. Mas não se trata simplesmente de uma crítica social. Damon Albarn se inclui no mar de robôs do cotidiano e olha para dentro para entender o que se passa lá fora.
Richard Russel, dono do selo XL Recordings, é bastante responsável pela atmosfera do disco. A ideia de produzir um álbum solo de Damon Albarn surgiu nas sessões de gravação de The Bravest Man in the Universe, disco de Bobby Womack lançado em 2012 que os dois produziram.
O disco começa com três meditações profundas que dão o tom da obra toda.
O sample que abre Everyday Robots, piada recortada de um disco do comediante Richard Buckley, descontextualizada do discurso original, é um convite ao mergulho no inconsciente: “They didn’t know where they was going, but they knew where they was, wasn’t it”. A música fala sobre o dia a dia solitário e ao mesmo hiperconectado vivido em planetas particulares orbitados por iPhones e outros fones.
Hostiles é a minha preferida do disco. Uma poesia do cotidiano melancólica demais, como assistir tevê no domingo de manhã enquanto se deixa os sonhos de sábado à noite irem embora.
Em Lonely Press Play, Damon Albarn fala sobre sua própria relação com seu iPad, aparelho pelo qual revelou ter se apaixonado assim que comprou. E que foi o suficiente para o músico criar o disco The Fall do Gorillaz, em 2011.
O clipe de Lonely Press Play é composto por gravações que Damon faz quando está na estrada. Ele costuma colocar o iPad na janela para olhar a vista junto com ele, filmando toda a viagem. O gesto traduz bem a contemplação que o disco carrega.
Lonely Press Play, clipe feito com imagens que Damon Albarn grava com seu iPad na estrada
Mr. Tembo é uma música escrita para um elefante que ele conheceu na Tanzânia. É a mais solar, festiva, do disco. Bebe diretamente da música africana que Damon Albarn se aproximou nos últimos anos. E tem esse coro maravilhoso.
Hollow Ponds é como um álbum de fotos antigas que Damon Albarn abre pro público. Ali estão todos os cenários por onde passa Everyday Robots. São imagens construídas com sentimentos, numa perspectiva que alcança momentos semelhantes e identifica sensações parecidas na vida de quem escuta.
O disco conta com a voz de Natasha Khan (Bat for Lashes) em The Selfish Giant e fecha com Brian Eno cantando epicamente Heavy Seas of Love.
O conceito de Everyday Robots é tão forte que Damon Albarn convidou Brian Eno, seu colega de academia em Londres, para cantar, e não para tocar ou produzir. Talvez seja o próprio Damon Albarn querendo deixar claro que, nesse disco, o principal instrumento é a voz, veículo para seus versos precisos e delicados.