Em quase 60 anos de carreira e mais de 30 álbuns de estúdio, Gal Costa viu e viveu as principais transformações estéticas da música popular brasileira contemporânea. Com a força de sua voz, a baiana protagonizou momentos decisivos da cultura nacional, indo da psicodelia ao frevo pop e ao samba-reggae sem perder a graça que traz no nome.
As dezenas de discos de Maria da Graça Costa Penna Burgos são como fotografias que documentam a história da nossa música. Considerando que todos os álbuns dela, sem exceção, merecem ser conhecidos e apreciados, a intenção aqui foi pinçar as obras decisivas, aquelas que conseguem resumir as diferentes fases da artista. Pra não perder o foco, ficaram de fora os álbuns ao vivo (apesar de que tenha doído não incluir aqui o Fa-tal – Gal a Todo Vapor ou o Doces Bárbaros).
Domingo (1967)
É bonito que, além de ser o primeiro disco de Gal, esse seja também o primeiro álbum de Caetano, um dos maiores parceiros dela pra sempre. Produzido por Dori Caymmi, Domingo traz uma sonoridade pré-tropicalista, sem guitarras distorcidas ou grandes experimentos sonoros, mas que revigora de forma impressionante a cartilha da bossa e soa incrivelmente atual.
Ouça: “Coração Vagabundo”, “Maria Joana”
Legal (1970)
Os dois discos homônimos de 1969, assim como o álbum Tropicália ou Panis et Circencis (1968) são inacreditáveis. Mesmo que o tropicalismo tenha sofrido um baque com a prisão e o exílio forçado de Caetano e Gil em 1969, Gal segurou a barra por aqui. Arranjado por Jards Macalé, Lanny Gordin e Chiquinho de Moraes, Legal deriva da Tropicália, mas traz uma atmosfera elétrica única. Vale notar que esse disco lança “Deixa Sangrar”, a primeira das muitas músicas inspiradas no frevo que Gal gravaria em sua vida.
Ouça: “Língua do P”, “Mini Mistério”
Índia (1973)
Após uma sequência de discos com forte ênfase roqueira, Índia apresenta um novo som pra Gal ao mesmo tempo que ajuda a construir a MPB como a conhecemos hoje. Com a direção de Gilberto Gil (recém de volta do exílio) e participações de Dominguinhos, Rogério Duprat, Roberto Menescal e Arthur Verocai, é um álbum de ruptura. Aqui, já ouve-se faixas como “Volta”, que traz apenas o órgão de Tenório Jr. acompanhando a voz sublime de Gal, formato que se repetiria em muitos discos seguintes. A partir daqui, a menina tropicalista abre passagem para o nascimento da diva.
Ouça: “Passarinho”, “Presente Cotidiano”
Caras e Bocas (1977)
Nos também incríveis Cantar (1974), Gal Canta Caymmi (1976) e Água Viva (1978), há uma união deliciosa de baião, bossa modernizada, funk rock, bolero, samba-jazz. Olhando suas fichas técnicas, vemos que nomes recorrentes como João Donato, Perinho, Moacir Albuquerque e Rubão Sabino ajudam a entender essa fase belíssima de Gal. O soul e a disco music chegam com força em Caras e Bocas, mas nunca como uma fórmula rígida, sempre como inspirações cruzadas à brasilidade.
Ouça: “Me Recuso”, “Minha Estrela é do Oriente (Tindoró Dindinha)”
Gal Tropical (1979)
Assim como o seguinte Aquarela do Brasil (1980), é um disco de transição em direção à Gal que tomaria conta da década seguinte. Aqui, seguem em destaque os grandes arranjos dos naipes de metal e a cozinha instrumental de groove, funk, rock, bolero. Porém, o som muda completamente. O samba chega rasgando, Robertinho do Recife traz sua assinatura sonora para as guitarras do disco e, ouvindo o disco, não é difícil entender por que a faixa “Balancê” foi a mais tocada nas rádios brasileiras da época. É muito boa.
Ouça: “Juventude Transviada”, “O Bater do Tambor”
Fantasia (1981)
Aqui, começa uma nova etapa, quando Gal passa a brincar bastante com os sons sintéticos que virariam a marca registrada dos anos 1980. É também o primeiro dos vários discos dela que trazem participação de Lincoln Olivetti e Robson Jorge. Além disso, é quando Gal começa a gravar músicas do Djavan e estreia sua parceria de anos com a banda Roupa Nova, que se repete em Minha Voz (1982), Baby Gal (1983) e Profana (1984).
Ouça: “Festa do Interior”, “Meu Bem Meu Mal”
Bem Bom (1985)
Nesse período todo, Gal continuou acumulando sucessos nas rádios e TVs, tanto por músicas de apelo carnavalesco que gravou, e que flertavam muito com o frevo, quanto por baladas oitentistas com andamento mais lento. Até o último disco dos anos 1980, Lua de Mel como o Diabo Gosta (1987), Gal segue muito em alta. Entendendo as mudanças do cenário da época, ela inclui no seu repertório composições de vários novos artistas, como Cazuza, Frejat e Lulu Santos. Com direção de Waly Salomão, Bem Bom se destaca por trazer a presença de Arrigo Barnabé e a participação mais do que especial de Tim Maia, no dueto lendário “Um Dia de Domingo”.
Ouça: “Sorte”, “Todo Amor que Houver Nessa Vida”
Aquele Frevo Axé (1998)
Lançado no ano em que Tim Maia morreu, esse disco conta com versões de dois clássicos dele, “Imunização Racional” e “Você”, em timbragem clubber sem ser cafona. Com a participação de Milton Nascimento, Ron Carter e Pedro Aznar, Aquele Frevo Axé mostra Gal Costa em movimento, empurrando para frente os limites de sua música. Com a produção de Celso Fonseca, ela reinventa novamente o seu som, dessa vez com novos beats e um olhar conectado à estética das pistas de dança da época.
Ouça: “Habib”, “Quase Um Segundo”
Recanto (2011)
Produzido por Caetano e Moreno Veloso, é um dos discos mais importantes de Gal. Aqui, ela canta apenas músicas inéditas do Caetano acompanhada de uma geração bem mais nova de músicos, incluindo Kassin, Bruno Di Lullo e Rafael Rocha (da banda Tono), Donatinho, Pedro Sá e Zeca Veloso. O resultado é um álbum que soa bastante ousado até hoje. Com arranjos absolutamente inovadores, é a primeira vez que ouvimos Gal passear por um universo tão moderno, em timbres que unem indie rock, trip hop, noise e miami bass.
Ouça: “Neguinho”, “Madre Deus”
Estratosférica (2016)
Após cinco anos sem um disco de inéditas, este álbum mostra que Gal ainda tem muito a cantar. Produzido por Kassin e Moreno Veloso, traz composições de artistas jovens, como Malu Magalhães, Céu e Criolo, mas também de velhos amigos de Gal, como Tom Zé e João Donato. Com uma pitada mais pop do que o disco anterior, Estratosférica traz a direção de Marcus Preto, com quem Gal trabalharia ainda nos álbuns seguintes de estúdio: A Pele do Futuro (2018) e Nenhuma Dor (2021).
Ouça: “Casca”, “Dez Anjos”
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