No cinquentenário de seu falecimento, Lupicínio Rodrigues, um dos mais importantes compositores da história da música brasileira, ganhou um documentário sobre sua vida e obra. Lupicínio Rodrigues – confissões de um sofredor, dirigido por Alfredo Manevy, chegou aos cinemas no último dia 14/3, trazendo depoimentos inéditos e uma série de registros históricos sobre o “rei da dor-de-cotovelo”.
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O filme chega na sequência do livro Lupicínio: uma biografia musical, escrito por Arthur de Faria e lançado pela Editora Arquipélago, no ano passado. Os projetos celebram a vida de Lupi, que estaria completando 110 anos em 2024, e é autor de clássicos como “Se Acaso Você Chegasse”, que lançou a carreira de Elza Soares, “Nervos de Aço”, gravada por Paulinho da Viola, e “Felicidade”, popularizada na voz de Caetano Veloso.
Estivemos na estreia do documentário, na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, onde conversamos com Alfredo e Arthur, que trabalharam em colaboração, sobre a obra de Lupicínio, os arquivos do artista e os desafios na realização de seus projetos. Confira abaixo.
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Alfredo, queria saber o que te leva a fazer um filme sobre a obra e a vida do Lupi? Já estendo essa pergunta pra você, Arthur, em relação ao livro.
Alfredo: Olha, eu acho que o Lupicínio é um dos personagens mais estimulantes e enigmáticos da cultura brasileira. Estimulante, porque a música atravessa gerações, sempre com uma potência emotiva. Permanece, é independente de épocas. Enigmático, porque como é que um compositor, naquele tempo, em Porto Alegre, consegue interferir na indústria cultural, mesmo continuando morando por aqui. As imagens do Lupi, um sambista, com aquelas casacas sobretudo, típicas do inverno do Rio Grandense. Parece meio filme noir, né? Aqueles policiais dos anos 1940, com aquelas roupas. Eu falei: “Gente, como assim?”. E a oportunidade de fazer o filme foi a partir da turnê em que a Gal cantou Lupicínio. O produtor dela me conhecia e me provocou: “O que você acha de fazer um filme sobre o Lupicínio? Eu pensei que já havia sido feito, mas pesquisei e não tinha nenhum longa, apenas bons curtas. Então eu falei: “Bom, me ofereço pra mergulhar no universo do Lupi e dar uma contribuição”. E aí passo a palavra para o Arthur, porque a gente teve o privilégio de contar com a pesquisa, o conhecimento e a trajetória do Arthur, do Marcelo Campos, da Márcia Ramos. São pesquisadores, pessoas do mundo da música, que já vinham investigando muito a trajetória, muita coisa já tinha sido revelada. O que a gente precisava fazer era construir uma linguagem de cinema, narrativa, emotiva, afetiva, a partir de um trabalho maravilhoso que já tinha sido feito coletivamente.
Arthur: Para mim, chegar aqui no filme foi completamente aleatório, porque um dia o Marcelo disse, “ah, estão fazendo um filme sobre o Lupi, vão entrevistar uma pessoa na pré-produção ali no Museu de Porto Alegre, vai lá”. Eu fui, aí conheci o Alfredo e quando vi o que eles estavam fazendo (eu tava bem começando a transformar o que eu tinha escrito sobre o Lupicínio, tinha umas cem páginas, no que veio a ser a minha tese de doutorado e a biografia). Falei com eles: “Cara, eu também tô no começo no processo, vamos fazer esse esquema de dividir o conhecimento”. E foi muito bom. Eles acabaram vindo filmar aqui de novo, eu acabei dando entrevista, mas todo o material que eu ia escrevendo, mandava para eles. E eles me enviavam entrevistas, por exemplo. Muitas entrevistas do livro eu não precisei fazer, porque eles fizeram. O filho do Lupicínio, o filho da Iná, eles já tinham várias entrevistas que eu teria que fazer. E aí fomos fuçando, tentando encontrar juntos as coisas. Um trabalho coletivo. Claro que no filme tem a coisa da direção mesmo, na visão, na narrativa. E o livro tem conta um contexto mais da cidade, porque é da série dos meus livros sobre a história musical de Porto Alegre. Mas o Lupicínio é um dos únicos que vai ter um livro só pra ele. Fora ele, só Elis Regina e Radamés Gnattali, o resto é em um volume coletivo.
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Lupicínio vivia em Porto Alegre, mas ao mesmo tempo, fez com que sua obra se difundisse no resto do país. Ele foi regravado por várias gerações de artistas, mas também ficou um pouco escanteado, tanto em vida, quanto em relação à memória. Não tinha um longa sobre o Lupi, não tinha uma biografia extensa. Por que vocês acham que isso aconteceu?
Alfredo: Acho que o Brasil tem um problema com a sua memória. Nós temos um problema com os acervos, com a nossa história. Há poucos anos atrás estávamos defendendo a necessidade de ter uma Cinemateca Brasileira, algo que não deveria nem estar mais em debate. A sociedade precisa sempre se organizar para defender a sua memória e para construir o direito de ter um passado. O acesso ao passado é fundamental para ter futuro. Então, eu acho que a questão do Lupi é parte de um contexto geral, onde a gente está permanentemente tendo que lutar contra o esquecimento, lutar pelas instituições de preservação de memória, valorizar os acervos, o trabalho dos pesquisadores que permitiram a gente fazer esse filme. A gente se debruçou sobre materiais que foram preservados por décadas. É muito mais difícil fazer um livro, um filme, sobre alguém dos anos, 1920, 1930 e 1940, no qual se tem muito menos materiais audiovisuais. Se fosse um intérprete ou cantor dos anos 1980 a gente teria uma abundância de materiais. Tivemos que lidar com a escassez num certo sentido comparativo, mas a gente contou, por exemplo, com materiais valiosíssimos como uma entrevista dos anos 1970 do Museu da Imagem e Som, que, mesmo com ruídos e sujeiras, se preservou no tempo. Então, acho que é uma questão Brasileira, uma questão talvez latino-americana, embora a Argentina tenha um cuidado maior com a sua memória. Acho que o Lupicínio é um personagem que tá testando sempre a nossa capacidade de preservar e de contar essa história.
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Arthur: É, porque se pensar, por exemplo, no Ary Barroso, não tem um grande documentário sobre ele, nenhum filme de ficção. O Noel [Rosa] tem um filme de ficção, o Pixinguinha tem um filme de ficção, mas nenhum dos dois têm um grande documentário. Agora, para mim, quando eu me dei conta que não tinha uma grande biografia sobre o Lupicínio… Tínhamos livros pequeninhos (em número de páginas mesmo) e tinha o almanaque do Marcelo [Campos]. Tem também um capítulo longo no livro do Zuza [Homem de Mello] – o “Copacabana”, que eu acho a obra prima dele – um capítulo de cinquenta páginas, que é espetacular. Quase desisti quando ele lançou, liguei pra ele e disse: “Porra, Zuza, como vou escrever meu livro agora?”.
Alfredo: É, se a gente pega o texto do Zuza, ou o do Augusto de Campos [“Lupicínio Esquecido?” foi um artigo de jornal publicado na década de 1960 que posteriormente integrou o livro “Balanço da Bossa e Outras Bossas”], são textos que tem uma uma grandeza, uma generosidade, mas são ensaios muito curtos. Não tem o formato biográfico que o Arthur propõe. E acho que está cumprida essa missão de dar ao Brasil uma biografia clássica, no sentido de contar essa história do começo ao fim. O Augusto e o Zuza fazem ensaios que são aproximativos, são sínteses mais conceituais do legado do Lupi. E o texto do Augusto é impressionante, cutuca coisas assim da universalidade dessa obra, colocando a dor-de-cotovelo ao lado de arquétipos shakespearianos.
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O Lupi é um dos maiores compositores do samba-canção, formulando essa dor-de-cotovelo e esse sentimento de “cornitude”, ajudando mesmo a formular o gênero. Ao longo das décadas, desde os anos 1930, tem artistas regravando ele. Alguns dos maiores da nossa música, Caetano, Gil, Paulinho da Viola, Gal. E ao mesmo tempo, o Lupi fica um pouco esquecido em comparação a Noel Rosa, por exemplo. Por que isso acontece?
Arthur: O Cazuza também era um cara que referenciava muito ele. E em 2015, Elza Soares, Gal Costa e Adriana Calcanhotto fizeram shows que viraram disco só cantando Lupicínio. Curiosamente, durante muito tempo se falava sempre nas letras dele, mas ele tem uma força musical muito grande. Tanto que, falando, por exemplo, muito pouca gente grava o Noel, ou mesmo o Ary, que era um cara muito sofisticado, em versão instrumental. E muita gente já gravou músicas do Lupicínio instrumental, sem letra, justamente porque elas funcionam muito bem. Tem inclusive vários artistas que gravaram discos só de Lupi instrumental. Então, tem esse lado que é mais ou menos menosprezado dele, assim como as pessoas menosprezam o lado musical do Chico [Buarque] porque a parte da letra, do texto, é tão brilhante, ou menosprezam o Tom [Jobim] como letrista, porque a parte musical é brilhante. Mas são são caras completos em ambas as coisas. E no caso do Lupicínio, eu tenho lido muitas coisas sobre os anos 1950. E aí eu vejo como foi difícil naquele momento depois, nos anos 1960, separar o joio do trigo. Porque os anos 50 foram infestados de bolero, de música de corno, de música de sofrimento. Foi um momento em que muita gente achava, como tantas outras vezes, que a música brasileira ia acabar. Porque houve uma invasão no pós-guerra de música mexicana, cubana e a indústria daqui se adaptou muito a isso. E aí aquela geração pré bossa nova ficou esquecida mesmo. Só sobrou o Caymmi e o Ary.
Então, era natural isso, quando entre 1958 e 1968 vem a bossa nova, chega o rock no Brasil, a Jovem Guarda, O Fino da Bossa, os festivais, a Tropicália. Foram 10 anos em que mudou tudo e todo mundo ficou muito esquecido da geração anterior. E aí, quando começou a ter essa volta, quando começarem a recuperar essas pessoas, a partir do Rio de Janeiro, da Nara Leão, trazendo os sambistas do morro para gravar eles, já pela metade dos anos 1970, o Lupi não chegou a ver isso. O Cartola grava o primeiro disco já na década de 1970, o Nelson Cavaquinho, a Clementina de Jesus, o Adoniran Barbosa, o Túlio Piva. O Lupicínio morreu antes. E tem muita gente que ficou esquecida, tudo misturado. Uma massaroca, assim como hoje. Tem as pessoas mais talentosas em qualquer gênero, mas no calor da hora isso se perde e foi muito que aconteceu com ele, que foi enterrado junto com todo mundo. Mas a força da originalidade da letra dele, do formato quase sem estrofes, muitas vezes sem refrão, com melodias que não se repetem. Elas vão indo, vão contando uma história, com uma dicção sempre absurdamente coloquial. Isso é tudo coisa que ele fez sem pensar em ser moderno, mas era assim que ele fazia.
Só para fechar, queria saber sobre esse lance de arquivo que você falou no início, Alfredo, principalmente a parte de iconografia para construir o filme. Como foi conseguir isso?
A gente teve três frentes de pesquisa: uma frente de fotografias e áudios, com o Lucas Nobile, jornalista musical muito bacana, que fez um trabalho esplendoroso de buscar arquivos. Também teve a Cris Lopes, lá no Rio, que fez o trabalho de pesquisa audiovisual, que é uma outra frente, envolvendo a Cinemateca, a TV Cultura. E aí acho que é uma cena importante do filme, porque é o momento que chega a televisão e ali tem essa mudança que o Arthur citou. Você já tem um outro jogo sendo jogado na música brasileira e ele é um cara da rádio, que tá ali tentando aparecer na TV, com aquela voz baixa, contida. Tem também o material valioso da TV Record, que tem todo o material dos anos 60. Depois, nos anos 70, é Band e Globo. E teve também a terceira frente, que foi o Grupo de Estudos do Pós Abolição lá da Universidade de Santa Maria, que cavou muito a questão da memória familiar do Lupi, da arqueologia familiar e da história dele com os clubes familiares, com um sociativismo negro muito forte. E, como já citei, o próprio Arthur, o Marcelo e todo mundo que vem estudando o Lupicínio. A gente aproveitou muito desse acúmulo e escolhemos algumas áreas para tentar cavar mais coisas e trazer algumas novidades, com novos documentos. Porque a gente tem duas plateias: a que não conhece nada de Lupicínio e a que conhece bastante. É raro você ter esse meio termo. E pra quem conhece, tinha que ter alguma coisa nova também. Então, a gente tentou achar essas coisas pra tornar o filme interessante.
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