Fotos: Paulo Capiotti
Em um mundo em que a maioria absoluta das canções consumidas sai do mesmo ponto do mapa, o esforço em valorizar a produção musical local é quase um ato transgressor. O El Mapa de Todos, além de ser um raro espaço de exibição e divulgação de trabalhos autorais, é um festival que desde 2011 prega a solidariedade iberoamericana, os encontros entre as produções independentes gaúcha, brasileira e dos vizinhos hermanos. Para quem vive descobrindo música na internet, uma experiência dessas nos lembra de que a performance ao vivo é insubstituível: nada tira melhor a temperatura das bandas, iniciantes ou veteranas, do que vê-las no palco. Nesse clima de descoberta, a tarde/noite de encerramento do quarto ano de festival no último sábado (15), no Teatro Bruno Kiefer, da Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre, teve entrada-franca e lotação completa.
O evento começou às 16h de uma tarde quente e ninguém pareceu se incomodar com ar-condicionado estragado, começando pelos meninos do Jéf – que, na verdade, trata-se do projeto-solo do vocalista. De terninhos, os guris tão jovens quanto carismáticos cativaram com seus rockzinhos românticos e bem-comportados. Destaque para “Tão pra lá” e para o público que veio de Três Coroas para timidamente cantar junto na plateia.
Bob Shut foi a primeira das promissoras bandas caxienses (onde uma bela cena começa, descubro, atrasada, na plateia) a subir ao palco. O power-trio de veteranos tem momentos very 80’s e momentos mais country, de rock tradicional. No encerramento, a participação de Roberto Scopel no trompete quase dá o tom da apresentação seguinte, não fosse tão surpreendente aos desavisados à proposta do Projeto CCOMA.
Formado por Roberto e pelo produtor e percussionista Swami Sagara, o duo de Caxias do Sul foi apresentado por Fernando Rosa (o Senhor F, curador do El Mapa) como um grupo com “um posicionamento frente a determinados tipos de comportamento”. Com um jazz futurista, a proposta experimental e eletrônica cheia de sobreposições (e com bastante espaço para o acaso do improviso) surpreende. A segunda canção, “Milonga de Los Perros”, é apresentada pela dupla como aquela que os colocou no mapa e atraiu tantos convites para tocarem por aí afora. É possível entender o comentário de Fernando quando rola uma menção aos recentes preconceitos com o povo do nordeste brasileiro, introdutórios a um tributo a Luiz Gonzaga. Mas o grande momento do show, e possivelmente da tarde, foi a participação dos africanos da Tam Tam África, guris que fazem parte do grupo de imigrantes senegaleses que desembarcou este ano em Caxias do Sul.
A contribuição, tão rica, poderosa, cadenciada e cheia de suingue, amplifica o sentido daquilo que falamos lá no início: ouvir a música que não chega ao rádio ou as emissoras, a cultura marginal dos países que foram empobrecidos enquanto os do hemisfério-norte enriqueciam, é dessas delícias que enchem a alma. E não pelo sentido político da coisa, mas porque o som é bom mesmo.
Fôlego recuperado, foi a hora de descer e beber uma aguinha enquanto Beto Só & Banda davam início a um show-tributo que contaria com a participação de Frank Jorge. Ao invés de mostrar sua obra, a escolha do músico brasiliense foi celebrar algumas de suas bandas favoritas dos anos 2000 – todas independentes. “O Banana”, dos Superguidis, estava no repertório.
Com um show acelerado, desses que o joelho desce e sobe no assento da cadeira, os argentinos da Bestia Bebé foram uma das gratas surpresas da noite. Guris de bermuda com um vocal adolescente e uma agilidade deliciosa nos instrumentos, exibiam uma sintonia tão bem ensaiada que dava dó de piscar pra não perder aquelas paradinhas e trocas de acorde mais inesperadas. Oscilaram entre momentos mais puramente punks, outros mais românticos (destaque para “Lo quiero mucho a este muchacho” e “La Mentira del Verano”) e outros indie rock em sintonia com aquelas bandas mais queridas dos anos 2000, como em “El Uruguayo”.
E a banda mais esperada do dia, aquela que foi lançada por selo gringo, que ganhou em setembro as baquetas virtuosas de Ynaiã Benthroldo (ex-Macaco Bong), que é goiana e psicodélica e tem letras, comportamentos e instrumentais docemente lisérgicos fez um show que não preencheu apenas todos os espaços do teatro, mas todos os espaços dentro desta que vos escreve. Os moços do Boogarins cativaram porque fizeram um show de iniciantes tão bons músicos quanto imunes ao veneno do hype: depois de passearem por Estados Unidos e Europa e tocarem em gigs do naipe do Primavera Sound, estavam em sintonia com o público, com a vibe do festival, entre si, transmitindo aquela felicidade toda de quem se diverte quando toca, desfrutando da intimidade de um teatro pequeno. Em tempo: há tempos não via um vocalista com malemolência, sensualidade e flerte com o feminino tão dignos de Ney Matogrosso. Guardem bem o nome de Fernando Almeida, o Dinho. Como não poderia deixar de ser, o El Mapa terminou com todos, ou ao menos quase todos, de pé.
Sem muito drama, porque despedidas são péssimas: esperamos que tenha mais El Mapa no ano que vem. Saiba como foi a noite de festival na quinta e na sexta-feira.