O pontapé do disco “Más Línguas”, quinto disco do Holger lançado pela Balaclava Records, aconteceu no início de 2020. Após uma imersão em Ilhabela, algumas músicas foram retrabalhadas e outras surgiram no meio do caminho. A produção das 10 faixas é de Gabriel Guerra e Charles Tixier, e a mixagem foi feita por Diogo Strausz. Além deles, há colaborações de Jojo, Gab Ferreira e Lucas Gonçalves (Maglore).
No faixa a faixa a seguir, Marcelo Altenfelder, o Pata, comenta a criação de cada uma das músicas.
“Escada”: Uma música sobre os desencontros da vida. A tendência a desresponsabilizar, a não se enxergar no espelho. Ela fala sobre um outro, mas este pode ser espelho de si mesmo. A escada nunca deixa de ser a vida. O nosso querido Tché escreveu essa música – e sempre chamou a atenção do resto da banda. Quando Charles colocou os dedos foi possível enxergá-la. No final, é possível ouvir o vocal da Gab Ferreira
“Remota”: Há um livro de psiquiatria na minha estante, cujo subtítulo era “medos, dúvidas e manias”. Sempre que componho, o ambiente ao meu redor me ajuda a construir as letras, harmonias e melodias. Quando eu a compus, não tinha entendido ao certo do que ela falava. Cada vez mais, entendo hoje: o eterno ciclo de desejo e a dificuldade de freá-lo; a velha necessidade (que já cantamos em outras músicas) de abraçar o mundo. É possível não querer mais? É possível não querer tudo? Quais são as consequências disso? A música passou por uma grande transformação nas mãos do Guerrinha, que acrescentou samples à la Big Freedia, a deixando ainda mais estranha. Ela caminha lenta e tensa, bizarra e doce. Muito da doçura dela vem dos dedos do nosso amigo Jojo. Quando em estúdio, chamamos a Gab para também acrescentar vocais que deram uma cara a mais para a música.
“Más Línguas”: Essa estava na primeira leva das composições. Em janeiro de 2019, eu e Tché fomos para Ilhabela ficar uma semana internados em um quarto fazendo músicas. Acho que se dormimos oito horas em sete dias foi muito. Naquela temporada, fizemos pelo menos 15 músicas, sendo que umas quatro sobreviveram no disco. A música começa com barulhos místicos (pelo menos eu os vejo dessa forma), era o barulho do amanhecer, grilos, loucuras, pupilas midriáticas e magia. A música em si saiu como uma tosse. Eu e Tché variando vocais, jogando frases.
A música fala de si mesmo ou do outro? Até hoje não sei. Mas ela é triste pra caramba – e grande. Ela é a carta torre do tarô no disco; aquele momento em que as estruturas quebram na vida e se faz necessária a reconstrução em meio ao caos. Musicalmente, ela foi esponjando os talentos de cada um. As baterias dessa música, bem como todas as outras, foram gravadas com três microfones na sala em Ilhabela. Sempre me emociono tocando ou ouvindo. A voz do Rolla entrou como veludo, bem como o violão dele. Essa foi a música mais Flaming Lip” que já conseguimos colocar no mundo. Tenho o maior amor à ela e à mensagem dela. Não adianta se justificar quando a torre quebra.
“Domingo de Sol”: Ela é tão romântica que ficamos em dúvida. Tché compôs originalmente para sua amada esposa, Amanda. A letra era toda sobre o lindo e inspirador amor deles. Acabamos temperando a música trazendo um pouco mais de dor, mudamos alguns tempos verbais para que ela fosse também sobre um amor perdido. Ela é toda doce, mesmo falando sobre a dor de perder alguém amado. Toda a melodia e o instrumental foi composto pelo Tché, e nós fomos acrescentando camadas, em especial Charles e Guerrinha. Hoje em dia, passou o lance de ser algo mais romântico, até porque somos isso mesmo.
“Inverno”: Somos o que somos; você sabe bem. Uma carta para si mesmo, aquele momento em que caímos na real sobre nossa existência. Foi o nosso primeiro reggae. Cheia de emoção e toda confessional. Tché fez ela em casa depois de uma longa session. Charles construiu todo o ambiente, primeiro com a mpc, depois com a bateria. Sou apaixonado por essa.
“Vida orgânica”: A existência é insignificante. O ponto todo é esse, especialmente em um lugar de privilégios. Pelo menos foi o que entendi lendo Bauman. Nos cercamos de esmolas para fingir que o tédio da vida tem algum valor. Será que muda algo viver assim? Yoga, orgânicos, meditar? Sei lá, grandes merdas. Ela é a irmã contrária da música “Remota”. Se cobrir de pequenas distrações e acreditar em um caminho de paz para a vida – às vezes toda essa autoajuda soa (e talvez seja) ridícula. Fiz essa numa noite qualquer espiando a janela de casa no meio da pandemia. Complementamos com um talk box (tipo o do Peter Frampton). Daí veio Charles trazendo todos os cristais de uma festa de gala com ele. E se não bastasse, pintou Guerrinha com violinos e timbres. Durante o processo de mixagem, fui em uma festa em que o Diogo Strausz estava tocando como DJ – sabia que era aquela sonoridade que queria, que precisávamos para o disco. No dia seguinte estava eu lá atrás dele para ele mixar o disco. Essa foi a música teste e desde que ouvimos, sabíamos muito bem onde queríamos chegar.
“Olimpo”: Mais uma criada na primeira sessão em Ilhabela. Era janeiro e havia alguns rumores sobre uma certa pandemia que havia começado na China. A letra original falava sobre as notícias de Pequim – até hoje sinto falta dessa versão. Durante o processo de maturação dela chamei o Lucas Gonçalves do Maglore, ou só Luquinhas como sempre chamei ele, para dar um tchan na música, ele nos retornou com vocais, guitarras e uma terceira parte a mais. Gênio. Mais para frente, Guerrinha colocou synths e trouxe dor e mistério para a música. Vale citar também a bateria espacial que Charles fez. A terceira parte do Luquinhas acabou virando esse momento Pet Sounds (1966), que sempre sonhamos em colocar em alguma canção. Queria dar um salve ao Tché pela linda guitarra que ele fez.
“Contramão”: Outra das músicas que o Tché fez. Se não me engano, ele me enviou no meio da pandemia. A música tinha cerca de um minuto e uma roupagem bem simples – acabei pegando para produzir, coloquei um verso e um tantão de elementos a mais. Originalmente a música não tinha baixo, apenas uma guitarra barítono. Na semana em que ficamos isolados no finado Breve durante a pandemia, acrescentamos baixo e definimos o Rolla como a voz da música. De certa maneira, ela é uma irmã mais madura de uma música que lançamos no Ilhabela (2012), “Treta”. A letra também carrega a ideia de “Escada”: nós temos a agência sobre a nossa própria vida, ainda que repleta de incongruências e cagadas do cotidiano.
“Estilo”: Essa também veio da leva de Ilhabela. No início, quando tudo era mato, fizemos uma roupagem que puxava mais para um lado New Order da vida. E estávamos satisfeitos. Era apenas uma música cantando sobre um fim amargurado de uma relação. Que adianta ter estilo? Que adianta o caráter? Quando enviei esta faixa para o Guerrinha, tomei um susto enorme ao recebê-la de volta. Não sobrava muita coisa do instrumental original, mas óbvio que amamos. E foi esta versão a que levamos para o disco. Do original, ficaram as vozes e a guitarra. Sem dúvidas, uma das minhas favoritas. Além disso, contamos mais uma vez com a Gab Ferreira trazendo os seus vocais espaciais.
“Tá pegando fogo”: Considero essa a música a mais “Holger”. Também composta em Ilhabela, ela fala sobre verão e saudosismos. A letra, hoje percebo, fala sobre quem somos como Holger. As nossas tentativas atrapalhadas e sinceras de seguir, de compor, enfim, de existir. Mil elementos e mil mãos entraram nessa. Mas acima de tudo tivemos Guerrinha, que de surpresa criou a história toda da feijoada. Me alegro ao ouvir ela.
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