“Eu sempre adorei geografia”, disse Mariá Portugal ao relembrar seu desempenho escolar, uma vez perguntada sobre sua relação justamente com a área que abarca a geomorfologia, responsável pelo estudo das formas superficiais de relevo. A tal adoração não se transformou em uma atuação profissional nesse campo, mas se traduz a partir da aplicação do conceito de erosão – ação de processos superficiais que remove solo, rochas ou material dissolvido de um local na crosta da Terra e o transporta para outro – enquanto instrumento de composição e produção musical.
No dia 29 de outubro, a baterista, cantora, compositora e produtora brasileira, atualmente baseada em Duisburg, na Alemanha, lançou o primeiro disco solo da carreira: EROSÃO. Dentro e fora do Brasil, ele também circula em fanzine e CD. A versão em vinil é a única que, por enquanto, acontecerá só lá fora. A distribuição é uma parceria entre o selo brasileiro RISCO e o alemão Fun in the Church. A assinatura da produção musical é de Mariá, que também é a compositora de todas as canções – sendo apenas uma delas fruto de parceria, ao lado de Paula Mirhan. As seis faixas presentes no registro foram gravadas de forma acústica por um timaço de musicistas, cantores e produtores ainda em 2019: Tó Brandileone, Maria Beraldo, Joana Queiroz, Chicão da Quartabê, Thiago França, Rui Barossi, André Bordinhon, Filipe Nader, Arthur Decloedt e Paulo Braga. Convidados que evidenciam não só o pertencimento à cena paulistana de música experimental, como também sua conexão profunda com Arrigo Barnabé, Quartabê e Metá Metá.
As gravações, marcadas pela dinâmica da improvisação, formaram o material bruto para que Mariá adicionasse a camada eletrônica, através da edição pelo Pro Tools, etapa que fez em paralelo à sua temporada como a 13ª Improvisadora em Residência do Moers Festival, também na Alemanha, no ano passado. Em 2021, ela se uniu ao grupo de curadores do Soundtrips-NRW, projeto que promove o circuito de improvisação livre da região da Renânia do Norte-Vestfália. A manipulação eletrônica, operada de forma totalmente solo, foi a terceira e última camada do registro, concretizando um dos principais objetivos de Portugal: ter como obra o resultado das interações físicas e químicas entre livre improviso, canção popular e música eletrônica. Uma erosão musical em sua forma e conteúdo.
A finalização nos revela que o processo da artista não é uma linha reta, mas sim um círculo, nos conduzindo novamente às canções que deram o start em toda a jornada de EROSÃO. O tratamento sonoro seguiu como única premissa a relação com o conteúdo lírico. Assim, “Petróleo”, trabalhou com filtragem, “O Grão da Voz“, com micro-samples, “Telepatía“, com sons “não-desejados” da gravação; ao final, as seis canções se conectam a seis diferentes níveis de erosão do material original. Com datas já confirmadas na Europa, Mariá faz do ao vivo uma nova camada de expansão do processo criativo, “‘erodindo’ o material do seu álbum em consertos altamente improvisados com músicos talentosos das cenas experimentais de Colônia, Bremen e Berlim”, conforme release.
Abaixo, você pode conferir a entrevista exclusiva que Mariá Portugal concedeu a Noize, na qual conversamos sobre os métodos, os desejos e os resultados de EROSÃO. Na sequência, dê o play e leia o papo.
Mariá, antes de tudo, quero agradecer você por ter aceitado o convite de conversar com a Noize. Já ouvi EROSÃO muitas vezes e gosto mais a cada escuta. Parabéns por esse trabalho!
Nossa, muito obrigada, Brenda. Primeiro de tudo, super feliz de estar conversando com você e por você ter curtido o disco.
No momento em que conversamos, estamos a exatos dois dias do lançamento oficial do disco. Porém, esse papo vai ser publicado depois que o álbum já tiver saído. Eu adoro um lance cápsula do tempo e, por isso, faço para você uma pergunta-proposta: baseada nos seus sentimentos agora, o que você diria à Mariá que já estará com EROSÃO no mundo?
(Risos) Nossa, que pergunta difícil… eu acho que eu diria: relaxa e goza! (risos) Tipo, agora já foi, não tem mais volta.
(Risos) Muito bom! É um clássico do ditado popular que cabe muito bem, né? Então, durante a pesquisa para essa nossa conversa, eu topei com uma entrevista sua para o jornal O Tempo, de BH, que saiu em 2018. Na época, a matéria deu destaque à seguinte declaração sua: “Um baterista dificilmente está sozinho, faz parte da própria natureza do instrumento, e eu amo criar em grupo, trocar ideias, é algo vital pra mim”. Eu sei que você não está sozinha em EROSÃO, e eu não trago essas aspas aqui por achar que você caiu em contradição, mas enquanto um ponto de partida para perguntar: como que nasceu, então, o impulso de construir e lançar um disco de forma solo, tomando a frente em vários processos que antes eram coletivos?
Essa pergunta é bem interessante… vou tentar sintetizar (risos). Eu acho que o que é muito interessante sobre esse trabalho é que ele é coletivo e também muito solitário; ele tem essas duas camadas. A primeira parte dele são as improvisações que eu fiz no começo de 2019, com os meus colegas, então, foi muito coletivo nesse sentido. Eu sinto muito que cheguei na forma de fazer esse disco – que não é uma forma tão tradicional – e nele próprio muito por conta da minha convivência com os meus colegas, do meu trabalho com a Quartabê, com o Arrigo Barnabé, por ter tocado com o Metá Metá, por ter gravado com o Negro Léo... todas essas pessoas me deram muito combustível pra pensar e bolar esse jeito de fazer disco. Entrar em um estúdio para gravar arranjos já bem delimitados, esse processo de gravação mais tradicional, eu já fiz muito na minha vida. Eu gosto, mas estava com vontade de fazer algo diferente, de colocar a improvisação, que era uma coisa que estava entrando cada vez mais forte na minha vida, no processo. Essa foi uma maneira que eu achei de juntar essas três coisas: o meu trabalho com os meus colegas, em grupo, e a improvisação e a manipulação eletrônica, que eu fiz sozinha. É engraçado, é um disco sozinho, mas também é um disco muito junto, mas não sei, às vezes tem horas que a gente quer fazer coisas a gente mesmo, né? Não dá muito pra explicar, mas é gostoso pensar “Isso aqui eu quero fazer do meu jeito”, sabe? Foi um desafio, uma outra responsabilidade porque você tem que decidir tudo, fazer tudo, e isso é difícil, porque é muito bom compartilhar as decisões, os caminhos, as ideias, além de você precisar também colocar seu tempo de trabalho.
Pareceu necessário, né? Ao atender o seu desejo de misturar essas três vertentes e de trabalhar com a improvisação, você foi percebendo que o resultado falaria muito mais sobre a sua assinatura musical individual do que a de todos que estavam envolvidos.
Sim, eu acho que, no caso de EROSÃO, o processo é contínuo, ainda não terminou, porque os shows ao vivo que eu tô fazendo são também continuações dele. Sempre que eu me perco nesse processo, quando penso “Nossa, o que eu tô fazendo?”, eu sempre volto pras canções, que são o farol do disco. Elas, minhas relações com elas – já que venho as compondo por mais de 15, 10 anos. Além disso, tem a minha relação com a tradição da canção popular brasileira, é da onde eu vim, nasci e cresci, e é um pouco…. o que dá um sentido pra tudo. Na verdade, talvez as perguntas desse disco sejam: como a gente pode fazer canção de uma maneira mais livre? E quando isso deixa de ser canção e vira outra coisa? É um pouco uma brincadeira com isso.
E quando esse conceito ganha o nome de EROSÃO e como isso se relaciona com o seu trabalho? Por assim dizer… por que alguém se propõe a erodir o seu fazer artístico?
É… uau! (risos) Também outra pergunta boa. Essa metáfora da erosão, a partir da geografia, do solo, começou a aparecer desde o começo, quando eu resolvi fazer esse trabalho em camadas. Na verdade, se fosse só em camadas, seria sedimentação e não erosão, se a gente for bem literal na coisa geológica. Mas é uma erosão justamente porque uma camada altera a outra, e processos químicos – que são um pouco irreversíveis – começam a acontecer ali. É como se uma camada estivesse em cima da outra, mas se você tirasse a camada de cima, a debaixo também já teria mudado, e é isso que eu sinto. As canções mudam e mudaram com a improvisação, a improvisação mudou com a edição, com a manipulação eletrônica, e agora o disco tá mudando com os shows ao vivo. Essa imagem da erosão começou a fazer sentido, essa ideia de um solo que vai se transformando, que vai se alterando de uma maneira irreversível, que você, depois, não consegue mais voltar. Foi muito curioso porque eu comecei a ficar com essa ideia na cabeça, tipo “erosão”, “erosão”, “erosão” e, depois, lembrei que a minha mãe, que é dançarina, tem todo um trabalho teórico que chama “corpo erodido”, e eu não tinha percebido! No fundo, eu tô plagiando a minha mãe (risos)!
Alô, Lacan e Freud!
Exato! (risos) Na verdade, é um pouco diferente, claro, o contexto dela é muito diferente. Mas, óbvio que tava no meu subconsciente e, de alguma maneira, veio; de repente, fez sentido.
Sim, e me ocorreu agora: você começou também a ver algum tipo de beleza no processo de erosão, após ter colocado esse nome no seu trabalho?
Eu acho que a erosão, em si, não é bonita, nem feia. Eu acho que é um processo geológico que pode acontecer tanto num nível microscópico quanto no nível de calamidade natural. Acho que a gente, quando pensa em erosão, relaciona logo com um solo que tá pobre, não saudável, e acaba ficando mais suscetível a esse processo. Além de ser uma coisa que acontece mais hoje em dia, por conta do desmatamento, de todas as questões ambientais. Acho que o nome EROSÃO tem isso. Ele também fala dessa loucura que vem acontecendo há tempos, desse uso humano, dessa objetificação, desse esgotamento do ambiente pelo humano. Enfim, dá pra ficar aqui viajando muito… mas é um paralelo com a arte. A arte também é uma maneira de manipular a natureza. É uma outra coisa que, no fundo, vem desse lado humano – muito cultural, ocidental, muito branco – de vontade de dominar e manipular a natureza. Acho que quando a gente faz arte, estamos ‘brincando’ disso, de organizar, manipular… e esse disco tem muito tesão na manipulação, na organização dos sons. Mas sobre a beleza da erosão, bom, um cânion, geralmente, é fruto de um processo de erosão, e é lindo, né? É interessante porque eu achava a palavra erosão feia, mas comecei a achá-la cada vez mais bonita, meio que pela sua feiura, por ter esse som de “ão”, que é uma coisa tão brasileira e também tão paulistana, absolutamente irreprodutível para pessoas de outras culturas e línguas. Comecei a gostar cada vez mais e, hoje em dia, eu adoro, mesmo que sinta um estranhamento ao falar o nome do disco. Acho que acabei aprendendo a gostar desse estranhamento também.
Certo. Como você já antecipou, EROSÃO é o resultado de processos feito em etapas, em camadas com ordens bem definidas. Partindo da camada primeira, Mariá, que são as composições, percebo uma estética bastante dual, que trabalha a força do que é literal e do que é figurado nas palavras utilizadas. A metáfora é um dos grandes recursos, e sinto que muitas canções tratam daquilo que irrompe, que foge do controle – mas isso tudo são apenas hipóteses. Você pode comentar sobre a dimensão temática dessas canções que podemos ouvir no disco?
Elas são muito diferentes, os contextos são diferentes, e geralmente elas falam de coisas bem específicas, apesar de elas serem muito metafóricas. Concordo muito com você nisso, acho que eu não gosto muito de falar as coisas de uma maneira direta, prefiro sempre usar uma imagem, não sei se eu chego a ter um estilo de composição, pode ser que isso mude depois… mas olhando para essas canções, percebo que trabalhar com imagens é uma coisa que eu uso muito. Cada canção, na verdade, tem um tema; muitas ali foram feitas para pessoas específicas também… inclusive algumas estão dedicadas [“O Grão da Voz”, à Juçara Marçal, e “Telepatía”, à Manuela Martelli], outras não (risos). “Petróleo”, que é a única parceria do disco, ao lado da Paula Mirhan, foi uma encomenda. Ela mandou um e-mail para vários amigos, chamando para parceria no disco dela [Petróleo (2020)], que tinha como tema central o ódio. Eu sempre tento falar sobre alguma coisa concreta, por mais que soe muito abstrata, que você não consiga agarrar muito bem o sentido daquela canção, como o caso de “Cheio/Vazio”, que é bem cifrada. Mas todas elas têm uma ideia muito evidente do que eu tô falando.
Tem “Um Olho Aberto”, que foi apresentada pela primeira vez em Deus É Mulher (2018), de Elza Soares. Você pode falar um pouco sobre a intenção dessa canção?
Sim, eu fiz pensando na Elza, para mandar para ela. Na real, a letra fala sobre a ideia que a gente tem de natureza, que foi mudando ao longo do tempo e que, na cultura ocidental, é vista a partir dessa cisão, dessa dicotomia com o ser humano que outras culturas não têm. Então, como, a partir do momento em que a natureza vira um objeto, essa ideia pode ser manipulada como você bem quiser, pra justificar o que você bem entender. É algo que conversa com muitas coisas… desde a homofobia, a política bolsonarista de acabar com as florestas e retirar reservas indígenas de seus povos, a natureza como algo a ser explorado, como recurso a ser extraído, até à cirurgia plástica, entendeu? (risos) Se criticam as pessoas que fazem cirurgia plástica, ou as que fazem cirurgia de redesignação sexual, por exemplo, dizendo que isso “não é natural”, o mesmo argumento usado contra gays, lésbicas, enfim, sobre o afeto ou o sexo entre pessoas do mesmo gênero. Esse argumento é uma mentira, uma invenção, é puramente cultural, e vira dispositivo de poder, dominação e discriminação.
E “Dois Litorais” fala sobre algum tipo de rompimento afetivo?
Sim, é uma música de coração partido (risos), a única do disco. Eu tenho uma newsletter que costuma ser bastante viajandona e, na última edição que eu fiz, falei bastante sobre “Dois Litorais”, viajando sobre ela e contando um pouco sobre porque a compus. Bom, ela fala sobre uma situação que eu acho que todo mundo passa em algum momento da vida, que é quando você se apaixona por alguém, rola uma conexão que, pelo menos você, sente que é incrível, e a outra pessoa arrega, dá pra trás (risos), não encara. Ou, às vezes, porque é um relacionamento homossexual e a pessoa não quer sair do armário. Claro que tem um outro lado, o de que, principalmente quando a gente é mais jovem, escolhemos essas “tranqueiras” pra nos relacionarmos (risos). Mas, na época, eu tava amargada, de coração partido, e essa música tem muito disso, além dessa coisa de que não é todo mundo que tem coragem de encarar a aventura da paixão, ou melhor, não é todo mundo que tem coragem de encarar a si mesmo. Claro, nesse caso, tá muito relacionado ao processo de sair do armário, que é um processo de autoconhecimento, de você entender onde estão os seus desejos e bancá-los. Eu acho que a criação artística tem muito disso: criar artisticamente é muito como sair do armário, é dizer: “Eu sou essa pessoa, eu sou assim e eu quero dizer isso”.
Depois de definido o método, você partiu para essas sessões em que reuniu os seus amigos músicos, que estão todos conectados a essa cena paulistana experimental, e fez essa bateria de improviso em cada uma dessas canções. E isso deu origem ao material bruto. Como foi a realização disso? Principalmente a organização desse fluxo de por onde começar e quando parar?
Boa pergunta. Geralmente, na improvisação, tem uma hora em que o que você tem a dizer esgota. Acho que isso não é uma verdade absoluta, claro, pode ser diferente. Pra mim, na verdade, nem é só na improvisação, em trabalho de estúdio eu também sinto isso. Tem quem goste de entrar no estúdio e fazer 50 takes da mesma coisa, eu não gosto; chega no décimo take, eu já acho que não tenho mais nada a acrescentar. Acho que na improvisação existe uma sabedoria, que você começa a desenvolver, de entender quando a coisa se esgotou. Eu vejo os improvisadores mais velhos que eu venho encontrando aqui na Europa, pessoas muito mais experientes do que eu, com mais fôlego, tipo Fred Frith e Burkhard Beins, que são improvisadores de longa data e de muito fôlego, que eles têm uma sacada meio lacaniana de tipo “pá”: agora a gente vai parar. E geralmente eu quero tocar mais, mas eles veem quando chega esse momento, e isso é um exercício. Eu acho que nessas gravações para EROSÃO, chegou um momento, depois de três ou quatro takes, que eu sentia que a gente já tinha dito tudo o que tinha para dizer.
Foi mais de uma sessão?
Sim, foram dois dias, em cada um deles, um time diferente. Das oito canções, o primeiro grupo ficou com quatro e o segundo com as outras quatro. Mas, para o disco, ficaram apenas seis.
O Tó Brandileone aparece no disco enquanto uma segunda voz, e se destaca por ser o único dos convidados que ocupa esse papel, além de você mesma. Por que essa função foi atribuída a ele? O que você vislumbrava ao ter a contribuição vocal dele para as faixas?
Lega! Bom, na hora de sessão, eu não ia conseguir cantar, por isso comecei a pensar em quem poderia fazer isso, mas também não queria chamar alguém só pra me substituir; já que eu iria chamar alguém, essa pessoa faria parte do disco. Eu passei a gostar muito dessa ideia de ter outra voz, decidi que queria uma voz masculina e pensei muito no Tó, por ser um produtor como eu. Poxa, tem um monte de produtor no disco, não só nós dois, mas pensei que, com ele, o lugar de interlocução, a conversa, poderia ser legal. O Tó é um cantor muito bom, um produtor sensacional e uma pessoa disponível, que topa se jogar em um contexto que, acho, foi inédito para ele. Ao mesmo tempo, ele é alguém muito musical, eu tinha certeza que iria dar certo (risos) e realmente deu. Eu gosto muito do papel que ele acabou assumindo no disco, sinto que ele é um pouco uma outra versão de mim mesma (risos), meio que fagocitei o Tó, ele virou meu outro lado. Nas edições, ouvindo-o cantar – ele canta tão bem! – comecei a sentir muito isso, a brincar com esse dueto, essa dualidade entre ele e eu.
Cortamos aqui e partimos para a cena “Mariá com disco rígido contendo as gravações da sessão, viajando para Moers, Alemanha”. Aí, você entra em contato com uma cena europeia de improviso, também de sonoridade bastante orgânica, algo familiar pra você, mas em um contexto super novo. Ao mesmo tempo, você também se propõe a lapidar esse material bruto, também de sonoridade orgânica, mas a partir da edição por manipulação eletrônica. Como foi esse seu mergulho na linguagem eletrônica? E como foi buscar novos resultados através dela, mas a partir de algo acústico?
Hm, boa pergunta, porque é justamente isso que me fascina na improvisação e em muitos improvisadores com os quais eu tive a alegria de tocar nesses últimos quase dois anos. Eu acho que um bom improvisador, pelo menos pra mim (risos), presta atenção no som. Essas duas coisas estão muito juntas para mim: esse jeito de pensar o som de forma mais microscópica, de pegar esse material, colocar num software de produção, e ficar lá burilando, recortando, colando; pode parecer completamente diferente de você ir ao vivo e improvisar no seu instrumento, mas, eu acho que os objetivos são muito parecidos. O escopo, a sua visão sobre o material, é, também, muito parecida. É sobre ir na qualidade do som mesmo. Pode parecer um pouco vago, mas acho que tem gente que se preocupa com outras coisas, e o som, talvez, esteja numa segunda camada. Como um compositor que se importa mais com a canção, com a letra mesmo, e a melhor maneira de vê-lo é em um voz e violão. Claro, ele tá trabalhando com o som ali, mas suas prioridades são diferentes. Enfim, foi muito legal fazer isso em Moers porque uma coisa acabou alimentando a outra; enquanto eu estava improvisando e conhecendo improvisadores novos, buscando conhecer outras pessoas e as conhecendo através da improvisação, também estava sentada no estúdio editando e processando, né? Acho que isso ajudou muito a abrir a minha orelha (risos).
No desenvolvimento desse projeto, a etapa final nos leva de volta ao ponto de partida, que são as composições. Afinal, cada canção passou por um processo que remetesse ou fosse evocado a partir de seu título/tema. Como foi para você, Mariá, se conectar com a mesma canção, uma vez modificada por um processo que adicionou novas camadas não só sonoras, mas também semânticas e viscerais naquilo que você já dialogava com na lírica?
Hm, entendi. Ah, eu acho muito legal (risos), em qualquer trabalho artístico, meu ou não, eu gosto quando eu vejo que a forma se relaciona com o conteúdo de uma maneira muito íntima. É uma coisa que tem ficado cada vez mais importante. Acho que é uma busca pra vida inteira: como fazer com que o seu meio e a sua mensagem sejam, um pouco, a mesma coisa? Que um reforce o outro, que um fale sobre o outro? Foi isso o que eu tentei fazer com esse disco. É engraçado porque, ao mesmo tempo, têm canções que são absolutamente irreconhecíveis, que você não consegue identificar as sessões de improvisação – como “Telepatía”, que mudou completamente e que, inclusive, tem pedaços de todas as canções, até aquelas duas que não entraram no disco – , mas “Dois Litorais”, por outro lado, foi uma que não mudou quase nada; fiz duas edições apenas, porque eu ouvi esse take que a gente fez e fiquei surpresa ao perceber que o que eu queria, a gente já tinha conseguido fazer ao vivo. É interessante porque não é uma resposta fechada, cada música teve a sua própria vida e trajetória.
Bom, a capa de EROSÃO também nasce de um processo que incide no próprio título da obra e que foi feito em paralelo por você e a designer Maria Cau Levy. De onde vem essa sua vontade e disposição em se envolver em tantas frentes criativas diferentes em EROSÃO?
A capa foi um processo muito junto com a Cau e muito junto do disco. Acho que antes do disco existir, antes mesmo da gente fazer as sessões de improvisação, eu e Cau já estávamos conversando sobre essa capa. A gente passou por muitos estágios, vimos muitas referências, conversamos muito. Eu não consigo separar esse disco dessa capa, é uma coisa indissociável, são processos paralelos. É muito legal porque a gente chegou juntas em um resultado que parece que tem vida própria, parece que a gente chegou numa coisa na qual passamos tanto tempo fazendo, e que chegamos em uma coisa que gera outra. O processo da capa e do disco são paralelos, a Cau tentou fazer isso de também trabalhar com camadas que fossem se alterando umas às outras. Eu tenho muito orgulho do trabalho que a Cau fez, acho que ele foi realmente sensacional, espetacular.
Mariá, a erosão é um processo que altera quase que permanentemente a estrutura ou organismo que é atingido por ela. Como você, artisticamente, foi alterada por todo esse processo de EROSÃO?
Boa pergunta… eu sinto que é um processo irreversível e que continua. Eu já tô pensando no meu segundo disco, por exemplo, e inevitavelmente acho que ele vai carregar as experiências desse primeiro, tanto as que não deram certo quanto as que deram. Tem um pouco de libertação em você ir erodindo as coisas. Você vai passando e destruindo as coisas, não no mau sentido, você destrói o que você construiu, mas pra chegar em um outro lugar. Pra mim era muito importante fazer isso com as canções, mexer nelas, manipulá-las, romper esse respeito que a gente às vezes tem com as nossas próprias canções, que é algo que às vezes distancia a gente, deixa a gente com medo de mexer. Esse disco me ensinou a pegar na mão e mexer. Agora, eu não quero fazer as coisas de outra maneira. Isso é o mais legal que tem! (risos) É tipo pegar pra si e transformar aquilo em outra coisa… é por aí.