Tulipa Ruiz comenta suas habilidades extraordinárias

21/10/2024

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Nino Andres Biasizzo, Dariely Belke, Kendy Higashi/Divulgação

21/10/2024

Tulipa Ruiz tem pensado muito sobre como a natureza tem os seus próprios ritmos, que exigem consideração. Entre o período de seis anos que separam Habilidades Extraordinárias (2022) e o seu disco anterior de composições inéditas, Dancê (2016), parece que o mundo virou de cabeça pra baixo. 

(Foto: Dariely Belke/Divulgação)

O desequilíbrio ambiental permitiu que um novo vírus ameaçasse a vida humana em todo o planeta; enquanto isso, o autoritarismo político vem pondo em xeque diversas democracias que eram aparentemente sólidas. A religiosidade vem sendo usada como arma de destruição em massa; há uma perseguição ao conhecimento, seja o dos saberes ancestrais das culturas autóctones ou o mesmo científico que move a indústria. A economia capitalista segura-se por um fio; a guerra protagoniza os noticiários; e a Crise, este bicho de sete cabeças, tem nos feito companhia, ao ponto de nem mais estranhamos tanto a sua presença.  

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Hoje, sair de casa e voltar com segurança, pagar as contas que garantem acesso aos serviços básicos de moradia e cidadania no meio urbano, ou até mesmo se alimentar, tornaram-se verdadeiras habilidades extraordinárias para a maioria dos que vivem no Brasil. No entanto, para quem é mulher, negra ou negro, indígena e/ou parte da população LGBTQIA+, este desafio é multiplicado exponencialmente. 

Foram muitas as angústias que orbitavam o eu lírico de Tulipa durante o processo de composição do seu novo álbum. Na conversa que segue nas páginas seguintes, ela explica que Habilidades Extraordinárias é o disco no qual ela, enquanto compositora, mais se aproximou de problemáticas sociais e coletivas. Não é um disco em primeira pessoa, pelo contrário, é um álbum em que primeiro, vem as pessoas.

Produzido pelo irmão da cantora, Gustavo Ruiz, assim como toda a discografia pregressa dela, o novo álbum tem direção artística de Gustavo e Tulipa e foi todo gravado em fitas analógicas, em julho de 2022, no Brocal Estúdio, espaço em São Paulo que os irmãos Ruiz dividem em sociedade. Ainda que as composições tenham partido da união de Gus e Tu, o baixista Samuel Fraga e o baterista Gabriel Mayall, que gravaram o álbum inteiro, foram determinantes para os arranjos e a sonoridade final do disco. Honrando a dimensão coletiva do projeto, o disco conta ainda com as participações especiais de João Donato, Negro Leo, Jonas e Pedro Sá, Toninho Ferragutti e Luiz Chagas, pai de Gus e Tu.  

Vivendo um contexto em que suportar a rotina já é uma habilidade extraordinária, Tulipa floresce madura, como uma planta medicinal enteógena, capaz de curar o seu público e oferecer uma experiência transcendente ao mesmo tempo.

Doze anos se passaram desde o seu primeiro álbum, Efêmera (2012). Em relação a sua trajetória, como você se sente enquanto cantora e compositora hoje?   

Embora a indústria esteja muito pasteurizada e asséptica, e isso pode levar a produção de arte a momentos genéricos, esse [momento] contemporâneo leva a gente para um lugar autoral muito forte. As mulheres estão compondo como nunca. O nosso empoderamento tem nos dado voz, e a voz tem nos dado autoria. E a gente precisa falar cada vez mais das mulheres na música. 

A minha investigação é autoral desde o começo. Eu só canto porque eu comecei a compor. Quando faço a letra de uma música, ela tem que fazer sentido sem precisar de harmonia e melodia. E a caneta, para mim, tem sido cada vez mais importante. Estar com um cajado na arte do disco tem a ver com essa caneta. É um cajado autoral, com o qual eu determino e escrevo meu caminho.

Divulgação/Nino Andres Biasizzo
Nino Andres Biasizzo/Divulgação

Pegando esse gancho da autoria, Habilidades Extraordinárias (2022) é um disco muito posicionado, no qual você deixa explícita sua posição sobre as diferentes crises que estamos vivendo. Como você sente a responsabilidade da criação em relação ao contexto histórico atual? 

É o desafio da temporalidade, decupar o momento que você está vivendo de uma maneira tão artística que jamais vai ser datado. No disco, não tive como fugir de todos esses atropelamentos que estamos vivendo. Não tem como abstrair a distopia, o absurdo que a gente tem vivido, é impossível. A gente tem levado o tiro de tudo quanto é canto, o tempo todo. O meu desafio foi como eu, que estou totalmente em frangalhos, assim como todo mundo ao meu redor, posso falar sobre isso de uma maneira que eu não fique datada e entre nesta investigação do atemporal. Não teve como eu não falar sobre todas essas coisas que estão acontecendo agora, mas que se aplicam ao nosso passado e vão se aplicar ao nosso futuro. 

E sobre a questão do tempo artístico vs. o tempo do mercado, como você lida com isso? 

Meu primeiro disco se chama Efêmera (2010) justamente por questionar o imediatismo e as coisas descartáveis que o mercado coloca na mesa. Acho que sempre foi assim, o capitalismo é assim. Como a gente trabalha a durabilidade poética das coisas? Como você se relaciona com um disco? Não no mês que saiu, mas na sua vida, como é? 

De 2010 para cá, tanta coisa aconteceu. No meu primeiro disco, o CD quase não existia mais, a mídia estava mudando. No segundo disco (Tudo Tanto, 2012), as pessoas baixavam muita música, em péssima resolução, e a minha batalha foi: “Quer me baixar? Me baixa em alta resolução”. Aí coloquei o disco para download no meu site. No terceiro (Dancê, 2016), as pessoas já estavam ouvindo música no streaming. Ali, pra mim, o que pegou foi a capa. Eu faço música para fazer vinil, eu gosto de fazer capa de disco. Aí comecei a pensar: “Nossa, agora a capa do disco é um negocinho desse tamanho, como a gente comunica com esse desafio gráfico?”. 

Entendo essas mudanças, mas isso nunca interferiu na maneira que componho. Se eu for ficar pensando no jeito que a música é consumida hoje, eu vou datar o meu trabalho. Porque o jeito que a gente escuta música está sempre mudando. Por exemplo, “Samaúma”, meu primeiro single, tem cinco minutos. Eu fiquei pensando poeticamente: “Não tem como cortar ‘Samauma’, porque a samaúma é uma árvore sagrada, eu não vou cortar, é uma árvore gigante, do tamanho da música”. 

Então, procuro não ficar desesperada com o jeito que a gente tem consumido música agora. Antes, o ouvinte te ouvia na rádio ou ia na loja comprar o seu disco. Agora, tem a pessoa que só escuta vinil, a que só escuta no YouTube, a que só escuta no Tik Tok. A gente tem que ocupar todos esses lugares, só que a gente tem que inventar novos. Porque esses lugares são de um mercado que não entende nada de música.

E que todo artista ficou um pouco refém.

Todo mundo ficou um pouco refém. Precisamos falar da reforma agrária do ciberespaço, né? Porque esses lugares são pequenos e escondem toda uma cadeia, vide a dificuldade de achar a ficha técnica de um disco no streaming. Cada vez mais, a gente precisa entender essas plataformas. Eu vejo pouquíssimas pessoas reclamando por espaço pra divulgação de ficha técnica. Ao ter ficha técnica, você está dando nome aos bois. Dar nome aos bois envolve direito autoral, e o direito autoral é uma questão. 

Em vez de ser gravado digitalmente, o Habilidades Extraordinárias foi todo captado em fita analógica, e essa opção envolve uma discussão entre a materialidade e a imaterialidade das coisas, e como elas são consumidas, né?   

É, o digital permite o hiper registro, que gera uma dispersão. A gente está o tempo todo ouvindo música, mas vendo uma tela, e aí entra o WhatsApp, e você checa três vezes o Instagram. Então, a gente já vem de um plano sequência em que as coisas não são mais lineares. E tudo certo, é uma característica da contemporaneidade. Só que essa dispersão me incomoda, porque eu sou uma pessoa já naturalmente dispersa. Então, para mim, a presença tem sido uma batalha. Isso foi fundamental, se eu quero que as pessoas se relacionem e quero atravessar o tempo com esse disco, ele tem que ser feito com muita presença. A captação analógica determinou um estado de espírito muito maior do que eu esperava. Eu não tinha o hiper registro, eu não precisava fazer 30.000 takes de voz. Isso determinou a nossa presença e a nossa entrega e determinou o som do disco. Acho que exercitar outras velocidades é fundamental nesse contemporâneo dodói. 

A gente tem sofrido tanto também porque não ritualizamos as coisas. A gente tem sido manipulado o tempo inteiro, o algoritmo é interessante em vários momentos, porque vai decupando a nossa navegação, ao mesmo tempo em que também é uma coisa que você pode pagar pra aparecer mais vezes. É o jabá contemporâneo. Sempre brinco que tem o algoritmo e tem o algo rítmico. Com o vinil, olha que coisa poderosa, quem escolhe é você. E você vai decidir se você vai virar esse disco ou não. Escutar um disco, hoje em dia, é um exercício zen. E cura. 

A autoralidade norteia seu trabalho, mas qual foi a importância da banda que toca contigo no resultado do disco?

Eu gosto muito de fazer show, sempre gostei de banda, desde adolescente, sempre andei com camiseta de banda, sou filha de guitarrista, meu irmão sempre foi músico, o primeiro emprego da minha vida foi numa loja de disco… Eu curto esse rolê de banda, sabe? E Samuel Fraga, Gabriel Mayall e Gustavo, a gente tem tocado muito. E a estrada azeita o som. Cada vez mais, a gente tem tocado bem e se curtido musicalmente. 

No disco, a gente [Tulipa e Gustavo] chegou com as músicas prontas, mas os arranjos foram coletivos. E como essas pessoas que tocam comigo são autorais. Isso é o que mais brilha meus olhos neste contemporâneo genérico. Quando chega uma figura para mim em que eu vejo uma autoria, isso me enche de coragem e de esperança. 

Eu mesma estou descobrindo coisas no disco. Tem momentos do baixo do Samuca em que dá vontade de mutar tudo e deixar só baixo, sabe? Os caras tocam muito juntos e, ao mesmo tempo, têm uma individualidade e uma autoria no instrumental que me instigam demais. Pra mim, é uma grande sorte e um grande barato tocar com essa galera, que são pessoas que eu já acompanhava antes de tocarem comigo. Fazer som com eles é demais.

Divulgação/Kendy Higashi
Kendy Higashi/Divulgação

E tem ainda sua relação com o Gustavo, que além de parceiro, é seu irmão.

Irmão e brother, né? A gente tem uma diferença de idade pequena, de um ano e meio, então, com 16,17 anos, a gente passou a andar junto, os amigos eram os mesmos… E a gente ouviu a mesma vitrola, isso é muito determinante na nossa parceria. Nossos discos prediletos, nossa formação musical e o que instiga a gente musicalmente são parecidos. E a gente compõe de um jeito muito prático, admiro e respeito demais o trabalho do Gustavo. É um super produtor, e ele tem uma generosidade musical, porque produzir, ter empatia pelo universo de uma outra pessoa e poder somar, sem parecer uma harmonização facial no som, é um grande dom. O Gustavo consegue fazer isso, é muito legal.

A gente tem as nossas parcerias, e eu entendo que isso acontece pouco entre irmãos. A gente tem muita sorte de sermos irmãos, amigos, que trabalham juntos e que está tudo certo. Mas acho muito legal também que a gente tem as nossas individualidades. A gente junto é uma soma muito poderosa, mas essa soma é poderosa porque a gente tem muito aceso a importância das nossas individualidades. 

Foi engraçado agora que o disco [Indigo Borboleta Anil (2022)] da Liniker está concorrendo ao Grammy, e o Gustavo está nomeado por esse disco e eu também, mas eu estou como compositora e ele, como engenheiro de som. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Ele tá no rolê dele. 

Sobre a poética do disco, o quanto do seu material biográfico é usado nesse processo de composição e o quanto vem da elaboração de pensamentos e sentimentos sobre a realidade externa a você?

É muito interessante isso, tem essa leitura, que é super legítima, de muita gente pensando que é um disco em primeira pessoa. E esse é o meu disco mais coletivo, onde o meu eu lírico foi a um lugar muito plural. Ele não é em “primeira pessoa”, ele é “primeiro, as pessoas”. Claro que eu acesso coisas minhas, mas tudo nesse disco se aplica a nós enquanto projeto de sociedade.

Você citou antes como os discos podem ser um objeto de cura para quem ouve, você pensa nisso na hora de compor?

Eu penso muito na cura pelas artes. A gente vem de um momento muito demorado em que a classe artística tem sido atacada por esses desgovernos. E são os artistas que saem do país contando sobre o que acontece aqui. Na verdade, a gente deveria ser cuidado, né? Porque é a gente que conta essa história no futuro. O discurso de um presidente e a capa de um jornal têm validade. Uma música, um filme, não. A gente tem essa narrativa muito mais longeva nas mãos. 

E aí chega essa pandemia, quando as trabalhadoras e trabalhadores da arte estão completamente desmoralizados, o mundo para, e quem salva a cabeça da humanidade muitas vezes é um filme, uma música, uma peça de teatro, uma dança. A gente precisa se conectar e incentivar esse lugar de subjetividades, porque se a gente ficar só nessa realidade tão triste, a gente não dá conta. É um lugar de cura nesse sentido, não pra sair da realidade, mas é para ter outras maneiras para olhar essa realidade. Eu me curo o tempo todo fazendo e ouvindo música.

Pra terminar, quais são as habilidades extraordinárias que vocês se vê exercitando ultimamente?

Fazer um disco neste momento tão disperso das pessoas, da indústria, tendo total domínio do meu trabalho. Me colocar e me posicionar cada vez mais como a artista que eu sou. É uma habilidade extraordinária você exigir respeito por isso o tempo todo e você ser respeitada no que você faz. É uma habilidade extraordinária você ser uma artista que está na frente de todas as etapas do seu processo. Eu cuido de absolutamente tudo e isso, às vezes, me exige de uma maneira muito hercúlea. Fazer o disco, pensar na roupa, no show, em como isso vai ser distribuído… E aí fazer o CD, o vinil, todos esses processos, tudo. 

O artista independente trabalha de maneira muito hercúlea. Porém, vejo que eu não estou sozinha nesse rolê. Cada vez mais, as pessoas precisam fazer 40.000 coisas para poder sobreviver dentro desse game imediatista, do hiper registro, da dispersão. Desde o Dancê, eu demorei muito para fazer um disco, mas não parei de trabalhar um minuto. Eu demorei para fazer porque, para mim, um disco é uma coisa muito séria, muito bem pensada, que exige muita presença. E a turnê de um disco tem que ser muito longeva e decupada.

Mas eu vejo em mim habilidades extraordinárias por conseguir dar conta de tanta coisa nesse momento em que fazer e sobreviver de arte tem sido um desafio. Ao mesmo tempo, também enxergo ao meu redor todo mundo fazendo isso. Então, “habilidades extraordinárias” se aplica o tempo todo a muita gente. 

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 66 da revista NOIZE, lançada com o vinil Habilidades Extraordinárias, em 2022.

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Ariel Fagundes

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