Em um tempo nem tão distante, Fela Kuti disse: “Music is the weapon” (Música é a arma, em tradução literal). Na cena musical independente e contemporânea, Bia Ferreira parece ser a voz e a mente que mais traduz a “filosofia Kutiana” em seu trabalho.
Multi-instrumentista, compositora e cantora, ela faz da sua arte o ponto de fusão com seu ativismo. Ou, como ela mesma conceitua: faz artivismo. Das dores e das alegrias, dos medos e das coragens, Bia faz da sua composição escrevivência – conceito da escritora Conceição Evaristo – e faz do seu disco de estreia Igreja Lesbiteriana: Um Chamado (2019) um manifesto de seu propósito de vida: nunca se calar, principalmente frente à opressão.
O chamado é de onde ela fala, mas também um convite. Com suas poesias combativas, ela aborda o feminismo negro, a homofobia, o racismo, os privilégios, o amor, o afeto em uma levada dançante e enraizada nos ritmos do reggae, do jazz, do blues, do soul, do funk e do R&B.
Com o lançamento fresquinho e recém chegada ao Brasil após uma temporada de shows pela Europa, Bia bateu um papo sobre a criação de Igreja Lesbiteriana: Um Chamado, sobre a recepção do seu som, sobre a relação profissional e amorosa com a cantora e compositora Doralyce e sobre cantar a revolução. Leitura obrigatória! Ouça o disco (abaixo) e confira:
Bia, você tá há dez anos fazendo da música seu ganha pão e o seu primeiro disco saiu “só” agora. Como foi esse tempo de gestação do seu disco de estreia e como é finalmente ver ele pronto no mundo? Amiga, ele já foi gravado umas três vezes, de três formas diferentes e não rolou lançamento, já deu muita ruim! Todas as vezes que a gente achou que ia sair, não saiu, e talvez porque não era pra sair com aquelas pessoas que estavam fazendo [o disco na época]; muitas vezes me passaram a perna, várias vezes eu perdi dinheiro, várias coisas… eu já anunciei o disco algumas vezes e nunca veio. Dessa vez, tinha muita gente comprometida com essa revolução que a gente prega, muita gente que empenhou amor, porque é um disco feito sem dinheiro, a gente não tinha grana, todas as pessoas que fizeram, fizeram no amor. Nesse meio tempo de gestação, o disco passou por algumas modificações, entra música, tira música. Durante esses anos, eu também tive a possibilidade de maturar o que eu queria de identidade sonora pra me apresentar pro mundo de uma forma profissional, aprimorando a partir das demandas que a gente vem tendo. Agora, o disco foi pensado como uma mensagem que alcançasse o coração de pessoas que talvez, eu sozinha, não conseguisse alcançar. Eu consegui falar com as pessoas que vêm de onde eu venho, que não tiveram acesso às mesmas informações que eu, mas que partilham do mesmo acesso que eu, ou as pessoas que não partilham das mesmas informações e que não partilham das minhas ideia; e às pessoas que tiveram acesso à informação e que pensam a favor ou ao contrário de mim. O álbum é também uma ponte para acessos, a gente pensou nisso de uma forma muito carinhosa. São dez anos de construção contínua de um trabalho que só tá saindo agora porque eu acho que agora é que é o momento. Quando rolou o lançamento, eu tava em Portugal, e aí foi bizarro porque lá são quatros horas de diferença, né? Quando vi que sairia 00h daqui, eu já acordei às 4h num pulo! Foi um momento de emoção porque, como mulher preta que fala o que eu falo, a chance de morrer é muito grande. As mulheres que falam as coisas que eu falo ou morrem, ou são silenciadas, ou apagadas. Quando eu vi isso saindo, foi a realização de um sonho que no começo era meu, mas que depois se tornou coletivo. Várias pessoas se sentindo realizadas com a conclusão daquilo, sabe? Um momento de êxtase, de alegria e fruto de muita promessa. Esse disco tem um conteúdo que mostra exatamente a minha conexão ancestral e de como passar essa informação pras pessoas. É um sentimento de alívio por ter conseguido dizer tudo que eu achava que precisava ser dito e de uma forma que eu acho que as pessoa vão entender. Foi um parto demorado, picos de estresse, surtos, foram várias coisas até sair. Quando sai, a gente fala “Poxa, é possível fazer”, é quando a gente faz um trabalho que pessoas que querem fazer como a gente faz enxergam que é possível fazer. Acho que esse disco vem pra dizer isso também. É possível você formar uma base teórica intelectual diferente e é possível você se comunicar através dessa base intelectual com outras pessoas que não tiveram o mesmo acesso.
Você botou a mão na produção junto de Vinícius Lezo e também teve parceria de BNegão em uma faixa. Qual a importância de estar diretamente envolvida com a produção musical e como foi trabalhar ao lado deles? Ano passado, a Red Bull Music fez uma residência que se chamava Pulso. Doralyce era a artista convidada e ela levou o Vinicius Lezo junto, por uma indicação de um amigo dela. Dora nos apresentou e aí a gente se apaixonou! Ele me falou “Por que você não tem disco?” e eu respondi que era porque eu nunca tive dinheiro pra lançar um. E ele disse “Então, a gente vai lançar um disco!”, isso em abril de 2018. Ele foi me ajudando a pensar algumas coisas como “Olha, tenho um amigo que tem um estúdio, ele pode te ceder algumas horas”. Nesse processo, eu queria lançar um single que era “Boto Fé” e que achava que tinha a cara do BNegão. Sou fã do trabalho dele, mas ainda não o conhecia, mas mandei uma mensagem pelo Instagram: “Oi, BNegão! O meu nome é Bia Ferreira, sou uma cantora preta, sou artivista, me posiciono politicamente através das canções. Acho que tenho a ver com o seu trabalho e quero trabalhar com você! Quero saber como é que faz, quais são as suas possibilidades. Tô te enviando um vídeo meu pra você ver como é o meu trabalho e, se te interessar, você me retornar”. Fiquei apreensiva. Passou um dia, ele respondeu: “Eu tava discotecando a sua música ontem! Eu sou seu fã, gosto muito do seu trabalho! Tá aqui meu WhatsApp, me chama pra gente se encontrar!”. A gente se encontrou e foi lindo; ele fez a produção da faixa “Boto Fé” que tem a cara desse nosso encontro. Já Lezo é o cara que consegue esquematizar as doideiras que saem da minha cabeça. Quando eu escrevi as canções, eu já tinha os arranjos na minha cabeça e ele foi o cara que conseguiu fazer viável. Eu não entendo de engenharia de som, não sei mexer com os programas, então ele foi o cara que fez ser possível as doideiras que eu tava pensando de arranjo pro disco, de como comunicar, qual a identidade sonora. A gente compartilha de gostos musicais muito parecidos, trabalhamos muito bem juntos, viramos amigos! Ele é o único homem da minha banda, porque eu não abro mão dele [risos]. Foi lindo trabalhar com eles porque são homens que mostram que é possível não ser escroto, sem ser babaca. Eu não gosto de trabalhar com homem, então eu só trabalho com aqueles que eu não vou ter problema, que eu sei que não vai chegar pra mim uma história de assédio! Ter a possibilidade de conviver com o BNegão e com o Lezo foi um aprendizado enorme porque eles são muito generosos, sabem muito e não tem problema em dividir o conhecimento. Eu tô saindo bem grande desse processo todo de conhecimento adquirido.
“Igreja Lesbiteriana: Um Chamado” é uma coleção de poemas seus que trazem muito da sua vivência como mulher preta lésbica. Você já disse muitas vezes sobre desejar um dia não ter que cantar sobre racismo e homofobia, mas também sobre o ativismo ser ponto de partida para a arte. Como é usar seu corpo, sua voz e sua energia pra cantar composições sobre assuntos tão duros? Como você trabalha essa questão de ser combativa sem que isso deixe você esgotada? Eu acho que eu me alimento de afeto e recebo muito afeto das pessoas que estão ao meu redor. Tive a benção de estar cercada de pessoas que me suprem com afeto. Eu acho que essa revolução só é possível porque existe o amor, porque existe o afeto pra segurar a onda da gente; só o combate em si é cansativo, é desgastante. Tenho amigos que são incríveis, tenho uma companheira excepcional, tenho meus irmãos que me seguram a onda também, é o que me alimenta pra continuar fazendo esse trabalho e também a responsabilidade que eu assumi, e todas as pessoas que fizeram esse disco, de não se calar diante da opressão. Por mais que seja incômodo pra alguns ouvidos, eu preciso me lembrar que a cada 23 minutos morre um jovem preto no Brasil. Então, a cada 23 minutos, se eu tô viva, alguém teve que morrer, porque a estatística não baixa. A cada 23 minutos que eu tô viva, alguém teve que morrer pra eu estar viva, então eu preciso honrar essas pessoas.
Muita gente diz que seu som é um soco no estômago, mas isso é uma ponto de vista de quem não é LGBTQ+, de quem não é negro, de quem não é pobre. E-XA-TA-MEN-TE! (risos).
Como é a recepção da sua música por quem partilha das mesmas lutas que você? Como é trocar com a parcela do seu público que recebe suas composições como um afago? Cara, eu fico muito feliz. Pra mim, o melhor momento é aquele em que acaba o show e um preto vem falar comigo, me abraça e diz “Eu nunca senti tanto orgulho de ser preto, pô! Que massa, que show foda!” e também sobre “A cara dos brancos” ao lado [risos]. Eu também gosto de ver a cara deles, chocados, e ver como é notório, como acontece em todos os shows. Tem uma parcela das pessoas que vão desavisadas, que não fazem ideia de quem é a Bia Ferreira, que vão embora na segunda música [risos]. Acontece, mas tem rolado menos porque eu acho que as pessoas tão indo mais avisadas, mas rola porque é difícil encontrar alguém que tá mostrando pra você que você é racista. A ideia principal do meu som é: ou você assume que tá vivendo em um contexto de revolução e que precisa fazer parte dela, como pessoa preta, como pessoa indígena, como uma pessoa preta-latina, e entende que ó, a gente tá aqui pra lutar, estão matando a gente e a gente tem que estar junto – é sobre isso aqui que eu tô falando, você vive isso aqui que eu tô falando? Tamo junto!-; Ou, a pessoa vai ter que assumir que ela é racista e repensar a forma de agir nessa sociedade, ela não tem outra escolha. Ela também pode falar “não gosto do que a Bia tá escrevendo, acho que essa menina é muito radical, mas, nossa, essa melodia é boa”. A gente prezou muito pela qualidade sonora. O mote dessas canções é a mensagem; as pessoas vão se educar por osmose e a ideia é que a gente consiga se comunicar com as pessoas. As pessoas brancas, é foda o que eu vou falar agora mas, amiga, ninguém quer ser branco nessa sociedade. Tem gente que gosta de ser branco, tipo, “ai, amo ser branco”, os racista, os nazi, os fascistas, mas tem uma galera que é culpada, que sente culpa. Que é o quê? É a “esquerda cirandeira”, os “aplaudidores do pôr-do-sol”, eles até entendem a luta, mas eles não querem abrir mão dos privilégios que eles tem. Tipo assim, eu sou de esquerda, mas eu não abro mão do meu carro; Eu sou de esquerda, mas eu não vou colar naquele rolê ali que só vai a galera pobre. Essa galera vai pro meu show e eles se chocam com a clareza com a qual eu falo com eles. Eles não estavam esperando que alguém fosse tão direto com eles, tanto que eles falam “Nossa, é um soco”, “É um tapa na cara”, ou “Olha, eu vim no seu show pra apanhar hoje”, eu ouvi isso mais de uma vez. Amiga, você tinha que estar vindo aqui porque você já entendeu, porque você não tá tomando mais tapa na cara! Eu dei uma entrevista esses dias em que eu disse que eu só topo colar com gente branca que quer sangrar comigo, porque eu tô sangrando sozinha há muitos anos. Eu fui pra Galícia agora, na Espanha, pra fazer um show e uma moça me desenhou e escreveu ao lado “o povo da Galícia sangra contigo e com os teus”. E tipo assim, colonizador, veio aqui e fudeu com a gente, mas você entende que é uma galera que conseguiu compreender o que você tá falando. Tipo assim, já entendi, tamo aqui pra fazer com que essa revolução aconteça, pra viabilizar essa revolução. Tô aqui pra garantir que você fale, sabe? Quando não tem preto no show, eu passo o tempo todo perguntando [pra plateia] “Cadê o seu amigo preto?”, “Você não tem amigo preto?”, porque é horrível fazer show quando não tem preto. E eu entendo que quem mata a gente são as pessoas brancas, porque existe um sistema chamado branquitude, quem mata é esse sistema chamado branquitude e é contra ele que eu luto. Quando eu consigo arrancar uma galera deles pra compreender e pra lutar junto comigo, ótimo, mas eu luto pra educar pessoas pretas, pessoas pobres, pessoas afro-latinas, que não tem acesso à informação, recebam essa injeção de ânimo pra fazer a revolução. É pra elas que eu canto.
Além de parceira no amor, Doralyce é uma importante parceria musical; vocês inclusive tem uma turnê juntas, né? Como o palco potencializa a relação de vocês e como a relação de vocês potencializa suas artes? Cara, eu acho que o melhor presente que eu recebi na vida foi conhecer Dora. Foi uma divisão de águas, um marco. É o lugar onde eu consigo encontrar alguém que luta pelos mesmos ideais que eu, fala das mesmas coisas que eu de uma forma completamente diferente que eu, mas também muito parecida. Eu já conhecia o trabalho dela e no dia que a gente se conheceu pessoalmente houve uma revolução, até na minha forma de fazer música, minha forma de pensar de pensar o trabalho, mas também num lugar de entender que existe um amor de verdade pra mulher preta. Eu, como mulher preta lésbica que entende que o amor nunca tá pra gente, que sempre é a menina trocada pela branca, sempre é aquela que é fetiche, do “Ai, eu nunca fiquei com uma preta”, a gente não tem hábito de ter afeto, de receber afeto, a gente está aprendendo isso agora. Acho que Dora, pra além de ser a minha companheira, é uma das intelectuais pretas de maior ascensão hoje pelas ideias que ela tem, que ela estuda, pelas teorias que ela pauta a respeito de tecnologias para o povo preto. Eu acho que as pessoas precisam prestar a atenção nela pra além da cantora incrível e compositora maravilhosa que ela é. Eu acho que o palco é o lugar onde a gente consegue extravasar as nossas doideiras musicai e em casa é o lugar em que a gente consegue fazer as nossas doideiras musicais pra botar no palco, trocar ideia sobre isso. É um constante aprendizado e não por acaso ela é a única compositora da qual eu canto canções; eu faço som autoral e interpreto canções de Dora porque acho que é uma compositora que tem que ser cantada mesmo. A primeira canção do disco é “Brilha Minha Guia”, que é uma composição dela, é uma música que ela escreveu há alguns anos e que ela usa pra rezar. Quando a gente começou a namorar, a ela me ensinou a rezar, e pensando na gravação do disco, queria começar rezando. Ela, com toda a sua generosidade, me concedeu essa canção. A última música do disco, “Sharamanayas”, escrevemos juntas e é o hino da Igreja Lesbiteriana. A gente se potencializa porque somos duas mulhores pretas que pregam o contrafluxo de competição e rivalidade do mercado. O trabalho solo dela é incrível e a gente também tem esse show juntas, o Preta Leveza, em que a gente toca as músicas de amor que a gente fez uma pra outra, só pra ficar se derretendo mesmo [risos]porque a gente se ama e no mundo em que a gente tá vivendo, morando no país que mais mata [pessoas] LGBTQ+, viver o nosso amor é revolucionário, é lindo. E ó, vai sair disco dela e ela vem metendo o pé na porta!
Apesar esse ser seu disco de estreia, você já tem muita estrada. Qual sua expectativa pra cair na turnê do seu primeiro disco? O que você tá planejando pros shows? A nossa expectativa é a melhor! Apesar da gente estar vivendo em um país em que os artistas que falam o que a gente fala estão sendo retirados do palco, a gente teve show cancelado no Rio de Janeiro por conta do nome “Igreja Lesbiteriana”, entendemos que vamos enfrentar alguns conflitos por causa das bandeiras que levantamos, mas a gente entende que tem muita gente que luta junto, que é importante levar essa mensagem pro número máximo de pessoas. Fizemos alguns shows na Europa e no verão do ano que vem voltaremos pra fechar os shows desse disco lá!
Bia, pra gente fechar, você fala que compor, cantar, levar sua mensagem e nunca se calar é o seu chamado. Onde você quer que essa mensagem chegue? Onde você quer chegar? Eu quero estar nas linhas que contam a história da revolução. É nesse lugar que eu quero estar. Eu quero que daqui a 50 anos as pessoas saibam que existiu uma cantora chamada Bia Ferreira que não se calou contra o sistema de opressão. É muito bonito ver que a música “Cota Não É Esmola” é leitura obrigatória em vestibulares, é massa ver prova de faculdade com essa música, crianças apresentando trabalho com essa letra, é importante dizer isso. Acho que tem uma canção que não tá nesse disco, mas estará no próximo e também nos shows, que ela resume bem isso:
“Quanto tempo faz que eles contam a nossa história?/ Quanto tempo faz que eles constroem a nossa memória?/ Eu vim pra contar que tão certo como o agora/ eu estarei nas linhas que contam a nossa vitória/ Estudam o meu povo/ Acha tudo isso exótico/ Viver na minha pele, tu não quer/ e fica óbvio/ Seu fetiche com a pobreza,/ isso que me assusta/ Não vê que reproduz tudo aquilo que acusa no outro?/ E já vem querer biscoito?/ “Minha empregada é como da família”/ Eu tenho nojo, deixa que eu conto/ Angela Davis já dizia:/ “Não basta só discurso, tem que ser antirracista”/ Vou falando ponto a ponto e depois desse encontro/ eu não aceito mais desculpa que você não sabia/ A minha escrivivência transcende a sua teoria/O que tá no seu caderno/ Eu vivo no dia a dia/ representatividade/ é nós por nós/ e ninguém vai falar por mim/ eu tenho a minha voz/ E se a minha voz em algum momento falhar/ Posso te garantir/ tem muita preta pra falar/ Então, deixa que eu conto/ A minha história/ Eu me represento/ Eu recebo minhas glórias/ aprendo com as minhas/ E tão certo como agora/ Eu estarei nas linhas que contam a nossa vitória”.