Luedji Luna carrega em seu ser diversas marcas que a colocam entre as esferas do pertencimento e do não-lugar. A pele negra retinta, o nariz o largo, a boca em traços generosos e seu próprio nome – inspirado em uma rainha africana, mas que pode significar “rio” em tchokwe, um dos principais idiomas da Angola – a conectam com as Áfricas que conseguiram resistir e reforçam sua herança migratória e sua presença em constante diáspora. Um corpo que vaga pelo mundo.
Tal como o nome sugere, Luedji é como um rio: contém a graça, a tranquilidade e a transparência em cada movimento. Também possui a mesma força vigorosa que pode romper estruturas e contornar o que for necessário para seguir o seu curso.
Aos 31 anos, sendo apenas seis deles dedicados à carreira musical, a baiana vem abrindo caminhos e arrebatando elogios com seu álbum de estreia Um Corpo no Mundo (2017). Após passar na prova de fogo do primeiro álbum com louvor, conversamos com a cantora e compositora sobre os frutos do presente disco, o processo de tour, o futuro e a potência de sua arte.
No mês de agosto, Luedji é uma das atrações do Breve Festival que rola em Belo Horizonte nos dias 25 e 26. Na sequência, aperte o player e leia o papo exclusivo que batemos com ela.
Na época de seu lançamento, o disco Um Corpo no Mundo era uma espécie de aposta, foi viabilizado com financiamento coletivo, etc. Depois desse momento e com todo o sucesso que ele tem feito, qual é o sentimento? Que novos horizontes os frutos esse trabalho estão proporcionando para você?
Um Corpo no Mundo iniciou-se com financiamento coletivo, mas no meio do processo eu fui contemplada com o Prêmio Afro de 2017 [Luedji foi contemplada no 4º Prêmio Nacional de Expressões Culturais Afro-Brasileiras na categoria Música], que foi o que efetivamente possibilitou que eu gravasse o disco. Em pouco tempo de lançado, ele entrou em várias listas de melhores discos do ano, teve uma crítica muito boa e um feedback bastante positivo do público. A partir daí, começou a surgir uma demanda muito forte do show do disco em outras cidades do Brasil além de São Paulo e Salvador, que são cidades em que eu já convivo há mais tempo. Eu tô sentindo esse movimento agora, uma necessidade de estar circulando por outras cidades do Brasil e até fora, porque têm surgido essa demanda por outros países. Enfim, eu sinto muito que isso é um reflexo do trabalho, Um Corpo no Mundo foi pensado e construído ao longo de dois anos em São Paulo, tempo em que eu já vinha experimentando um repertório de shows e pensando sobre o que eu queria falar e cantar. Então, quando eu fui para o estúdio, já era um trabalho amarrado e consolidado no sentido da criação, no sentido da narrativa que eu queria construir. Ele nasceu conciso, muito seguro e reflexo de uma observação de uma experiência anterior. Quando ele foi para o mundo, já havia uma expectativa do público sobre o meu trabalho e a minha figura por eu já fazer shows com esse nome. Fico muito aliviada, feliz e contente de ter superado as expectativas. Para o futuro, eu penso em continuidade sem grandes expectativas, manter essa linha de honestidade com o que se quer fazer e o que se quer cantar. Já venho pensando sobre o próximo disco – muito baseado nas minhas vivências, nas coisas que eu tenho me interessado por pensar agora. No momento presente, quero é colocar “Um Corpo No Mundo” no mundo, circular com ele e com o show pelo máximo de cidades possíveis e países que queiram me levar.
Como tem sido a experiência de estar circulando com o show saindo do circuito das cidades que você já conhecia?
Eu fui para o Rio de Janeiro e Porto Alegre pela primeira vez. A primeira cidade fora do eixo São Paulo foi Brasília, uma cidade que eu já tenho um pouco mais de intimidade por já ter tocado lá antes do lançamento, então tinha uma certa familiaridade com o público- mas o público do Rio e de Porto Alegre me surpreenderam muito com o esgotamento dos ingressos, todo mundo cantando todas as canções da primeira música à última. Foi muito surpreendente porque a gente não tem a dimensão do alcance do trabalho. A gente faz uma leitura a partir das redes sociais, mas quando a gente vai para o corpo a corpo percebe que é além do que imagina. Isso é impactante e revigorante, dá todo o sentido do trabalho saber que o que você faz reverbera tão positivamente e se espraia tanto.
Nas suas entrevistas você comenta que durante o seu crescimento enquanto mulher negra, principalmente no ambiente escolar, a baixa autoestima e a autossabotagem foram desafios constantes e estavam ligadas à questão do racismo. Agora, mais madura e enquanto artista, como é gerenciar os resquícios de tudo isso em um trabalho que exige uma troca com o público e que pode ser avaliado e contestado?
Eu tô muito tranquila nesse momento, sabe? Eu já tenho 31 anos e, lógico, o processo de cura é longo, mas é algo que tá em curso, não algo que eu não tenha tomado consciência ou que não esteja sendo trabalhado. O que me trouxe tranquilidade, segurança e autoestima foi ter aos 25 anos a oportunidade de fazer o que faço hoje, que é a música. Ter assumido isso e ter me tornado potência. Observar que a minha escolha e o modo como expresso a minha subjetividade no mundo reverberam em outras mulheres pretas, que isso tem reverberações no mundo geral, para além da minha própria vida, me potencializa, me dá ânimo e me dá estima. Consigo perceber que aquela criança que se sentia frágil e pequena se tornou uma mulher potente e capaz de criar coisas positivas e transformadoras. E sobre ser avaliada e contestada, acho que essa é a dinâmica do mundo. Estamos sendo observados, avaliados e julgados o tempo todo enquanto também julga, né? O importante é você ter a tranquilidade e consciência de que você é, do que você quer e da sua verdade. Se as coisas que você escreve, que você faz e o modo como você está no mundo realmente fizerem sentido, vejo que não há o que temer em relação ao julgamento do outro. Eu tô tranquila com as minhas escolhas, sobre fazer música, trabalhar com mulheres pretas, levantar a bandeira da mulher na composição, essa sou eu.
Nas suas composições, você fala das vivências coletivas enquanto uma pessoa negra, logo, o racismo é uma temática recorrente. As músicas tratam daquilo que é extremamente doloroso ao mesmo tempo que é cotidiano. Como foi desenvolver a sonoridade do álbum, levando em conta o diálogo com essas temáticas?
A sonoridade do álbum foi concebida há cinco mãos, cinco músico trouxeram muito de suas referências para o trabalho: o produtor e percussionista Sebastian Notini, um sueco radicado há dez anos Brasil; Aniel Somellian, que é cubano, no baixo elétrico e acústico; François Muleka que é um multi instrumentista e compositor nascido em São Paulo e filho de imigrantes congoleses; Daniel Rudson, baiano, na percussão; e Kato Change, nas guitarras, que é do Quênia. A sonoridade foi construída a partir de cada um desses elementos, os arranjos foram pensados coletivamente, eles criaram junto comigo, por isso a sonoridade é muito particular. São diferentes países, diferentes diásporas e várias referências musicais unidas no disco. Eu acredito muito que a canção nasce com um sentido só, que a música tem uma alma. Quando “Cabô” nasceu, quando “Um Corpo no Mundo” nasceu, a letra chamou um determinado tipo de melodia e de acorde que coadunam com com a narrativa da canção. A música já nasce pronta, completa, trazendo os elementos que ela precisa para existir. Quando a gente foi arranjar, ela já tinha um desenho, o que a gente faz é só respeitar a essência de cada canção. Não é algo muito racional.
Que sentidos a sua música e a sua arte dão para a sua luta?
Cantar e escrever foi, é e tem sido o jeito de existir nessa nessa sociedade e no mundo. Eu sou uma mulher preta que canta e escreve. Essa escrita e canto são reflexos desse olhar, desse indivíduo que é feminino, que é negro, que é nordestino, que é dissidente da heterossexualidade. É a leitura de toda essa subjetividade. E aonde a militância entra? Enquanto pessoas negras, temos a necessidade de trazer para si a responsabilidade com a luta, que é anterior à nossa existências, mas que nos possibilitou estar aqui hoje existindo. Teve um indivíduo negro que resistiu a horas de viagem em condições inóspitas, que resistiu ao trabalho escravo, que resistiu à servidão, à pobreza… houveram várias resistências e lutas anteriores para eu existir aqui como cantora e compositora. O que eu entendo é que cada pessoa negra, independente do que faça na vida, tem que trazer para si essas responsabilidade de uma história de luta e resistência. A minha existência na terra é reflexo dessa continuidade. Não milito porque meus pais são militantes ou porque, com as redes sociais, todo mundo é militante. Eu já nasci militando. Eu sou fruto de uma militância desde o sequestro da África. Uma mulher negra, um indivíduo negro, já nasce militando, nasce tendo que dar conta das opressões.
A sua relação com a escrita é muito latente. Eu percebo que a escrita muitas vezes dá um amparo para esta sobrevivência do indivíduo negro, vejo isso nas rimas de rappers negros e negras e na literatura, como a obra da escritora Carolina Maria de Jesus. Você já pensou no porquê da escrita? Por que ela foi a melhor forma de desaguar as suas reflexões?
Acredito que a escrita tem essa força porque é silenciosa. Acho que nos foi negada a fala, a voz, a expressão. É arriscado para nós, mulheres negras, falar sobre as nossas questões, se expressar, porque sempre tivemos que trabalhar, garantir a subsistência; não podíamos questionar ou debater, tínhamos que ficar em silêncio o tempo todo. O silêncio é um ponto de partida. A escrita vem como esse grito silencioso. A gente coloca no papel toda a nossa dor, indignação ou desejo, qualquer coisa que se passe em nossa existência, porque no papel é menos arriscado. Eu tenho essa teoria. Comecei a escrever por conta disso, estudei em um colégio particular – um ambiente super inóspito – e ficava muito do lugar de ouvinte porque a minha vida não era tão interessante para o outro. Conversava pouco, a questão de laços afetivos foi complicada para mim. Aí eu comecei a usar a imaginação, minha escrita era muito criativa com histórias que não vivi, desabafos, dúvidas, desejos. A gente vive em uma sociedade opressora que não quer nos escutar, que nos cala literalmente, sob arma, como aconteceu com a Marielle. Então, qual é o lugar em que a gente pode ser livre para se expressar? É a escrita.
Você é herdeira da diáspora africana e ao mesmo tempo está em diáspora nordestina. Como essas experiências se articulam?
Ter saído de Salvador e vindo para São Paulo me deu uma visão micro do que é macro. A experiência de ser um corpo preto em diáspora no mundo tomou outra dimensão depois que vim para cá. Saí da cidade mais preta fora da África, uma cidade em que me sentia confortável, quase como um espelho, e vim para SP que passa por um embranquecimento muito forte. Isso me impactou bastante, porque eu estava acostumada com outra dinâmica, outra estética. Foi assim que comecei a pensar sobre o meu lugar, o lugar desse corpo negro no mundo, trouxe uma reflexão transcontinental. O lugar desse corpo é o lugar do não pertencimento, é um não-lugar, porque a gente tá num país que a gente construiu materialmente e culturalmente, mas que não goza de direitos, riquezas e que está nos dizendo o tempo todo que somos corpos indesejáveis. A gente passa por um processo de extermínio e higienização desde a abolição da escravatura. Ao mesmo tempo, dessas Áfricas que vieram para cá construir esse país, para qual dessas Áfricas eu vou retornar? Qual dessa Áfricas me pertence? Quem era meu tataravô? Minha bisavó? Que línguas eles falavam? O que dançavam? Ter feito essa migração trouxe essa reflexão sobre essa crise identitária, esse questionamento sobre o lugar desse corpo negro diaspórico no mundo. Cheguei à conclusão de que eu não sou daqui. Se eu não sou daqui e também não tenho para onde retornar, eu sou um corpo no mundo. Esse trabalho nasce dessa conclusão. Somos corpos em diáspora.
Luedji, você traz muito a questão dos não-lugares, de ocupar espaços não comuns. Agora, o seu trabalho se tornou uma referência para pessoas que também buscam por suas origens e se identificam com a vivência em diáspora. Como é estar nesse lugar, agora, e ser uma referência?
Eu acho que é um lugar nosso. É referência porque eu tô falando de um corpo coletivo. Quando eu falo do meu corpo negro no mundo, quando eu o canto, eu tô cantando vários corpos. Eu vejo isso com muita naturalidade porque eu sei que esse “eu” é “nós”. Sempre foi assim, desde África, e continua sendo. Eu fico tranquila porque tô sendo eu mesma.