Entrevista | Diretor de “Narciso em Férias” fala sobre os desafios do filme

31/08/2020

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Isabela Yu

Por: Isabela Yu

Fotos: Divulgação

31/08/2020

O único filme brasileiro confirmado na programação do 77º Festival de Veneza, que acontece entre 2 a 12 de setembro, na Itália, fala sobre um período delicado na vida do músico Caetano Veloso. Em 1968, o artista foi preso pela ditadura, ao lado do amigo Gilberto Gil, fato que culminou no exílio da dupla em Londres. 

O documentário Narciso em Férias surge após um desconforto de Caetano Veloso com as últimas eleições, que motivaram sua esposa e produtora Paula Lavigne a levar o projeto adiante. O trabalho tem a direção assinada pela dupla Renato Terra e Ricardo Calil, também conhecidos por Uma Noite em 67 (2010), e produção de Lavigne e da produtora VideoFilmes, de Walter e João Moreira Salles

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Os 54 dias no cárcere foram o suficiente para um trauma capaz de marcar uma vida inteira. Na noite de 27 de dezembro de 1968, apenas 14 dias depois da AI-5, Caetano e Gil foram sequestrados de suas casas em São Paulo sem receber explicações. Ficaram em solitárias nos primeiros dias, foram privados de seus direitos, e a censura também proibiu a imprensa de comentar o ocorrido. 

“Eu tinha que comer ali no chão mesmo. Isso durou uma semana, mas pareceu uma eternidade. Eu comecei a achar que a vida era aquilo ali. Só aquilo. E que a lembrança do apartamento, dos shows, da vida lá fora era uma espécie de sonho que eu tinha tido. Me lembro muito de uma frase que o Rogério Duarte me disse logo que eu fui solto: ‘Quando a gente é preso, é preso para sempre’. Acho que é assim mesmo”, diz Caetano no documentário.

O título “Narciso em Férias” vem do livro Este Lado do Paraíso (1920), do americano F. Scott Fitzgerald, e também é o nome do capítulo dedicado a prisão no autobiográfico Verdade Tropical (1997). Uma brincadeira de Caetano com o fato de ter passado quase dois meses se olhar no espelho. Com muitas ressalvas, há paralelos do momento que vivemos em 2020 com o período autoritário da ditadura. Por esse e outros motivos, é necessário revisitar as memórias doloridas do passado para que isso não se repita no futuro. Além de estrear no dia 7 de setembro no Festival de Veneza, o documentário também foi comprado pela Globoplay, que deve exibir o filme nos próximos meses. 

Leia a entrevista com o diretor Renato Terra sobre Narciso em Férias

Desde quando existe a vontade de gravar o documentário? 

A ideia surgiu da Paula Lavigne em 2018. Ela notou que o Caetano estava mexido com as eleições presidenciais e que essa história da prisão vinha visitando ele. Paula achou que era o momento ideal para o Caetano contar os detalhes. Filmamos pouco antes do primeiro turno das eleições em 2018 e o filme ficou pronto em janeiro de 2020.

Quais foram os desafios na hora de editar o filme? Vocês encontraram muito material de arquivo? 

A gente fez uma pesquisa extensa. Encontramos fotos, matérias de jornais de 1968. Mas optamos por não usar nenhum material de arquivo. O grande desafio foi encarar a ideia de que o filme seria só com o Caetano Veloso relembrando cada detalhe da sua prisão. Essa opção minimalista tem o intuito de provocar uma imersão no depoimento dele. Cada silêncio, cada hesitação estão acentuadas. Assim como sua maneira de falar, gesticular, olhar. É um filme sobre um cantor de quase 80 anos revisitando – à sua maneira – as memórias de sua prisão aos 26 anos. O relato de Caetano tem poesia, humor e é incrivelmente rico em detalhes. 

Na hora de conduzir as entrevistas, li que Caetano se emocionou em alguns momentos, como vocês organizaram o roteiro de perguntas? 

Eu e o Ricardo Calil fizemos uma longa pesquisa. Partimos do capítulo “Narciso em Férias” do livro Verdade Tropical (1997), mas estendemos para jornais, revistas e relatórios secretos da época. Colocamos tudo isso num papel. No dia da entrevista, eu memorizei todos os pontos que deveríamos abordar e o Ricardo Calil ficou perto de mim com um papel. Dessa maneira, eu conseguia olhar nos olhos do Caetano e prestei muita atenção em suas pausas, silêncios, no seu corpo inteiro falando. Caso eu esquecesse alguma coisa, o Ricardo Calil estava ali perto para me lembrar. Aprendi com o João Moreira Salles e com o Eduardo Coutinho que a dinâmica de uma entrevista para documentário é preciosa. Tudo ali importa. E importa muito o que acontece no encontro entre entrevistador e personagem. Olhar para um papel se preocupar com a próxima pergunta, aprendi com eles, é a maneira errada de conduzir uma entrevista em um filme.

Ainda mais sendo um assunto delicado, há passagens que vocês decidiram deixar de fora pela carga emocional? 

Não deixamos nada de fora por causa da carga emocional. Fizemos uma entrevista de cinco ou seis horas e editamos para um filme que tem cerca de 85 minutos. Foi uma edição complexa porque todo detalhe importava. A escolha do corte, do plano aberto, do plano fechado. Por optarmos por um formato minimalista, cada detalhe ganhou relevância. E tudo foi tratado, pensado com lupa. Fizemos um primeiro corte e mandamos para o Caetano. Ele aprovou sem muitas ressalvas.

De que maneiras o clima político da época da prisão se assemelha com o momento em que vivemos? 

É bem diferente. Em 1968, depois do AI-5, o Congresso foi fechado, a tortura institucionalizada, a imprensa censurada. Pessoas eram presas sem saber o motivo. E continuavam presas, eram torturadas, sem saber o motivo. Era uma escada de brutalidade bem diferente do que acontece hoje. Mas houve um caminho percorrido para se chegar na imbecilidade que reinou em 1968. Uma polarização enorme, a ameaça e o medo eram, a todo instante, alimentados na sociedade.  Esse caminho percorrido guarda semelhanças com o que estamos vivendo hoje.

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31/08/2020

Isabela Yu

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