Entrevista | Ed Motta e suas histórias pra hora do chá

06/11/2023

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Por: Erick Bonder

Fotos: Bispo/ Divulgação

06/11/2023

Há poucas semanas, Ed Motta lançou o décimo quarto álbum de sua carreira, Behind The Tea Chronicles, cheio de groove e referências cinematográficas. Acompanhado por arranjos orquestrais, o carioca passeia com elegância pelo jazz, soul e funk. “Tem um elemento forte brasileiro junto com os acordes desses gêneros”, comentou Ed em entrevista à NOIZE.

Ed assina como cantor, compositor, arranjador e produtor do álbum, além de também tocar percussão e xilofone em algumas faixas. “Tem uma organização que o tempo me ensinou”, falou o artista sobre os processos no estúdio e fora dele para organizar todas essas demandas.

Além de estar disponível nas plataformas digitais, o trabalho também ganhou versão em vinil e CD, em versão brasileira, europeia e japonesa. Ed é um grande colecionador de discos e conta que desde criança os LPs têm um papel central na sua vida. Minha vontade de fazer música se confunde com minha vontade de fazer vinil. Minha vontade de fazer música é para virar um vinil”, declarou.

“São histórias sobre máfia, sabotagem, conspiração. Tem um tom crítico em todas elas, mas não quero que as histórias estejam presas nisso. O papel de uma história é contar uma história”, falou Ed sobre as letras das músicas. Nos últimos anos, o cantor ganhou popularidade na internet justamente por contar histórias, muitas vezes polêmicas, em lives nas suas redes sociais. Abaixo, leia a ideia que trocamos com ele: 


Primeiro, Ed, eu recebi aqui o disco e tá lindo, cara. Então, vamos começar pelo vinil. Queria saber, por que lançar hoje o novo álbum em LP já na sua estreia? Qual a importância dessa mídia hoje em dia e qual a importância dessa mídia na sua vida, na sua obra?

*

O disco sai com três versões. Tem a versão brasileira, a versão alemã da MPS e a versão japonesa. É o primeiro disco meu com vinil japonês, que eu consegui fazer um vinil japonês. Eu tô há anos querendo isso, cara, e não consigo. Sempre “sei lá o quê, isso não é possível”. Ficou possível quando eu virei capitão, né? Foi meu selo que fez o disco. Eu que comandei tudo, todos os contratos, então ficou claro. Falei: “Isso aqui é uma coisa importante para mim”. Eu queria tanto ter um vinil em uma edição japonesa… Tem aquele papel, aquela gramatura, tudo. Eles botam para quebrar no vinil, né, cara?

E para mim tem um outro elemento. É uma questão de respeito sempre lançar o vinil junto. No dia que saiu no digital, o vinil já estava pronto. E isso é uma coisa difícil, demorei um tempo para conseguir entrar nas filas das fábricas na Europa, no Brasil. Tudo é difícil. Eu coleciono discos desde garoto, desde moleque. Fui criado dentro de sebo de discos. No bairro em que eu cresci no Rio, na Tijuca, fora o Centro do Rio de Janeiro, é o bairro que tem mais lojas de discos. E na época, nos anos 80, eram muitos LPs de rock, essa coisa toda. Então, minha vontade de fazer música se confunde com minha vontade de fazer vinil. Minha vontade de fazer música é para virar um vinil. Desde garoto. Eu me lembro quando lancei meu primeiro disco mesmo. Peguei aquele LP na mão e disse: “Caramba, eu vou estar aqui junto com esses outros discos que eu gosto. Eu também sou um disco agora”. Poxa vida, até hoje tem essa sensação. Sinto igualzinho, como se fosse o primeiro.


Falando do álbum novo, vi você comentando que, com esse trabalho, você quer contar histórias. E o próprio nome do disco remete a isso, algo como “Crônicas pra hora do chá”. Pode falar um pouquinho mais sobre isso?

Sim, são histórias. Elas têm um viés cinematográfico e também da literatura de ficção científica. Uma série de coisas me influenciaram, por exemplo, séries de TV. As séries de TV que eu cresci vendo, que eram dos anos 1970. Eu nasci em 1971. Então eu vi muita coisa nos anos 70. E cada música do álbum tem uma história particular, né? Elas não têm um fio condutor. Quer dizer, acaba que têm um pouco, todas elas são histórias sobre máfia, sabotagem, conspiração. Tem um tom crítico em todas elas, um viés crítico. Mas falar isso tira o encanto do texto. Tira o encanto da história, porque não quero que a história esteja presa em ter um papel crítico. O papel de uma história é contar uma história.

Quer dizer que, ao mesmo tempo que tem esse papel crítico, você não quer que seja panfletário, por assim dizer?

Isso! De jeito nenhum. Não quero que a arte esteja limitada a isso. Não é arte stalinista. Adoro, por exemplo, o Cinema Operário Russo e a tal da Arte Operária. Muita gente critica, mas tem coisas brilhantes. O Eisenstein, com “Outubro”, “Encouraçado Potemkin”, “Alexandre Nevsky”. Tem o Dziga Vertov e mais uma turma toda aí. Essa época foi muito progressista, apesar de compositores, como o Shostakovich, serem trilheiros do Stalin, né? O cara fazia o soundtrack do regime.


O disco passeia pelo jazz, pelo R&B, pelo soul, que são gêneros advindos da música negra norte-americana, mas são tocados no mundo inteiro. Ocorreu a universalização dos gêneros e, aqui no Brasil, tem músicos muito importantes que construíram as suas obras em cima dessas modalidades. Você poderia comentar um pouco a diferença entre a produção brasileira e norte-americana e como você realiza esse diálogo e essa interlocução na sua obra?

É. A música que abre o disco, “Newsroom Costumers” começa com uma orquestra. Mas depois entram um tema cheio de percussões que é praticamente um afoxé. Ritmicamente, ela tem um elemento que é um entendimento brasileiro da rítmica africana. Já é um entendimento, já é uma decupagem brasileira de uma clave africana, digamos assim. Essa música tem agogô, tem triângulo, tem uma série de elementos que eu nunca tinha usado. Tem um elemento forte brasileiro junto com os acordes do soul, do jazz e tal. É uma mistura interessante, porque está bastante ali a rítmica do Marku Ribas, do João Donato e de tantas outras coisas. Mas esses dois me vêm à mente de imediato.

E a gente comentava mesmo no estúdio quando estava gravando. Depois que ficou pronta, quando começamos a ouvir, a gente ficou: “Puta, aqui tá meio Marku, não?”. Mas principalmente o Donato. Ficou bem donatiano: aquele negócio meio latino, meio caribenho, esse namoro que ele tinha com uma música do nordeste misturada com jazz. Eu acho que essa música tem isso pela primeira vez na minha obra. Na verdade, eu já tinha feito isso numa música que chama “Jóia de Mágoa” que, no lugar da bateria, gravei com zabumba. Mas isso foi há 23 anos atrás.

As letras do disco são em inglês e o material de divulgação também. Você está lançando o álbum com diversas versões (brasileira, europeia, japonesa). Ele é voltado para o mercado estrangeiro? E você tem uma carreira internacional super forte, consolidada. Qual você acha que é a diferença entre a forma que sua obra é vista aqui e lá fora?

Eu sinceramente não posso dizer que é um disco dirigido para o mercado de fora. Porque, por exemplo, sei lá, quando o Scorpions grava um disco, eles querem vender na Alemanha também. Eles querem fazer shows na Alemanha, se expressar na Alemanha. O a-ha quer tocar na Suécia, o Bruno Mars quer tocar no Havaí. Então, pra mim, eu não vejo isso. A música brasileira é muito importante mundialmente e tem uma importância no texto, na letra, que é comparável à música francesa. O texto da música brasileira é importante. Na música norte-americana existem textos importantes e tal, mas na música popular tem muita coisa com texto muito simples, com menor importância, né?

Então existe uma coisa, não só na música brasileira, mas com a língua espanhola também. As línguas latinas carregam essa coisa de um orgulho de si, da sua literatura. Então, se chega um engraçadinho cantando em inglês, tem algum problema, entendeu? Eu sempre digo que é transnacionalidade, cara. Eu digo que eu tenho transnacionalidade. Sempre tive né, mas isso é uma grande piada. A escolha pelo inglês não é mercadológica, é sonora. Se dependesse de mim, teria sido assim todos os meus discos. Porque é como eu escuto minha música e a maior parte do que eu escuto é dentro desse idioma e estética. Isso é o que o indivíduo quer. A gente escuta música e aprende coisas com o que a gente gosta.


No álbum você atua como compositor, produtor e arranjador. Então, a coisa está bem centrada em você, apesar de ter parcerias nos arranjos e na direção musical. Qual foi o processo de criação do álbum, desde a composição até a escolha do repertório e por aí vai?

Bom, o repertório… Compor é um hábito. Então, sempre tem música nova, em estilos diferentes. Aparece uma valsa, aparece um tema meio country. Aparece de tudo. Vai aparecendo e eu vou guardando, em um gravadorzinho. Tem várias fitas de vários anos aqui. E tem coisas que eu misturo uma com a outra. Às vezes algo completamente novo que misturo com algo do meu acervo. “Poxa, agora é a hora de realizar essa música”.

Então o processo, depois da música, pra mim, é o texto. Eu perguntei sobre isso pro Chico Buarque: “Chico, como é que você faz?”. Devido à complexidade da música dele, eu falei: “Você faz a letra depois, né?”. E ele me confirmou que, sim, faz a letra depois. Era óbvio, porque a música é muito complexa, essas notas de “Morro Dois Irmão”, por exemplo, quando ele canta: “Dois Irmãos, quando vai alta a madrugada/ E a teus pés vão-se encostar os instrumentos”. São muitos Chico Xavier juntos. É impossível, são 10 Kardec juntos. Não tem como. Então, é um de cada vez.

E a gravação, na verdade, é o processo que eu faço desde o meu primeiro disco, o que foi feito agora de arranjo, de tudo. Só que tem uma organização que o tempo me ensinou. Tipo, o material, já deixamos tudo escrito. Quando vamos passar com a banda, eles já têm o demo-tape e ainda têm a partitura. 


Inclusive, eu queria perguntar sobre os arranjos. Como você disse, tem bastante percussão no disco e ao mesmo tempo tem instrumentos como a harpa, o clarinete, o Rhodes, que são marcantes de momentos altos dos gêneros sobre os quais já conversamos. Como foram essas decisões para os arranjos? E a escolha dos músicos: são profissionais com os quais você trabalha há tempo já ou foi específico pra esse trabalho?

Na hora da escolha dos profissionais, eu sou extremamente frio. Eu escolho  quem é o melhor. Qual é o melhor exatamente para o que eu preciso? Quer dizer, o melhor não é o melhor esteticamente, idiomaticamente, para aquela música específica. “Ah, é Fulano”. Mas não tem uma coisa assim: “Ah, não sei quem é super gente boa, chama ele!”. Tem pessoas da música que eu convivo com quem eu nunca trabalhei e tem pessoas que eu trabalho, mas nunca convivi com elas. Isso para mim é bastante pragmático, objetivo. A gravação e a relação toda de gravar. É um compromisso com a música.

Tem um disco do famoso Stan Kenton, que é o cara que influenciou a Bossa Nova, Stan Kenton and The Big Band. Os caras da bossa nova, todo mundo ouvia pra caramba. João Gilberto, Menescal, Nara todo mundo ouvia o Stan Kenton. Aí tem um disco dele que ele fala: “This is an orchestra. A group of musicians gethered together despite personal differences” [“Isto é uma orquestra. Um grupo de músicos reunidos apesar das diferenças pessoais”]. Assim é o pessoal dos Estados Unidos, né, cara. Eles fazem um monte de coisa errada, são racistas, mas no lance da arte, é esse pragmatismo, militarismo. Se é na Inglaterra, já tem que ter um mês de convívio, tem que beber vários pints de Guinness juntos, ficar amigo, brigar, depois ficar amigo de novo. Com os americanos é diferente, é tudo bem objetivado.

Isso é uma caricatura da América do Norte, mas que tem muita relação com a minha forma de atuar. Meu modus operandis passa por essa coisa extremamente objetiva. Se tem uma gravação e o baixista ficou com dor de barriga, a gente tem que trocar, arrumar outro, chamar alguém. E não é chamar um cara porque ele vai adorar gravar e é gente boa pra caramba. Não, não, não. Isso nunca teve desde o começo da minha carreira. É assim mais no rock, né? Eu sei porque eu sou fã de rock, tenho discos de rock para caramba, uma coleção imensa. Então eu sei que o modo de relação é completamente diferente, tem a coisa do convívio, tem tudo isso.

No meu caso é totalmente orquestra. Ensaiar, gravar, passar no caixa e receber. A coisa é profissionalizada. Tanto que quando termina de gravar, ninguém fica. “Ah, agora vou ficar aqui ouvindo”. “Não, você fez sua parte, agora tem que sair porque outro coleguinha que vai fazer outra coisa e precisa ser cuidado com extremo zelo”. Isso é difícil, aqui no Brasil, cara. Não está no idioma do país trabalhar desse jeito, você fica com uma fama de tirano a cada disco que você faz.


E para arrematar, quais as suas expectativas sobre o álbum e quais os planos de divulgação, shows, viagens, etc.?

Tem duas turnês já marcadas para o ano que vem no território europeu, que é onde está a MPS, a gravadora principal desse disco. O Baden [Powell] gravou um monte de discos na MPS, sei lá quantos, os últimos dele, todos. Outros brasileiros gravaram lá, o Maurício Einhorn tem até uma faixa com o Marku Ribas cantando sem letra. É do disco chamado ME. Olha que coincidência, rapaz… Esse é o selo que é considerado, vamos dizer, uma Blue Note europeia, o MPS Label. Os DJs tocam os sons da MPS, sampleando, há muitos anos. É um negócio hype há um tempão. Os ingleses adoram. Às vezes, só o fato de ser MPS já é o bastante. “Wow, you know Ed Motta? He came out with a new one, from MPS” [“Uau, sabe o Ed Motta? Ele lançou um disco novo, da MPS”] e já é enough, o cara nem precisa escutar e já gostou.

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06/11/2023

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Erick Bonder