Costurado por uma trama de texturas e delicados silêncios, Tetein (2023), o novo álbum de Ian Ramil, reapresenta o artista para seu público cativo e chega como uma das grandes surpresas de 2023 para ouvintes de primeira viagem. O terceiro disco do compositor gaúcho sucede Derivacivilização (2015) — vencedor do Grammy Latino na categoria de Melhor Disco de Rock em Língua Portuguesa —, e os oito anos que se passaram estão impressos nas doze faixas do álbum mais recente.
Tetein é um disco íntimo, uma vez que seu processo de composição, gravação e lançamento esteve atravessado pela experiência da paternidade da primeira filha do artista, Nina. Por outro lado, é um trabalho absolutamente global, em diálogo com as tensões sociais latentes. “Ao mesmo tempo que eu estou vivendo esse mundo infantil, tem um outro mundo que segue acontecendo. E é o mundo que está esperando ela e que me perturba muito. Não virou tudo um mar de rosas, não me tornei o homem perfeito, na família perfeita, e agora tudo é lindo. Não consigo, como artista, como ser humano, não prestar atenção nas coisas que também estão acontecendo enquanto eu estou vivendo essa magia da paternidade, da vida em família, que é tão bonita por um lado, mas que também tem as suas dificuldades internas”, diz Ian na entrevista exclusiva que você lê abaixo.
Uma das faixas que mais sintetiza esta conversa entre os aspectos doméstico e universal do disco é “O Mundo É Meu País”. A composição, escrita em parceria com o artista mineiro LUIZGA, ganha hoje um clipe inédito dirigido e roteirizado por Ian. “Eu fiz essa música pensando nas muitas pessoas que passaram por mim ao longo da vida e se tornaram minha pele, meus gestos e minha imaginação. Algumas dessas pessoas realizaram esse clipe a meu lado e penso nele como uma homenagem a elas, às que não puderam estar fisicamente na filmagem e ao que me tornei por causa delas”, diz Ian. Assista:
O show de lançamento de Tetein acontece no dia 3 de agosto, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre (RS), e irá contar com a participação especial de Vitor Ramil, pai de Ian (ingressos e mais informações aqui).
Dê play no disco e confira abaixo nossa conversa com Ian.
Tetein foi um disco feito na intimidade da casa, cercado de pessoas muito próximas. Como tu vê isso refletido no disco?
É, vem muito dessa vivência em casa, de ter mudado a lógica do funcionamento do cotidiano. Engraçado que é pré-pandêmico, eu fiquei 2019 inteiro dentro de casa, sozinho, fazendo esse disco. E aí depois estourou a pandemia. Quando a Nina nasceu, eu estava numa época de circular bastante com o Deriva, na mesma semana, ela nasceu e o Grammy rolou. Daí entrei no processo de composição, e quando comecei a gravar, passei um ano inteiro encasulado, gravando esse disco. Ele vem muito desse lugar da relação afetiva, de estar com pessoas próximas. Ela mudou muito a minha perspectiva sobre mim mesmo, sobre o mundo. Fiquei menos raivoso, vamos dizer assim. O Deriva é um disco mais raivoso, mais para fora, mais ansioso. Esse vem desse outro lugar, que é uma relação diferente com a vida. Mudou a relação com as coisas. Aquele serzinho, aquele bichinho, totalmente livre de vícios, fez eu olhar para mim de um jeito diferente e me perceber cheio de vícios comportamentais e de coisas que eu não gostava.
E fui mudando mesmo, sem me dar conta. Até que lá pelas tantas eu me dei conta de que, a partir dessas mudanças, eu estava produzindo coisas diferentes, musicalmente falando. E aí lá pelas tantas eu me dei conta de que tinha esse link entre todas essas canções, que todas elas tinham sido feitas a partir do momento que a Nina tinha nascido e vinham desse novo lugar, que estava tomando conta da minha própria personalidade.
Nas temáticas do disco, tem um certo tom de fábula ao redor da vivência com a Nina, esse mundo mágico infantil, da delicadeza, da poesia disso. Mas tem também uma outra dimensão política super forte, falando na “morte da publicidade”, coisas assim. E são duas dimensões bem contrastantes, né?
São bem contrastantes, podem parecer até contraditórias às vezes, mas são permanentemente paralelas e se cruzam todo tempo. Porque ao mesmo tempo que eu tô vivendo esse mundo infantil, da delicadeza e tudo mais, tem um outro mundo que segue acontecendo e que é o mundo que está esperando ela e que me perturba muito. Esses descaminhos todos da civilização ocidental começaram a pulsar diferente, mesmo “Macho-Rey”, “Homem-Bomba”, “Lego Efeito Manada”, elas têm esse universo mais cinza, mais concreto, da cidade, mas já sobre outra ótica. São mais leves do que as coisas do Deriva no geral, em termos de poética, de composição, e também de arranjo, porque já havia também essa outra vontade de construir as coisas de um jeito diferente, em termos de timbre, de arranjos, com mais silêncio, menos menos banda. Achar esse outro caminho.
Mas são mundos totalmente conectados, pra mim são indissociáveis. Não virou tudo um mar de rosas, não virou tudo uma fantasia, não me tornei o homem perfeito, na família perfeita, e agora tudo é lindo. Não consigo, como artista, como ser humano, não prestar atenção nessas coisas que também estão acontecendo enquanto eu estou vivendo essa magia da paternidade, da vida em família, que é tão bonita por um lado, mas que também tem as suas dificuldades internas. É complexa a experiência da vida, são muitos fatores, né? E não foi uma coisa planejada, fui fazendo as canções e, depois, quando fui gravar, é que eu pensei que elas são profundamente conectadas a partir deste ponto de vista novo que surgiu no momento em que eu comecei a me transformar com a presença da Nina.
Uma música que, pra mim, faz uma ponte entre esses mundos é “Macho-Rey”, que fala de um machismo sistêmico, mas também de como isso atravessa a dimensão afetiva e emocional do universo masculino, desde menino, que é um sentido que está ressaltado no clipe.
Acho que é bem por aí. Eu comecei a viajar muito nisso, de quem eu era, porque eu agia como agia. E ao mesmo tempo vendo chegar esse medo de alguns homens, e até algumas mulheres, dessa mudança de paradigma, dessa perda de força do homem branco na sociedade, e muitos lutando para manter isso, indignados com essa transformação do mundo. E essa coisa foi ficando caricata, cada vez mais ridícula, o que era natural até então. A gente começou a ver como eram ridículas certas atitudes do mundo masculino. Essa expectativa mudou em boa parte da sociedade, e tem essa outra parte que luta contra essa mudança de perspectiva da performance masculina. E aí foi isso, de ir percebendo essas coisas. Essa música não tem uma mensagem clara, alguma coisa que queira dizer, mas ela manifesta muitos signos e símbolos e possibilidades de interpretação sobre como os homens se formam, e como eles performam, e como esperam que eles, a gente, haja no mundo.
E como foi o contato com Eliane Brum, que participa do clipe?
Cara, inacreditável. Isso foi surreal. Quando estava escrevendo o roteiro, falei: “Vamos chamar a Eliane Brum”? Porque falava nela na música, e ela é foda, é minha heroína. Aí o pessoal: “Não, não vai dar”… Aí consegui o e-mail dela, mandei e-mail com a música, o roteiro, e ela no mesmo dia respondeu que adorou. Eu adorei a empolgação dela de participar e atuar no clipe. É uma das figuras mais importantes do Brasil, né?
Sobre o “O Mundo É Meu País”, que ganha agora um clipe, como nasceu essa música?
A música foi com o LUIZGA, eu estava em casa lendo um livro da Ariane Mnouchkine, do Théâtre du Soleil, era uma entrevista e pergunta por que ela ficava fazendo peça sobre a guerra civil não sei aonde, e ela falou: “é porque eu sou um ser humano, tudo o que acontece com a humanidade e me diz respeito”. Achei aquilo tão lógico, tão simples. E aí eu anotei: “O mundo é meu país e toda a história é a minha história”. Uma síntese da ideia dela. E fui dormir, no dia seguinte acordei, puxei o celular e estava uma mensagem do Luiz Gabriel, falando: “Vamos compor uma música?”. Aí eu: “Pô, vamos, escrevi isso aqui e é a tua cara”. Aí mandei para ele, na mesma hora ele já mandou a ideia de melodia, e acabamos fazendo a música no WhatsApp mesmo. Uns meses depois a gente se juntou pra finalizar ela.
E é uma música que todo mundo fala que é a mais pop do disco, a música de mais fácil acesso. E é a música que tem talvez movido mais as pessoas, todo mundo me fala muito dessa, do “Bichinho” e “Mil Pares”, são as mais comentadas depois do lançamento do disco. A gente fez o clipe no final do ano passado, com uma microequipe. No finalzinho de dezembro, a gente filmou em Mostardas (RS), viajamos em um carro para lá com cinco pessoas. Chegamos, filmamos, no dia seguinte de novo, e aí depois a gente voltou para Porto Alegre e, chegando aqui, filmamos uma festa aqui em casa. Esse roteiro eu escrevi sozinho, e ele é todo cheio dessas brincadeiras de tempo X espaço, super metafórico.
E como está sendo pra você essa prática de estar fazendo roteiro, criando em outras linguagens?
Está sendo bem instigante e muito satisfatório. É bem cansativo, porque a cabeça tem que funcionar em várias áreas, mas tu vai pegando a prática. No início, foi muito difícil, porque a minha cabeça sempre foi voltada para música, naquela coisa meio grunge, que o cara só que fazer música e foda-se. Mas o pensamento de construir a parte visual do disco a partir da observação da música, fazer uma espécie de tradução ou de complementação visual, é uma coisa que, para mim, era difícil de fazer sobre a minha música, mas eu fazia com a música dos outros. Sempre tive uma relação forte com a imagem, com o cinema, nos anos de estudo de teatro, o que eu mais gostava de fazer era encenar, fazer a direção. Sempre adorei o Surrealismo, sempre gostei dessa quebra de expectativa, gostava de ser surpreendido e ser levado para um lugar antinaturalista. Foi legal botar isso na prática nesses roteiros, viajar. Também tive que aprender a mexer com Photoshop e Premiere a toque de caixa para fazer teaser, desdobramento, não sei o quê. Está sendo legal por um lado, mas agora começaram os ensaios, então preciso focar na parte de construir a música, e é difícil conciliar as coisas.
Quando você lançou o Derivacivilização, oito anos atrás, o cenário era outro, em termos de divulgação de música.
Totalmente. Hoje está super fragmentado, tem umas cinco principais, e o funcionamento delas é muito diferente, tanto o algoritmo quanto a expectativa do público e o formato do que tu vai entregar. É muito mais complexo do que era. Estava todo mundo concentrado no Facebook ainda, e o algoritmo era mais ingênuo e entregava para todo mundo. Hoje é muito difícil. Está cheio de maluco que vive criando conteúdo que o algoritmo entrega mais, porque são coisas fascinantes, o cachorro fazendo não sei o que lá na China, um cara lá na Rússia, são uns vídeos incríveis, tu pode ficar o dia inteiro vendo, aquilo é muito sedutor pro ser humano.
Divulgar o trabalho, não é só, tipo: “Olha aí, galera, o meu trabalho está aqui”. Quem curte, quem já está contigo, vai se interessar, mas pra grande maioria da internet tu é só mais uma pessoa largando conteúdo. Então o disco que eu estou há anos trabalhando tem o mesmo valor ou até menos do que o vídeo do cara escorregando no gelo na Rússia. Tudo está nivelado na internet, no mesmo lugar. É tudo conteúdo. E tu tem que ficar criando conteúdo para tornar o teu trabalho interessante, então a arte está nesse lugar confuso.
Muitos artistas acabam ficando reféns e o processo criativo fica condicionado por essa lógica das redes sociais. Fora que se confunde também com a lógica publicitária. É uma tendência ser conduzido a fazer escolhas artísticas baseado na questão das redes sociais e da publicidade. Tu vai se adequando, e isso é terrível. O mercado não pode reger a arte, a cultura. Se não, a gente vai ficando muito pequeno, muito limitado, sem diversidade cultural, criativa. Vai todo mundo querendo fazer a mesma coisa porque dá certo daquele jeito. É muito cruel, muito difícil a produção artística da atualidade, acho que muito por causa dessa lógica publicitária que impera sobre as coisas. Se tu não te adequa, tu tem que achar teu público, e é cada vez mais difícil chegar em pessoas que já não são o teu público se tu não tiver esse material voltado pra funcionar dentro das redes.
A gente está meio que voltando para a era das grandes corporações, tudo está meio dominado por isso. Se tu tem um grande patrocínio, se tu tá ao lado de uma grande marca, fora a estrutura que isso te dá, só o fato de estar conectado a uma grande marca já dá prestígio diante das pessoas. Tu já entra no hype mais fácil se tu tem ao teu lado uma grande estrutura. Não tem a ver com a qualidade do que se produz, se a música é boa ou ruim, cada vez tem menos a ver com isso, eu acho. Cada vez tem mais a ver com quem é essa pessoa, que posição ela ocupa, se vale a pena parar para ouvir ela, vale a pena prestar atenção no que ela está falando? Porque tem tanta coisa acontecendo que as pessoas estão implorando por essa curadoria inconscientemente.
A coisa do algoritmo das plataformas também, as pessoas não escolhem mais o que elas vão ouvir na grande maioria, elas vão sendo levadas por um algoritmo e vão ali ouvindo. É muito nebuloso. É muito complexa essa teia toda de divulgação da música.
No Derivacivilização tem uma angústia sobre esse cenário todo, e o Tetein já parece algo mais esperançoso, por um lado, considerando que essa realidade também não é eterna. Ao falar de “quando o shopping o queimar” já tem o pressuposto de que um dia o shopping vai queimar.
É, talvez seja uma coisa instintiva mesmo, de um pai, vendo a sua filha crescer nesse mundo e tipo assim: “Tá, não, vai melhorar”. Algo mesmo tempo tem uma coisa utópica meio afrontosa de manifestar as coisas assim. Eu não sei te dizer exatamente, mas eu acho que sim, vem muito por esse outro lado, menos distópica. Acho que sonhar está mais presente nesse disco do que estava no Deriva.
E sobre o som, Tetein é um disco cheio de silêncios. A última faixa tem 2 minutos de silêncio. Como você vê o silêncio enquanto elemento musical?
É, quando a gente vira pai, passa a valorizar o silêncio muito mais (risos). Muda a relação com o ruído, com o barulho, com o som. Eu vinha muito cansado de volume, de bateria, guita, ensaiar com banda, ter que gritar para cantar. Estava cansado disso. Acho que essas duas coisas que são determinantes nessas escolhas estéticas do Tetein, vindo do Deriva, desse lugar super ruidoso, com muitas ideias vindo de fora. Eu queria fazer um trabalho menor, no sentido “tetein” mesmo, de construir com calma. Então passei esse ano todo de 2019 num estudiozinho em casa, gravando as músicas, vendo os andamentos que eu queria.
Eu andava muito interessado já há um tempo no James Blake, ouvi muito, e aí estava nesse processo de fazer o disco dentro dessa ideia de não ter guitarra, não ter baixo, de focar nos violões, quanto menos eu botar de coisa melhor. Só o que precisa para a música, o essencial cada canção e tal, buscando coisas pontuais. Estava interessado nisso. E no meio desse processo, na pela metade de 2019, eu aí conheci a Billie Elish e identifiquei ali uma coisa muito legal, o tipo de pilha era muito parecido. Identifiquei muito, um disco que não tem bateria, não tem guitarra, vai para um outro caminho, mais silencioso, feito em casa. Virei mega fã dela.
Fiquei nesse processo de busca pelo silêncio desde o início. Quando cheguei no estúdio para gravar no final do ano, eu já tinha ideias do que eu queria. “Mil Pares” eu já tinha construído todos esses beats, que vêm acontecendo, e ela é uma música ritualística, ela precisa ter uma coisa humana no final, e nada mais humano do que a percussão. Então já estava nessa cabeça de ter essas percussões no final dela, queria uma coisa bem orgânica no final, pra criar esse contraste dentro dela mesmo, do arranjo. E daí vinha já conversando com o Pedro Dom, pedi para ele fazer um arranjinho pro início de “Lego Efeito Manada”, e aí ele: “Ah, posso escrever pra toda ela?”. “Ah, pode”. Ele escreveu pra toda música, aí ele: “Ah, posso escrever pra essa aqui e essa aqui também”. Aí ele escreveu pro “Tetein”, “Teletransporte”, e “O Mundo É Meu País”.
Essas pessoas foram chegando e somando dentro da ideia do disco que eu faria. Porque no início era um disco que eu ia fazer low profile total, tudo em casa, gravar tudo com meu equipamento, ia jogar na internet e ia fazer fazer outra coisa. Essa era a ideia inicial do disco. Daí eu chamei um amigo meu português, o César Couto, e ele começou a botar essa pilha de tentar construir um troço maior. As pessoas foram me dizendo, e eu fui entrando nesse universo, mais ambicioso sobre o disco.
Tem um processo de abandonar a autossabotagem, que sempre foi muito presente para mim. Sempre tive uma coisa de nunca gostar de mim mesmo, nunca gostar das coisas que eu fazia, de sempre ter uma insatisfação permanente sobre as coisas, de estar sempre não achando que eu merecia fazer isso, ganhar não sei o quê… Essa pegada grunge mesmo: “Ah, eu faço aí”. E aí comecei a pensar: “Não, peraí, o que eu faço é bom, é legal mesmo, tem que valorizar esse negócio”. Aprendi muito com a Nina e com essas pessoas que ficaram botando essa pilha e fazendo eu enxergar como era bom aquilo ali que eu estava fazendo.
Mas também muito com a Nina de perceber que eu podia ser amado, que eu merecia ser amado, eventualmente. Porque eu ficava olhando muito para as minhas imperfeições, para o que eu não era, como eu não conseguia gostar de mim, nunca me amava, nunca soube ser amado, ter fã, as pessoas gostarem de mim, eu botava sempre um defeito (risos) A autossabotagem no sentido mais cru. De não se permitir ser amado, basicamente isso. Daí esse processo todo fez com que eu começasse a ter amor próprio mais, e amar as coisas que eu faço, de um jeito mais leve.
E olhar para as coisas de um jeito mais leve e ao mesmo tempo mais ambicioso também, de ir atrás, baixar a cabeça e tentar ir por esse outro lado também. Quando tu te dedica pra caralho para construir um universo em torno de algo que tu fez, e dedica muita atenção e energia, simultaneamente que tu cria mais esse universo, te dedica mais, mas tu aumenta também a tua expectativa sobre como aquilo vai ser recebido, né? Então a chance de tu te frustrar é maior. Então, talvez seja uma autodefesa também essa coisa de nunca esperar muito do que eu faço, sempre foi meio assim. E esse disco foi bastante uma virada dessa perspectiva sobe mim mesmo, sobre a minha obra, nesse sentido de: “Não, é isso mesmo, o que eu faço é bom e eu vou me dedicar por todos os lados pra fazer esse troço chegar nas pessoas e acontecer além do que aconteceu até agora”.
Sim. É evidente esse tom mais afetivo no teu trabalho. Ao colocar a tua filha em destaque, o disco me parece que vira uma mensagem na garrafa pra ela no futuro, sabe? Uma cápsula do tempo, um registro da relação de vocês hoje. E um dia ela vai ouvir sendo adulta, né? Como tu imagina isso?
A que ela mais gosta do disco é “Mil Pares”, que começa com ela, com o som do coração dela batendo. O primeiro som que eu ouvi dela foi aquele coração batendo numa ultrassonografia, quando ela tinha um mês e pouquinho, ela tinha 1,3 cm de tamanho e saiu aquele som nos falantes da clínica. Eu fiquei perplexo com aquele negócio.
É curioso… Eu penso muito sobre esse negócio, porque se por um lado ela está super presente nesse imaginário do disco, por outro lado, a gente sempre preservou muito a identidade dela, a imagem dela. Por exemplo, nunca postamos nas redes sociais a cara dela. Tem isso, ela está exposta no disco, mas não está. Eu falo dela, ela está presente fazendo os vídeos comigo, mas ela não aparece. Ela se torna uma espécie de ser imaginário para as pessoas, porque ninguém viu o rosto dela, tirando família e amigos.
Eu não sei te dizer sobre essa medida, porque não é um disco sobre a Nina, ele é muito influenciado por ela. “Bichinho” é uma música sobre ela, “Cantiga de Nina” é uma música que eu fiz para ela, “Teletransporte” é um alerta que eu escrevi numa tarde em que eu estava com ela, e me levou pra essa pilha de voltar pra minha infância e ver momentos da minha infância. “Mas “Tetein” é uma observação sobre a nossa vida em casa, sobe mim mesmo dentro dessa vida. De resto, elas são influenciadas pela Nina, mas não são sobre a Nina.
Mas acho que vai ser curioso, respondendo a tua pergunta. Quando for aquele momento em que a gente olha os pais de fora, quando sai de casa e vê a nossa casa de fora, talvez vá ser curioso para ela ouvir esse disco. Nesse momento, talvez mude a perspectiva, talvez seja nesse ponto que esse disco vai se tornar uma garrafa no mar. Eu me lembro de sair de casa e mudar muito minha perspectiva sobre meus pais, mudou muito a visão que eu tinha sobre o funcionamento deles entre eles, comigo, com a minha irmã, com a casa, com tudo. Quando tu vê de fora, tu pinta esse quadro. Eu acho que nesse momento vai ser o momento em que ela vai ouvir o disco e perceber de uma maneira diferente.
E como está sendo o trabalho de levar o disco para o palco?
Está sendo um barato, a gente começou os ensaios semana passada. Eu montei a banda com o Pedro Petracco e o Bruno Vargas, dois puta músicos, e aí a gente está nessa descoberta de ver como é que a gente vai construir esse disco ao vivo. Porque é cheio de elementos, de cores diferentes, de várias ordens, não é um disco de banda como era o Deriva. É um disco que tem um monte de coros massivos de 20 vozes, arranjos de cordas, enfim, mil coloridos, mil elementos diferentes.
Como é que a gente vai montar isso sem se prender exatamente nos arranjos do disco, sem querer fazer igual – porque se não vai virar um playback, quase -, mas ao mesmo tempo, mantendo a essência desses arranjos, escolhendo que elementos são muito importantes para estar e como é que a gente vai construir eles. O Petracco é muito bom com programações e samplers, boa parte ele sampleia, recorta e ele toca nas controladoras dele. Os guris são muito bons de vocais, então a gente está trabalhando bem esses vocais também.
Então, vai ter essa construção nesse sentido. Nos outros shows também, a gente está ainda fechando essas turnêzinha do disco, e a ideia é sempre trazer pessoas do lugar para somar. Convidar um percussa para fazer algumas canções, tocar o final de “Mil Pares” e “Cantiga de Nina”, por exemplo. Aqui em Porto, o Júlio Rizzo vai tocar trombone, a Clarissa Ferreira vai tocar violino, então eles vão fazer uma espécie de mini orquestra, eles vão ficar os dois tocando essas músicas que tem os arranjos de sopro e de cordas junto com o sampler do Petraco, pra trazer uma organicidade para parada. Convidei o João Ortácio pra tocar um 7 cordas, ele está aprendendo a tocar, vai fazer no “Cantiga de Nina”. A Thayan Martins vai fazer percussões. A gente vai fazer um formato que vai se adaptando.
A ideia é essa, a gente não quer fazer igualzinho ao disco, porque a gente tem noção de que não vai ficar, pra isso teria que ter um quarteto de cordas, um quinteto de madeiras, não vai acontecer, pelo menos não agora. E a gente está construindo pra ver como é que a gente faz, sabendo abrir mão de certas coisas. O que é a gente precisa para ter esse groove rolando legal aqui no refrão de “Mil Pares”, por exemplo? A gente vai abrir mão de certas coisas ali e vai construir o groove a partir de outras.
Vou fazer muito show voz e violão também, eu sempre fiz, e é isso, as canções funcionam por si só, elas não dependem daqueles arranjos pra funcionar. Mas a pilha é essa, construir a identidade do disco no palco. Transferir ela para lá e adaptar na realidade. E aqui vai ter a participação do pai, vai ser primeira vez que o pai [Vitor Ramil] canta em um show meu, isso vai ser um troço bem legal também. Foi um disco que eu fiz inspirado pela minha filha e vai ser a primeira vez que o pai participa. A gente já subiu junto no palco várias vezes, eu já participei de show, mas eu nunca tinha convidado ele para participar do show meu. E agora parece fazer todo sentido.
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