Entrevista | Maria Beraldo, entre a força e a doçura

24/09/2018

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Brenda Vidal

Por: Brenda Vidal

Fotos: Vitória Proença

24/09/2018

Maria Beraldo é a prova viva de que docilidade não tem nada a ver com passividade. Embebida na doçura de quem renova sua força no amor – e pelo direito de amar -, ela fortifica sua potência e despende toda a agressividade e resiliência para expor suas lacunas, furar as estruturas que sufocam e resistir.

Aos 30 anos, a cantora, compositora, autora, clarinetista, instrumentista, cavala e sapatão está presente nas listas de lançamentos destaques de 2018 com o disco Cavala, que estreou no mês de maio. Conhecida por parcerias com conceituados nomes da música brasileira, como Arrigo Barnabé, Elza Soares e Iara Rennó, e pelos trabalhos na banda Quartabê e no trio Bolerinho, ela entrega um álbum solo consistente, pesado o suficiente para impactar e suave o suficiente para emocionar.

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Abaixo, leia o papo exclusivo que a NOIZE bateu com a cantora no dia 13 – antes do seu show no Projeto Concha, em Porto Alegre – sobre a produção do disco, os sentidos da “Cavala”, tornar-se pop e resistência.

Você tá na cena musical há um certo tempo, o que faz muita gente enxergar o Cavala como uma consequência natural dessa sua caminhada. Você enxerga assim? Qual foi o gatilho para fazer o disco acontecer?
Essa coisa do “natural” é uma pergunta muito complexa, eu poderia passar umas cinco horas falando sobre isso, sobre o que é natural ou não. Tudo é natural. Existem muitas naturezas e tudo é natureza, na verdade. Mas, eu acho que essa minha natureza como compositora, que é o cerne do meu trabalho solo, se alimenta de todo o meu caminho, de toda a minha trajetória. Então, eu acho que é natural. Ao mesmo tempo, fui bem surpreendida porque não foi uma coisa premeditada ou planejada. Não era uma coisa que eu pensava “Tenho esses grupos e um dia vou ter o meu trabalho solo”, eu não tinha essa vontade, sabe? Foi uma coisa que foi se construindo musicalmente, uma coisa de trajetória. O gatilho foi começar a compor. Eu tenho uma composição de mil anos atrás, de um choro que eu fiz quando tinha 18 anos. Cresci num ambiente musical porque a minha mãe é instrumentista, toca saxofone e flauta, e eu estudo flauta doce desde os seis anos. Estudei vários instrumentos, mas sempre com uma relação próxima ao estudo formal da música, fiz aula de música instrumental desde cedo. A minha mãe é jazzista, a gente até morou um tempo nos Estados Unidos para ela estudar jazz, então eu ouvi muito jazz e muita da chamada “boa música”. Que, na verdade, é uma das boas músicas. Fiz algumas músicas, mas a composição não era uma coisa que tinha rolado muito pra mim. Estudei na Unicamp querendo tocar o clarinete, ser improvisadora, queria estudar escala. E aí, vim pra São Paulo a convite do Arrigo Barnabé. Eu conheci ele lá na Unicamp, quando ele foi ser professor residente por seis meses e, depois de um tempo ele me ligou e falou que queria me chamar pra um trabalho e eu fiquei tipo “oi?!” [ela ri]. Foi uma loucura! Eu já tava nesse trânsito Campinas-São Paulo por outros trabalhos também, mas por esse convite eu fui definitivamente pra São Paulo porque tinha mais ensaios e era uma música que me instigou muito. Acho que o contato com o Arrigo movimentou muita coisa dentro de mim, muita energia, muita mudança, a ponto de eu mudar de cidade. Eu mudei de cidade e essa cidade trouxe todas essas coisas da metrópole. Eu só tinha morado em Floripa e em Campinas, que são cidades pequenas, então entrar em contato com uma cidade enorme com outro universo foi muito importante pra mim, no sentido da minha saída do armário. Estar longe da minha família, longe de um circuito que da universidade onde todo mundo sabe quem você é, todo mundo te conhece, homofobia clipando…em São Paulo eu tinha referências de mulheres lésbicas, pessoas que são normais, sabe? Eu fiquei “Nossa, dá pra ser então? É normal, então?” Foi um momento de muita transformação pra mim, muito junto da música, porque a música do Arrigo me transformou muito. Ele é muito completo, não é só um músico, é uma pessoa que se relaciona com muitas artes: um músico que pensa o corpo na cena, a palavra. Ele é muito um artista mesmo, sabe? Acho que é uma pessoa realmente muito importante pra história e ter contato com ele foi muito marcante. Eu toco clarinete com ele, que também me botou pra cantar coisas que tinham sido cantadas por várias cantoras que trabalharam com ele, cantoronas assim, como a Suzana Salles!Fui fazer uma aula de canto pra, sei lá, entender melhor mesmo, pra não me machucar também porque cantava coisas agudíssimas, foi uma aventura. Na minha aula de canto com a Regina Machado, que foi a minha professora, comecei a cantar umas coisas de um repertório meio jazz. Ela tem uma escuta muito incrível e percebeu que não tava tendo muito sentido eu cantar aquele repertório e falou “Acho que pra você cantar, você precisa descobrir o que te faz cantar”. Daí, ela me deu cinco discos pra eu ouvir e ver o que acontecia comigo, uma espécie de provocação musical. Eu ouvi o primeiro, que era Jóia (1975) do Caetano Veloso, que eu já tinha ouvido na infância e que faz parte dessa “boa música”. E depois foi muito importante pra mim ter contato com outras músicas, que não fossem essa música desse jeito, por isso que eu digo que existem muitas outras boas músicas, pra mim foi muito importante romper com isso, sabe? Romper com esse estudo formal, com essa música intelectual mesmo, de um ponto de vista mais padrão da intelectualidade, porque eu acho que todas as músicas são intelectuais. Enfim, eu ouvi Joia e não consegui parar para ouvir nem um dos outros cinco. Estudei esse disco muito, tirei todos os violões de Caetano, todas as músicas, e fiquei tocando. Nesse processo de mergulho no Jóia eu compus a minha primeira canção que é “Da Menor Importância”, que é da Cavala, e gostei muito, entendi que eu tinha uma coisa com o violão, com a composição, e aí dei uma mergulhada nisso, muito dentro do universo do Arrigo. Comecei a compor o repertório e, ao mesmo tempo, essa transformação pessoal e a saída do armário permitida pela metrópole, ao meu ver, teve a ver com isso. Minhas primeiras canções são permeadas com muito do que eu preciso dizer. É uma autobiografia esse disco, sabe? Acho que tem muito a ver com um percurso de ficar tanto tempo na música. Eu acho que quando eu cheguei nesse lugar que era totalmente desconhecido porque eu nunca achei que eu seria compositora, eu já fui direto, encontrei uma profundidade de mim, uma intensidade, muito mais denso do que eu tava fazendo antes. Inclusive, me deu a possibilidade de fazer as outras coisas também. Comecei a mostrar pra alguns amigos, e aí levei pra Regina e falei “Fiz essa música… não sei se é horrível, não sei se tá bom” e ela falou, “Faz mais”! Isso me incentivou muito. Comecei a compor mais, comecei a mostrar meio tímida pra alguns amigos, mostrei pro Rodrigo Campos que é um dos meus compositores favoritos e ele adorou também. E isso foi massa. Fiquei com vontade porque são coisas que eu preciso falar pra mais pessoas. Aí eu fiz um show bem pequeno que fomos montando sem pensar em disco, e aí eu pensei “Acho que preciso fazer um disco”. Foi super rápido, entrei em estúdio em fevereiro desse ano e o disco saiu em 30 de maio. Acho muito interessante porque eu sinto que toda a minha bagagem e o meu caminho como instrumentista, todas as coisas que eu estudei, na verdade, são coisas que eu já tava compondo. E mesmo, mais objetivamente, eu estudando os violões do Caetano, estudando a música “Joia”, que tem um material musical que pra mim que é muito impressionante – é muito simples, são dois versos, uma música que é minimalista, uma melodia super simples – e ela é gigante pra mim, nisso eu já tava compondo, esse meu processo tem a ver com eu entrar em contato, eu conseguir expressar, é o aprender e conseguir colocar pra fora, esse é o fluxo. Gravei o disco quando já tava tudo na cabeça, na hora de entrar em estúdio.


Foto: Vitória Proença

Você fazia o show com algumas das músicas que estão no disco e tinha a ideia muito bem construída do que queria na cabeça. Como foi o processo de fazer a Cavala nascer de forma concreta?
Isso foi bem interessante e bem importante pra mim porque, com o show, eu fui chegando na concepção musical, ouvindo muitas coisas e também rompendo com as coisas de bagagem de casa, que é a música considerada erudita. Tanto jazz, como essa canção brasileira Caetano-Gil, que é erudita, que é música de concerto. O meu pai era concertista, em casa tem meio que essa relação com a música. Ao mesmo tempo, meu pai também era antropólogo e colocava Bonde do Tigrão pra gente ouvir sempre, então não era tão fechado. Mas eu não tive uma adolescência de ouvir rock nem pop. Eu sou meio ignorante mesmo nesse sentido, tenho muito o que descobrir. E quando eu fui descobrindo a música pop, eu comecei a namorar a Mariá Portugal, da Quartabê, e ela tem uma estrada super com o pop. Tem essa coisa da galera que mora em São Paulo conhecer muita coisa. Eu ficava indo pra praia, eu subia em árvore. Eu não ficava pesquisando na internet na minha adolescência. Sei lá, a galera de São Paulo conhece tudo. Você conversa com uma pessoa de lá e é referência, referência e referência. E eu sou zero referência. Meio ignorantona. E acho que a ignorância também é uma coisa super preciosa, cada um tem a sua. O contato com a Mariá me trouxe um pouco dessa mistura com o pop, que faltou muito na minha formação e aí eu amei muito. E eu acho que foi a principal referência do meu disco, eu quis fazer um disco pop. E aí eu chamei o Tó [Brandileone], que produziu o disco comigo, ele é um músico incrível que eu conheci meio recentemente. A gente trabalhou juntos e o processo de produção que eu conheci dele era muito a partir da timbragem. E aí nesse flerte com a música pop e com a música eletrônica, que são coisas que eu não conheço muito bem mas que ao mesmo tempo eu tô muito encantada, eu entrei muito. Uma referência muito forte é o disco da Rihanna [Anti (2016)], que nossa, eu engoli! Fiquei seis meses só conseguindo ouvir isso.

Tá, você ouviu o Anti tipo ano passado?
Aham. É um disco muito incrível. Foi o Tó que me mostrou. A gente começou a produzir a “Cavala”, que é o primeiro single, e demoramos alguns meses porque eu nem tinha decidido fazer o disco, pensei em fazer um single mesmo. Nós começamos a nos entender e aí um dia ele me mostrou uma música do Anti, que é meio ela e piano… “Higher”! Eu não conhecia a Rihanna, ouvi essa música e fiquei “Nossa”!É muito foda. Eu fiquei ouvindo esse disco desde o começo e mergulhei muito, virou carro-chefe total do disco. Depois, a gente produziu o “Cavala” e nas férias de verão, em dezembro, decidi que ia gravar um disco antes do disco da Quartabê. Marquei estúdio com o Tó e pensei “Tá, preciso dizer o que vamos fazer, preciso buscar referências”. Passei as férias na casa dos meus pais estudando referências e tal, e eu não conseguia encontrar o que eu queria, foi muito difícil. Eu ouvi muitas coisas mas não sentia que era aquilo. Tinha o disco da Rihanna ali e pensava, “Tá, isso eu quero”. Outra coisa que eu muito interessada é o rap e a música falada, a palavra. E música eletrônica também, porque eu tô um pouco cansada de banda, um pouco cansada de bateria e baixo, guitarra, sei lá, essa sonoridade não era o que eu queria. Conversei muito com o Sérgio Abdalla, que é um amigão meu e um grande músico que tocava comigo o show que eu fazia antes. Então, foi uma pessoa que me ajudou muito a construir esses conceitos do disco. Ele me falou do clipping., que são uns três rappers que tem uma produção incrível com esse grave, esse espaço vazio. Eu ouvi muito também Mykki Blanco, que é outro rapper que tem muito desse espaço sozinho. Eu achava que eu tava procurando isso. Tem a coisa do Jóia também, que é meio que uma referência. Acho que são esses os três pilares, porque eu não queria muita coisa. A princípio, o Tó é quem ia produzir, mas eu fiquei muito junto, então a gente produziu o disco juntos. Eu lembro que quando eu começava a ter muito elemento, eu ficava muito incomodada, tava precisando de uma coisa vazia e preenchida com timbre só, com esse grave e essa coisa pesada, que tem muito da música eletrônica e do rap, que são coisas que não são do meu universo antigo, é tudo muito novo pra mim. Me arrisquei, mas foi muito massa, foi uma criação coletiva mesmo. É uma relação de cumplicidade muito gigante, porque é uma composição, tem que ter uma troca muito fluída. E o Tó, além de ser um engenheiro de produção muito foda e ser muito competente, é uma pessoa que eu confio muito. Muitas das músicas foi pra ele que eu mostrei primeiro. Ele é uma pessoa muito aberta, muita generosa e me ouviu querendo saber muito o que eu queria dizer e topando quebrar todas as expectativas que ele tinha, já que a gente vem de lugares muito diferentes musicalmente, e isso contribuiu muito.


Foto: Vitória Proença


Foto: Vitória Proença

Você carrega uma estética minimalista, mas muito potente. Como foi equilibrar a força de Cavala em um universo de poucos elementos?
Eu acho que os poucos elementos são a força, na verdade. Eu acho muito forte o pouco. A ausência é muito forte, o espaço vazio é muito forte, pelo menos pra mim, nesse momento, o vazio é muito mais forte do que o cheio. E acho que a força da Cavala tem muito a ver comigo, é a minha vida pessoal, é a força que eu encontrei de conseguir ser o que eu sou, que não é uma coisa simples – ainda nem sei o que eu sou. Tinham coisas que eu já era e que eu não podia ser, uma repressão porque rolou muita homofobia na minha infância e na minha adolescência. O meu processo de composição tem total a ver com essa força. Pra você resistir a uma coisa que é muito forte, você tem que ter um impulso muito grande. Não é uma coisa suave, é violência, é muita violência. A “cavala” é muito violenta, acho que a minha vida é uma coisa violenta, eu acho que a vida é violenta por si só. Mas, acho que eu sofri muita violência e a minha agressividade também perpassa uma doçura também porque, ao mesmo tempo, eu tenho uma vida muito tranquila e privilegiada em várias sentidos, então é meio sei lá. A “cavala” tem essa força muito brutal e muito violenta que é um grito, é um rompimento, um extravaso e de alguma maneira isso tá na música. Eu acho que ausência e o vazio tem a ver com isso porque me descobrir lésbica foi muito solitário, é um processo de muito buracos. Cada um tem os seus buracos, mas os meus eu descobri muito uma relação aos meus vazios de me perceber uma pessoa que não poderia ser aquilo. Acho que eu quis colocar não só a minha violência, mas também o vazio que tá necessariamente ligado a essa violência, que é a solidão. Ao mesmo tempo a solidão também é a salvação. Eu acho que todos os opostos são a mesma coisa, se encontram e são complementares. O que pode ser óbvio, mas sinto muito nesse disco que tem essa força e esse vazio da existência, dessa coisa bem objetiva de saída do armário, de como doloroso, sozinho, e ao mesmo tempo que é muito um disco do coletivo.

Você falou muito sobre essa solitude no processo de Cavala, que é um trabalho íntimo que se relaciona com a sua sexualidade e com a apresentação sozinha. Mas, ao mesmo tempo, você fala por uma voz coletiva e tá recebendo um retorno de um público que se identifica com isso. Como essas duas coisas se conectam? Como a Cavala do palco se relaciona com as Cavalas que estão por aí?
A história das mulheres é muito marcada pela solidão e pela união. Esse meu contato com o feminismo que é uma coisa muito recente, nos últimos cinco anos o nosso grupo, o nosso recorte social – em todos os sentidos – descobriu o feminismo mais na prática. Temos falado disso, temos lido sobre isso. E, claro, muitas gerações construíram isso. Mas acho que teve um boom agora, no nosso círculo mesmo, da gente começar a ler mais. Acho que há dez anos eu tinha bem menos consciência política do que eu tenho em relação a hoje, acho que é uma coisa de grupo. As mulheres são historicamente isoladas, as mulheres que construíram isso que a gente pode viver hoje, todas as mulheres que lutaram pelos nossos direitos, por uma vida, por poderem ser pessoas. Muitas das mulheres que construíram essa luta foram queimadas, isoladas politicamente, linchadas, foram mortas. No meu disco tem isso, na música que se chama “Maria” eu falo sobre isso, é um diálogo com o Chico Buarque – não sei se algum dia ele vai ouvir(!) – mas eu tava nesse verão, na casa dos pais, lavando louça e cantando “Para Todos”, que é uma música que eu amo, eu amo Chico. Mas ouvi “Meu pai era paulista, meu avó pernambucano, meu bisavô, meu tataravô…” ele só fala dos homens, toda a árvore genealógica dele é dos homens. No final, ele fala da Clara Nunes, fala das cantoras e musicistas. Mas, o que eu tenho sentido muito fisicamente, é que a minha história é a história das mulheres da minha família e das que não são da minha família. Isso é muito básico, eu só consigo escolher ser uma musicista hoje em dia porque muitas mulheres foram queimadas, resistiram e deram suas vida por isso. E a música “Maria” fala da morte da minha vó, que se matou. E quantas mulheres não se suicidaram nas gerações passadas? E eu acho que o suicídio na verdade é um homicídio porque as mulheres eram condenadas, tinham uma vida de condenação. Ainda têm, ainda temos, umas mais, outras menos. E eu, falando como mulher branca, ainda sou muito privilegiada. Mas, eu acho que tem disso. O meu contato com as mulheres da minha família, eu descobrir que a minha vó tinha se matado, – que é uma coisa meio recente -, tem isso no meu disco. Ao mesmo tempo, tem as pessoas que me fizeram me descobrir. Por exemplo, a “Cavala” é uma música sobre uma menina com quem eu tava tendo um caso amoroso. Não é uma pessoa que foi a minha namorada, e acho importante também poder falar sobre isso, pelo fato de eu ter tido um caso. Acho que só se falam de coisas formais, só pode falar sobre relacionamentos formalizados. “Cavala” é uma música pra uma menina que é a Patrícia Bergantin, ela tava fazendo um espetáculo de dança na época que se chama Égua. Eu fiz a música pra ela e, sei lá porque, saiu “cavala” e não “égua”. Mas era “cavala” no sentido literal. Enfim, tem a minha vó que se matou, tem uma menina com quem eu tive um relacionamento amoroso-sexual, tem o período de descoberta da minha sexualidade fora de um relacionamento estável e que foi importante, tem o nascimento da minha sobrinha, Helena, que é mais uma mulher que transformou a minha vida. A minha irmã Marina é mãe da Helena e da Cecília, eu tenho mil sobrinhos, uns 25. Mas, enfim, a Cecília foi a primeira filha da Marina e é minha afilhada. Eu sou muito próxima da Marina e via a Cecília todos os dias quando ela era pequena, a gente era vizinha. Foi também nessa época, tudo ao mesmo tempo: descobrindo o amor pelas minhas sobrinhas, descobrindo que eu poderia ser uma mulher lésbica, descobrindo que a minha vó tinha se matado, então são muitas mulheres. Acho que por isso ele é um disco muito coletivo. Eu acho que tem a ver com esse momento nosso, acho que a gente [mulheres] se fala muito mais. Estamos nesse momento graças a essas mulheres todas que foram mortas. A gente tá tentando não ser morta, como dizia a Marielle, a ideia é tem que estar vivo. Essa é a meta.


Foto: Vitória Proença

Cavala é um disco de autoafirmação – pessoal e profissional – de uma Maria lésbica e autora. Que novos caminhos essas experiências estão proporcionando a sua carreira?
Tá sendo muito bom, acho que carreira é meio tudo. Tem uma coisa pessoal de que eu tô me sentindo muito bem. No primeiro dia que eu fui no estúdio do Tó produzir o primeiro single Cavala, saí de lá com uma sensação que eu nunca tinha sentido. Tem uma coisa de realização, de me encontrar mesmo. É muito legal que as pessoas me vejam de uma maneira que eu me identifico mais, eu tô percebendo só agora que eu me identifico mais desse jeito. Acho que é uma coisa que tem a ver com a autoria, mesmo na Quartabê, grupo de música instrumental no qual, a princípio, a gente não é compositora – mas na verdade é porque ser arranjadora é ser compositora também – fica tudo mais cada coisa em seu lugar, parece. Eu acho que eu tô mais em paz com a minha vida artística, encontrando o meu lugar. E fica tudo mais tranquilo. Acho que a Quartabê sempre foi muito autoral, no a gente primeiro disco [Lição #1: Moacir (2015)] a gente fez arranjos de músicas do Moacir Santos, arranjos totalmente diferentes, e isso tem muito a ver com o meu processo de composição pessoal. Eu engulo muita coisa pra dizer outra, que é aquela também, mas transformada. É meio que tudo a mesma coisa, mas foi importante esse disco e eu me colocar como compositora e cantora, numa coisa de me entender, de ter uma nitidez da minha figura. A minha imagem se transformou nesse meio tempo pra minha identidade, minha identificação. Acho que tudo tem uma relação muito forte. E tudo o que tá rolando mais agora é que as pessoas me veem como compositora. Isso tá sendo massa. Quando me chamam pra tocar clarinete, é porque querem as minhas ideias, isso faz toda a diferença. A pessoa me chama não porque ela precisa de um clarinete ali, mas porque ela quer a Maria ali. Acho que isso é uma mudança legal.

Você sente que as minas lésbicas estão ganhando mais visibilidades na música de uns tempos pra cá? Qual a potência de retratar essa temática e escrever canções que falam sobre desejo, afeto e identidade de uma mulher que ama outra mulher?
Eu acho que as mulheres lésbicas já estão na música, especialmente na Música Popular Brasileira, há algum tempo. Pelo menos a geração de cantoras tipo Zélia Duncan, até antes né,Gal [Costa], [Maria] Bethânia, tudo sapatão, mas ninguém falava disso. Eu acho que cada geração tem o seu caminho; acho que a gente só pode e precisa tanto falar sobre isso porque elas construíram esse espaço. Mas a gente tá ganhando espaço. Tem algumas pessoas que falam “Ah, é uma guerra, então?”. E eu respondo “Sempre foi uma guerra, só que você não sabia, meu amor, você não sofria a guerra”. Agora, a gente tá levantando as armas também. Acho que a gente precisa falar sobre isso, a palavra é uma arma forte, muito potente. A imagem, o gesto, acho que é tudo sobre presença, tem toda essa coisa da visibilidade e da representatividade. Por que é importante a gente ser representada? Porque a gente existe. É uma coisa muito óbvia, meu corpo ocupa espaço, então eu preciso ocupar espaço. O que acontecia é que, ao longo da história e até hoje – porque a gente ainda tá numa situação caótica e absurda em relação a isso- a gente era apagada. A gente é apagada a cada dia. As pessoas, a nossa sociedade, a nossa comunidade exclui, apaga e mata as pessoas, as mulheres lésbicas, as pessoas negras, as pessoas LGBT, todas essas maiorias que são tratadas como minorias são apagadas a cada dia. O que a gente precisa fazer é levantar o corpo e marcar presença por uma questão óbvia: eu preciso existir porque eu existo. O seu corpo tá aí, o meu tá aqui, e eu não preciso ser apagada. Essa violência é muito desproporcional. Pra uma pessoa existir, ela precisa fazer uma força muito grande, enquanto que pra outra existir, ela não precisa fazer nenhuma força. Agora, a gente tá gritando, a gente tá urrando: “existimos”. Esse é o grito. O que eu falo nas minhas canções é muito básico, acho que eu sinto um retorno muito forte das minas porque eu não ouvi nada assim quando eu era adolescente. Eu não via nenhuma mulher lésbica, eu as conhecia, mas elas sempre estavam escondidas. O que é pior do que não conhecer, acho a omissão uma das piores violências. É muito forte isso. Quando eu fui sacando que eu era lésbica, eu fiquei pensando “Eu tenho que dar uma escondida nisso”. Acho que o meu show, meu disco, essa figura da Cavala, tem uma relação com o monstro, com a monstruosidade. O meu pai falou que quando viu meu show, sentiu que a cavala era uma espécie de monstro. A palavra monstro vem de mostrar. É de simplesmente querer mostrar, não querer esconder. É muito difícil porque eu fui educada pra em esconder porque as outras pessoas me escondem. É difícil, mas estamos pra isso, pra todas as minas. É uma construção coletiva porque tem muitas outras minas lésbicas que tão ouvindo, porque tem outras minas falando me agradecendo quando ouvem o meu som. É tudo na base do diálogo e das mãos dadas.

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24/09/2018

Brenda Vidal

Brenda Vidal