No show de lançamento de Zulu: de César a Cristo (Vol. 2) (2022), no fim de abril, em São Paulo, Zudizilla optou por um show enxuto. Acompanhado do pianista Gabriel Gaiardo, do baixista Rob Ashtoffen, do baterista Maurilio Santiago a.k.a. Pé beat e de DJ Nyack, o rapper gaúcho optou por não chamar ao palco sua esposa Luedji Luna e artistas amigos como Victor Xamã, Kamau, Emicida, Tássia Reis, Stefanie, Nego Max, todos na plateia do Blue Note no último dia 28. O resultado foi um show não menos emocionante, verdade.
Do sul do Rio Grande do Sul, ele veio pra São Paulo, onde se mantém real, fiel ao seu compromisso ancestral de libertação de corpos e mentes periféricas. Se encontrou, casou, e iniciou a construção de uma família. O pequeno Dayo, além do tempo prático corrente do pai, toma a inspiração e visão da pessoa de axé. Da bem sucedida turnê para lançamento de sua ópera preta, ele obteve ainda a circulação com quatro apresentações nas Casas de Cultura na cidade de São Paulo: duas delas, se deram em maio, na Casa de Cultura Hip Hop Leste e no Centro Cultural da Juventude; as outras duas acontecem em junho, na Casa de Cultura Hip Hop Sul (19/6) e na Vila Itororó (29/6). Um incentivo para a formação e desenvolvimento de público.
Consciente, ele quer mais. É justo. Zudizilla entrega um trabalho maduro, sua figura distancia-se de uma novidade, mantendo frescor de novo. Ele falou para a Noize recentemente dentro do contexto das ações de divulgação do show de encerramento da turnê de lançamento da segunda parte de sua trilogia. Em visita ao Rio Grande do Sul, no último final de semana, o artista se apresentou na Praia do Cassino e na cidade de Pelotas, ao lado da banda KIAI, com quem registrou o disco JAZZKILLA (2019).
Pelotas é a cidade a qual ele tem raiz e de onde estabeleceu pontes que permitiram sua chegada em São Paulo. Na conversa que segue, abordamos o momento atual e histórico de sua trajetória. Seu processo criativo, além de impressões de parceiros e passagens como a participação do artista no projeto PULSO, da Red Bull, em 2016, e do trabalho de Vozes do Silêncio (2022), filme que compõe a narrativa multimídia de Zulu: De Cesar a Cristo (Vol.2). Começamos pela impressão de aspectos do território no cruzamento das nossas vivências. Em nossa primeira conversa, por esse repórter também negro sulista, constatamos a facilidade que nós temos de nos desencontrarmos uns dos outros, mas um dia se trombar por aí/aqui. Foco nele, com vocês, Zudizilla.
Como você vê esse encontro de gaúchos fora do estado?
Isso é pratica lá do Rio Grande do Sul, de a gente acabar se aproximando fora do nosso território. Porque o nosso território tem essa dinâmica de nos afastar pra que a gente não forme os quilombos, que já foram formados tempos atrás e, por muito tempo, complicaram a dinâmica racista deles. A Winnie [Bueno, intelectual e pesquisadora que você saberá mais no decorrer da matéria] é da mesma cidade que eu e eu fui me conectar com ela em São Paulo. A B.art mesmo, morava a duas quadras da minha casa e tinha um contato da hora, mas a gente foi se aproximar e conseguir fazer um trabalho juntos, que é a poesia que ela colocou no meu disco, só depois que a gente saiu de Pelotas. Apesar da gente ter dado start em um movimento bem da hora, que é o Stay Black, ainda assim existe aquela dinâmica do “preto único”, tá ligado? Que também existe em outros lugares, mas no Rio Grande do Sul parece que é mais escrachado. Tipo, já tem um preto aqui, então o outro preto que chegar vai ter que disputar o lugar comigo. Então, rola uma antipatia, os pretos não se bicam muito.
Você diz: “O rap me escolheu porque eu aguento ser real”. Essa imagem, para mim, fala muito sobre o teu trabalho, postura e atuação. E não pensando a partir de agora, mas voltando lá pro Sul, quando você escolheu se manter ao sul do estado, onde sabemos que as restrições são ainda maiores, o que demanda esforços maiores. Então, com isso, eu quero começar a conversa pela tua formação, não só a formação clássica, mas também o background que forma o Zudizilla de hoje.
Então, o princípio foi o desenho. Eu sou filho de mãe solteira. A gente sabe que a forma mais fácil de acessar espaços é por dinheiro e pela identificação que o próprio dinheiro pode trazer perante as pessoas. Eu nunca tive essa facilidade de acesso quanto a amizades, quanto a núcleos de brotheragem. Eu tinha as minhas irmãs como o meu reduto, as pessoas mais próximas de mim. E a partir disso eu me tornei uma pessoa não sozinha, mas solitária. E preferindo às vezes a solidão, a solitude, às outras dinâmicas que eu via que ou não tinham a ver comigo ou talvez fossem me colocar em outro lugar, onde eu precisaria fazer muito mais força pra ser e pra existir. Então, a partir do momento que eu encontrei o desenho – que foi a minha irmã que me apresentou – nunca mais abandonei esse grande amigo chamado desenho.
E ele evoluiu pra parede, evoluiu pra tela e chegou no grafite. Quando eu cheguei no grafite, comecei a entender um pouco melhor as dinâmicas do hip hop. Porque eu acabo chegando no grafite por uma outra paixão, no metal e no hardcore, em outras dinâmicas sonoras. E quando eu começo a entender o que o hip hop é e significa pro mundo, e passo a perceber que ele tem uma trilha sonora chamada rap, passo a respeitar esse movimento. Mas eu ainda não flertava com esse tipo de dinâmica. Nesse momento da minha vida, eu achava que seria artista plástico ou, no mínimo, iria estudar alguma coisa que me permitiria desenhar pra sempre.
E foi aí que eu cai no design, porque os grafiteiros que eu mais curtia era o DIDIFREAK, que fez a capa do acústico do Charlie Brown Jr., o Speto, que fez a capa do Silêncio Que Precede O Esporro, do O Rappa, que eram bandas que eu curtia muito. Eu comecei a enxergar a galera do grafite inserida nesse meio do design tendo uma vida financeira muito saudável, trabalhando com marcas, com música. E era um universo que eu achava que ia ser muito bom pra mim, então eu parti pra essa relação de estudo. Não é que eu gostasse de estudar, mas eu também nunca tive muita dificuldade para estudar, sentar e aprender coisas assim, sabe? Nunca foi uma parada muito dolorida pra mim aprender. Eu presto bastante atenção, sou bem observador. E acho que isso também faz parte do desenho, que me fez observar as coisas, e isso é algo que eu carrego na minha vida pra sempre. Nesse momento, eu tô trampando com design, sendo artista plástico de um núcleo negro da minha cidade, trampando com grafite e movimentando alguns eventos de hip hop. Porque o punk me deu muita consciência social, na verdade.
O punk?
Sim, o punk me deu muita consciência social e econômica, mas não racial. Eu ainda estava inserido num contexto que não me privilegiava muito e, quando eu conheci o hip hop, com o grafite e o rap, é que eu vi que tem dinâmicas de movimento social mesmo. Com isso, eu passo a frequentar núcleos que ajudam a construir eventos. Semana da Consciência Negra, Semana do Hip Hop, eu estava sempre envolvido na organização. Isso aos 16, 17 anos. E aí, eu comecei a ver que o hip hop tinha um poder de transformação social muito grande, a partir disso eu começo a me aproximar mais da questão do rap, até que o bagulho chegou em mim e eu já comecei a fazer freestyle também. E um brother meu falou: “Oh mano, chega de ficar em backstage, vamos fazer um som”. Aí eu fiz meu primeiro som e, depois desse som, nunca mais parei de fazer, eu fiquei no grupo porque a galera curtiu tanto o som que eu fiz, achavam que eu era de Porto Alegre. E ele falou: “O Zudi, o meu grupo tá meio se dividindo e vai ser da hora se eu tiver outra pessoa pra me ajudar a segurar essa bronca”. Eu respondi que entraria contanto que o lance não me privasse de continuar pintando e atrapalhar a minha vida.
Aí ele me contou uma baita mentira, que foi que o rap não ia atrapalhar a minha vida. E fudeu, porque quando eu estava no final da minha formação em design, já estava fazendo os vídeos do meu grupo, capa, beats, fotos, e me inserindo cada vez mais nas dinâmicas de produção. Também, quando me formei, prestei outro vestibular, só pra descargo de consciência. Para Artes, que estava muito presente no meu universo, e acabei passando e já emendei uma faculdade na outra. Mas o rap já estava ali e não consegui terminar minha faculdade. Então, peguei tudo o que eu estava aprendendo, e por isso que o Faça a Coisa Certa (2016) é da forma que é, flerta com Basquiat, Baptist, Spike Lee. Porque eu estava dentro desse universo acadêmico. E comecei a pegar tudo o que eu estava aprendendo e botar dentro do rap pra tentar fazer algo genuíno e com a minha cara.
Demorou um tempo, mas eu acredito que as pessoas estão começando a reconhecer esse esforço que eu faço pra representar uma parcela da periferia que não é aquela estereotipada pelas pessoas. Pelo menos, a periferia de onde eu vim, que é a periferia que eu conheço, é extremamente rural e tem espaço pra tudo e pra todos. Existe um desenho social do indivíduo periférico que a gente, às vezes, acaba aceitando de uma forma meio non sense. Que é legal também, mas dentro da periferia tem gente preta que curte metal, que curte jazz, que curte outras dinâmicas, e é pra esse lado que aponta o meu trabalho. Esses tempos até, depois do show que eu fiz no Opinião [em Porto Alegre], teve uma mina que falou pra mim: “Teu som só atinge os periféricos inteligentes, estudante, acadêmico, e periférico que trabalha”. E eu perguntei pra ela: “Mas isso é ruim?”. Porque eu não consigo ver isso de uma forma pejorativa nem ruim. E é dessa forma que eu acabo encontrando o meu lugar dentro do cenário.
Sobretudo hoje em dia, que a gente tem a favela posta no centro criativo, né?
Tem um MC, que é o Matéria Prima, que é um cara também periférico e ele tem um vocabulário muito rico. Um dia, ele me deu uma lição que foi muito importante, quando a gente estava conversando sobre letras e refletindo que às vezes eu tenho que pegar uma construção verbal e transformar numa gíria pra galera entender, e ele me disse: “Irmão, não faz isso, porque isso é subestimar o poder intelectual da favela, e isso a sociedade já faz”.
O que tu falou sobre teu background e a tua formação fala um pouco sobre onde eu quero chegar agora na habilidade criativa e de direção quando tu, por exemplo, visualiza e constrói uma trilogia. E aí eu acho que a gente não precisa se privar de pontuar isso, porque pra mim isso é uma coincidência extremamente feliz e salutar do rap, que é o fato de ter dois rappers hoje trabalhando trilogia em destaque. A gente vê o Don L, que vem lá do Nordeste, com outro background e que vem de um processo diferente do teu, que tem um diretor criativo ali com ele, que ele referenciou e deu o crédito quando ele lançou o disco, de que o André Maleronka o auxiliou em todo o processo de criação, que eles trocavam muita leitura. Mas e aí, me corrige se eu tiver errado, a tua criação parte desse lugar solitário. E são estéticas diferentes dentro do rap. Não é algo assim, um viu o outro e aí “ah, vou fazer uma trilogia”. Até porque a sonoridade é diferente, a abordagem da temática é diferente, certo?
Então, eu e o Don L a gente se conheceu em 2010 no Rio Grande do Sul, num Fórum Social Mundial descentralizado. A gente não se vê quase nunca, mas quando se vê tem sempre uma troca muito boa. Eu acho que a gente aponta pra lugares parecidos enquanto artistas, apesar da gente ter práxis diferentes. Tem um livro do James Welton Jr. que é Autobiografia de um Ex–negro (1912), e ali eu aprendi uma coisa muito importante, que também o Splke Lee me trouxe depois, que é de construir uma ficção a partir das tuas próprias experiências. Lima Barreto também faz isso muito bem. Então, é para onde aponto o meu trabalho. São meus referenciais, que trabalham dessa forma e automaticamente acabo me privilegiando de coisas que eles também criaram. E eu acho muito importante ter a minha história no centro daquilo que eu faço, que é o meu olhar e a minha direção. Porque eu consigo tornar visível ainda mais o meu corpo enquanto preto do Rio Grande do Sul. Eu dirijo tudo. Dirijo clipe, os visualizers. Eu sei quando… na real, não sei, mas eu tento facilitar a forma como as pessoas vão me receber pra que elas me entendam de primeira aquilo que eu tô querendo passar. Sem ter nenhum tipo de distração ao perceber aquilo que eu tô fazendo. Porque se tu for me analisar pela capacidade que eu tenho de fazer um grande hit, ou pela minha capacidade de fazer uma música de 30” pro TikTok, eu vou ser um fracassado. É preciso que as pessoas me analisem por aquilo que eu tô oferecendo e propondo enquanto artista. E é por isso que eu tomo as rédeas do trabalho que eu tô à frente de cada produção. E também volta pro lance de manter em evidência que o periférico produz saber e produz material suficiente pra municiar os próximos 100 anos de Brasil enquanto arte e intelectualidade.
A chegada da pandemia foi difícil pra você, que acabava de estrear o show do vol. 1…
Então, pra mim foi foda, porque eu lancei um disco que eu só consegui fazer dois shows. Depois fiz live, fiz outras coisas, fiz um trabalho com a galera da Atrio Jazz aqui em São Paulo, que tem uma dinâmica parecida com a do KIAI. Que são entregas diferentes do que eu tô tendo agora. A trilogia já nasceu pronta. Ela veio tudo numa sentada. “Matrix”, “Tela em Branco”, “Sonhos Imperiais”, por exemplo, são músicas de 2016, são músicas de seis anos atrás. Faz muito tempo já que era pra estar na rua, mas demorou. Eu me sinto muito orgulhoso por ouvir coisas que eu escrevo se tornarem atemporais. Porque, se parar pra pensar, já faz muito tempo, poderia não estar mais fazendo sentido assim.
Mas também me trouxe algumas soluções, como essa possibilidade de fazer o lançamento da Ópera Preta com os Volumes 1 e 2 integrados. Eu abro o show tocando o Vol. 1, depois passo pro Vol. 2 e volto pro Vol. 1. E esse sempre foi meu sonho porque, na verdade, eu queria ter chegado em São Paulo e lançado o Vol. 1 em 2018, Vol. 2 em 2019 e Vol. 3 em 2020. Como eu não pude, lancei em 2019 o Vol. 1, 2022 o Vol. 2 e eu quero lançar o Vol. 3 o mais rápido possível. Por uma questão que é: a interferência da minha paternidade na minha escrita é muito maior do que tá nesse disco. A interferência das coisas que eu vivi em São Paulo é muito maior do que tá nesse disco vigente e no próximo, que é o que eu tô escutando aqui agora (risos).
E voltando a ideia do “ser real’, a tua vida mudou, e agora ouvindo tu falar, imagino que o que tá ali já não é mais o que tu tá vivendo hoje. Porém, isso ainda fala sobre a vivência de muita gente. Entendo que tu poderia tá falando de outras coisas, ou só curtindo o hype que tu acabou acessando no momento que tu te casa com uma das maiores artistas do país.
Sim. Algumas coisas eu consegui mesclar, pra também trazer pro agora aquilo que eu já estava falando. Mas é isso, eu sempre falo pra todo mundo que eu tento buscar em mim a menor parte, a parte mais microscópica do meu individuo social, pra que dessa forma eu consiga me conectar com todos. Porque a minha menor parte tá no todo. Muitas das minhas experiências vividas são minhas, mas não são só minhas. Eu não sou dono delas. Então, eu compartilho com os outros na busca de me conectar com outras pessoas.
Ao mesmo tempo, o encontro seu e de Luedji entendo, é um encontro abençoado, que não acontece facilmente, de dois artistas da música, nesse lugar de potência e de excelência, que compartilham não só a vida, mas o tempo no mundo. Eu queria te ouvir um pouco a partir disso.
Eu conheci ela num trampo que eu fiz de tradutor do grupo do Illa J. E nessa ocasião foi o primeiro dinheiro que eu fiz aqui em São Paulo, que era um projeto da Red Bull que havia juntado o DJ Nyack, a Luedji e o Sergio Machado PLIM. E aí eu conheci ela. Em 2017, já escutava bastante o trabalho dela e durante o ano de 2018 a nossa relação foi de trampo mesmo. Ela foi fazer a Feira Preta, e fizemos eu, ela e o Nyack. Ali, a gente se encontrou, se trombou, foi mó da hora. E é muito louco porque ela é uma pessoa que me inspira muito, tá ligado? Tanto poética, quanto posicionamento, ela é uma artista muito rica. Muito ref pro trampo que eu faço. E é muito louco porque hoje em dia eu nem tenho mais essa imagem dela. Claro, ela é uma artista foda. E tipo, quando eu vou no show dela, eu tento ir pro público. Geralmente, eu tenho que ficar em cima do palco ou atrás, mas sempre que eu posso, eu vou fugindo pra escutar a música e vou pro público. Mas eu já não vejo mais ela nesse lugar, porque a gente convive há cinco anos juntos e, nesses anos, eu consegui muito rapidamente acessar a pessoa dela. Que também não diferencia muito da artista. É muito próximo do que a gente vê em cima do palco, mas ela tem outros atravessamentos, ela tem outras dinâmicas de pensamento, outras formas de enxergar o mundo que muitas pessoas não conseguem acessar. E pra mim é muito foda ver isso, de estar perto de uma pessoa que batalha pela mesma coisa que eu e a gente dorme e acorda juntos. Mas eu já não consigo mais enxergar ela enquanto esse ícone. É muito mais pelo laço que a gente convive junto do que artístico. É óbvio que toda vez quando ela tá produzindo um trampo, eu fico ali de butuca ligada, porque é uma possibilidade de aprender alguma coisa com ela. Mas é isso, o nosso encontro pode até parecer que não, mas foi algo que aconteceu de forma muito natural. Até a gente conseguir ficar junto e firmar a nossa relação, teve muito atravessamento por muito tempo entre eu e ela pra gente conseguir fechar o relacionamento.
Você falou em ser filho de mãe solteira, algo comum no Brasil. E é muito bonita a reverência que você faz a sua mãe na abertura do disco.
A figura materna é a figura de autoridade que eu tenho na minha mente. Não é o homem. Eu não respeito o homem policial, sempre tive problema com homem professor, mas com mulher eu sou completamente passivo, humano e respeitoso e, dentro desse disco, também eu sou recebido em minha casa de candomblé, que é de uma mãe de santo. E aí foi quando eu consegui entender a minha dinâmica. Antes da mãe de santo, as filhas menores da casa, são filhas carnais da mãe de santo, é uma grande família mesmo. E ali eu me senti muito bem. E um detalhe é que as minhas duas mães estão no disco. A minha mãe de santo também tá no meu disco na faixa “TUDO AGORA”, é ela que fala: “Agora segura, aguenta esse sucesso pra não te perder”, ela que me manda aquele salve. “Então segura as pontas, foca, saiba lidar com ele pra você crescer. É aquilo que eu falei pra você: passo lá pra trás, nunca mais”.
E esse disco também é dedicado a essas duas formas de mães, porque assim como eu começo com a minha mãe, eu termino com Oyá. Que são as duas mães, matriarcas, que eu tenho. Essa minha relação com o candomblé me trouxe essa noção de pertencimento dentro de uma linha cronológica que eu tenho com o mundo. Me trouxe uma noção de responsabilidade a partir do que eu tenho com meus ancestrais e tudo o que eles fizeram para que eu hoje pudesse estar aqui me expressando, sendo aquilo que eu almejo ser. E me trouxe um pouco mais de paz e sabedoria pra eu me manter nessa cidade aqui que é muito louca, tá ligado? É um rolê que me deu disciplina acima de tudo. O axé pra mim deu muita disciplina e tanto que eu vou lá e a minha mãe diz: “Pede, pede pra Exú”. Mas eu tenho que agradecer, porque botou minha cabeça no lugar e tô tranquilão. Muita coisa eu tô abandonando no meio do caminho pra que muita coisa possa entrar. Uma relação de entender que o meu corpo preto carrega outros corpos pretos que já passaram por aqui e aí eu tenho maior orgulho mesmo. Sou macumbeiro pra caramba.
“Recorte do Infinito“, pego essa citação lá da música do Kamau, “Carpe Diem”, e a partir dela eu quero retomar algumas parcerias tuas. Te ouvir um pouco sobre essas pessoas que já te vi falar pontualmente, mas que acho interessante recuperar. Então vamos começar pelo Kamau. Porque foi um encontro acredito que bem importante pra ti ali no PULSO, né? E se tu te sentir à vontade e quiser recuperar alguma coisa dessa passagem no projeto eu também acho bacana.
Eu lembro que cheguei no PULSO, no primeiro dia, larguei a mochila, sai da sala e o Kamau abriu a porta e falou: “Zudizilla?”. E eu: “Caraio, Kamau”. E ele me chamou: “Dentro da minha sala, tem um beat”, e eu fiz a primeira música do PULSO, foi uma música que não saiu. Mas a primeira música do projeto fui eu que fiz na sala do Kamau. Era eu, o Raillow, J. Guetho, com riscos do Nyack e o beat do Jhow Produz . E nesse dia eu fui muito bem acolhido pelo Kamau e pelo Nyack, e é por isso que eles tem um lugar muito especial na minha caminhada: o Kamau por ser um cara que eu era muito fã e o Nyack por ser uma pessoa que virou um irmão. Então, foi a partir do PULSO que eu acessei essa rede de acolhimento com esses dois caras que eu particularmente sou fã pra caralho. A gente faria dois showcases e eu acabei fazendo quatro showcases. Mas eu recebi só por dois. E isso me deixou muito puto, tá ligado? Pô, eu trampei pra caralho, tenho que receber pra caralho. E eu fiquei muito puto, estava prestes a quebrar aquele Red Bull inteiro, e o Kamau olhou pra mim do nada, se levantou assim e falou: “Se levanta aí’. Eu levantei, ele falou: “Me dá um abraço”. Eu olhei pra ele: “Como assim, mano?”. Ele falou: “Me dá um abraço”. E eu dei um abraço nele e me deu vontade de chorar. E eu nunca mais esqueci dessa passagem. São pessoas que, pra mim, são extremamente especiais. Ter tido eles nesse show no BlueNote foi muito foda. O Kamau ter dispendido tempo pra ir lá ver o meu show, foi muito foda mesmo.
Gostaria que tu comentasse um pouco sobre o Pedro Dom. Com quem antes do JazzKilla tu fez algumas coisas com a Orquestra Livre.
Eu tava numa sala do PULSO que eu só conhecia o Pedro Dom, que é um cara que, apesar da galera me mapear dentro desse movimento do Jazz a partir do JazzKilla, eu já fazia esse mix jazz rap com a Orquestra Celestial do Livre Arbítrio. Então, eu já conhecia o Pedro Dom. E ele que tem as dinâmicas mais eruditas de som, de conhecer as notas musicais, conseguia muito melhor se conectar com as pessoas do grupo, que eram o Thiago Abrahão da Wannabe Jalva, o Eric Endres, que é um guitarrista fudido de Porto Alegre, a Gutcha Ramil, que toca tambor de pé, e o Chaves, que é um produtor de música eletrônica.
Com a Orquestra Livre, a gente fez uns dois shows em Porto Alegre, dois em Novo Hamburgo e uns dois shows em Pelotas. E aí dentro dessa dinâmica. De transpor as músicas pra uma linguagem mais jazz, mas como o Pedro gosta muito de rap não fugia muito de rap. O momento do jazz era muito específico dentro dessas construções. Aprendi muito com o Pedro. Muito mesmo. Tanto que até hoje a gente se fala, a gente troca ideia. Ele é um cara fenomenal que eu trago pro resto da vida.
E o Emicida, tu já conhecia também antes de chegar em São Paulo?
Quando eu cheguei aqui em São Paulo, o Nyack me levava muito pra rolê. E aí eu fui num lance que era uma festa da Heineken, em 2018, e ele [Emicida] ia fazer uma participação com As Bahias e a Cozinha Mineira e o Nyack ia tocar na festa. E eu fiquei naquele rolê de backstage e eu troquei uma ideia com ele: “Pô, daora que tu tá aqui”. E aí ele me fez uma pergunta, que foi muito engraçada que foi: “Mano, vai ter Emicida no teu disco?”. E eu falei: “Pô, não vai ter Emicida no meu disco”. E ele deu risada e falou: “Sério que tu falou isso? Todo mundo quer ter Emicida no seu disco! Me diz como é que tu não quer ter Emicida no teu disco?”. E eu falei: “Não é que eu não queira ter, é que o meu disco já tá pronto. Mas no Vol. 2, se tu quiser encostar, é tudo nosso”. Ele falou: “Pega meu número aí, me dá o salve que a gente vai ficar juntão e até sair esse disco nós vai tá próximo”. E o áudio dele que entrou na música “Prefácio”, é dessa primeira vez que a gente entrou em contato por telefone. Eu dei um salve pra ele e ele me mandou aquele texto que entrou no áudio da track, que eu lancei como single. Aí eu lancei o Vol. 1, e continuei trocando ideia. Sempre que ele me vê, ele me trata muito bem.
Eu entendi e eu sempre abro esse parêntese quando eu dou entrevista, porque eu entendi como o Emicida é tão grande. Ele não é só bom de rima, tá ligado? Ele é uma pessoa foda. Ele tá no lugar que ele merece estar por tudo o que ele representa. Eu tinha outros MC’s de potência pra esse Vol. 2. Também pelo seu próprio corre, eu consigo entender, demoraram muito tempo pra me dizer que não iam poder estar no disco. E o Emicida desde o primeiro contato ele sempre disse: “Não, eu vou demorar, mas eu vou estar no disco mesmo. Eu quero estar nesse trabalho aí”. E a partir do momento que eu conheci o Emicida, eu percebi que o bagulho poderia ser um pouco mais do que isso. Foi quando eu comecei a trabalhar as capas, trabalhar os beats, trabalhar conceito, trabalhar vídeo. Eu aprendi muito vendo o Emicida aprender no meio do caminho. Tudo que ele ia aprendendo, ele compartilhava com quem estava interessado em aprender através das produções dele. Ele não era didático acerca daquilo que ele estava fazendo, mas quem prestasse um pouquinho mais de atenção naquilo que ele estava fazendo conseguia entender que ali tinha um know how de como fazer, tá ligado? E isso foi muito foda. Foi um encontro muito foda e ter ele nesse disco agora é só a consolidação de uma amizade que eu vou levar pro resto da vida de coração, que provavelmente o meu filho também vai babar muito no que ele faz.
Sobre o Nyack. Que é a pessoa que te incentivou a vir pra cá.
No final desse ano de 2016, o Nyack ligou pra mim perguntando o que eu iria fazer entre o final de novembro e início de dezembro, e eu falei: “Nada”. E ele falou: “O mano, eu vou aí pra tua casa”. E eu fiquei: “Como assim, cara?”. O Nyack é um cara que passa férias em Nova York, Los Angeles. E ele falou: “Não, quero ir pra Pelotas dar um rolê, saber o que forma o pensamento de vocês”. Ele já estava muito ligado na nossa cena. Muito ligado no Zilla Sonoro, no Poka Sombra, e ele passou umas duas semanas lá em Pelotas dormindo na minha casa, comendo o rango que eu como e vendo a nossa vida de Pelotinhas, tá ligado? E aí virou um cara muito especial, tanto que no final de 2017, foi ele que falou: “Mano, vem pra São Paulo, tu tem um trampo muito foda”. Eu já tinha mostrado a ideia da trilogia, já tinha mostrado umas músicas, e ele veio me ajudar a dar o primeiro passo. Ele disse que pelo menos a gente lançaria junto.
Então, quando eu estava vindo de vez pra São Paulo, eu fui pra Porto Alegre, e aí fiquei na casa da minha prima e perdi o voo. Quando eu perdi o voo, pra mim foi tipo um sinal: “Tem que voltar pra cidade lá, enfrentar o que tiver que enfrentar e vai ser o que tiver que ser”. E aí eu dei um salve nele e ele falou: “Oh mano, manda o teu cpf que eu vou comprar a tua passagem agora”. E ele comprou a passagem que eu consegui vir pra São Paulo. Porque se não fosse ele, talvez eu ainda estivesse lá, ou nem estaria mais.
Um dos shows da turnê de lançamento do Vol. 2 foi DJ + MC, qual foi?
Foi o de Salvador. Muito por uma questão financeira, pois tá muito caro operacionalizar uma circulação. E como eu tive que fazer com o DJ lá em Salvador, foi muito especial. Foi o show que posso colocar como o mais foda dessa turnê, pela dificuldade que foi fazer um show em Salvador, imaginando uma Salvador que a galera bota na nossa cabeça que é [a festa] Batekoo o tempo inteiro. E aí eu fiz um show com DJ que me ajudou a criar a estética da noite. Que tocou rap do início ao fim, e eu vi b-boy em Salvador. Eu vi Salvador fazer passinho prum lado e passinho pro outro. O baile inteiro, todo mundo dança como é o baile charme e de R&B.
E numa banda que recebe esse tipo de dinâmica, de pagodão, de dance hall, de funk, que a dona falou que nunca viu a festa ficar cheia do início ao fim. Foi baile de rap que começou às 11 horas da noite e foi até as 5 da manhã, todo mundo dançando feliz da vida. Um acontecimento único lá, que privilegia um grupo de pessoas que acaba ficando órfão de um estilo musical que adora, mas a galera toda vez que vai pra lá acha que vai ter que fazer um show dessa forma porque a galera não recebe. E recebe muito bem. Foi muito foda ter feito esse show com o DJ lá. Mas também quero voltar com a banda.
Quero recuperar um pouco do sentimento desse show no Blue Note. Que foi foda, a galera chapou, teve uma repercussão super positiva. Tinha um mano do meu lado no camarote abismado. A hora que acabou o show ele me deu um abraço falando agradecido por ter ido.
Ter tocado no Blue Note pra mim foi um momento muito especial, porque é um palco que eu acho foda, é um lugar que eu sei que passa pessoas muito foda. É um lugar que eu sei que o meu público nem sempre consegue acessar, e eu consegui olhar pro lugar e majoritariamente o público era preto. Isso me deixa muito feliz por ver que a galera faz o esforço pra ir, tá ligado? E acho que a mecânica e a logística vai se ajeitando no meio do caminho.
Eu sei que o show é muito foda, e sei que tem coisas que eu posso decupar melhor. Nem abro o mapa porque é esse o show que eu quero apresentar. Lancei um disco agora em março. Acho que precisa de um pouco de circulação. São quatro shows apenas. Na verdade três com o mesmo formato com a banda, porque o quarto foi só com o DJ. E a banda, por exemplo, o Gaiardo, que é meu pianista, toca com a Luedji. Imagina o que deve ser pro cara ter que trocar a chave de uma semana pra outra, e às vezes na mesma semana, pra tocar com os dois. O Pé (baterista) também toca com outras pessoas, o Rob (baixista) toca com outras pessoas, outros estilos, então precisamos de uma constância de apresentações, um pouco de maturação.
Tu já havia feito no Guarany [teatro de Pelotas]?
Eu fiz quando era moleque com o meu outro grupo de rap, SNR. A gente fez o evento da universidade Federal no teatro que era a Calourada e teve uma série de shows. E aí nunca mais fiz nada no teatro. Porém, trabalhei no teatro durante muito tempo como designer. E aí, quando rolou esse show lá, foi muito foda pelo mesmo motivo do Blue Note. Era um teatro que durante muito tempo proibiu, seja por lei, pessoas pretas de entrar, seja socialmente, pela questão econômica, pessoas pretas não entravam dentro daquele teatro, e nesse dia foi muito foda, foi uma pretaiada do caralho e foi bom.
E o Opinião, como foi?
Também foi muito louco porque eu toquei no Opinião algumas vezes em festivais com esse meu grupo também, com o trabalho da Orquestra Celestial do Livre Arbítrio, mas eu nunca tinha ido com o meu trabalho. Não sabia como é que Porto Alegre receberia e foi foda mesmo. Tenho vídeos por lançar desses dois momentos, que eu fiz específico dessas noites, porque foi realmente incrível. Galera cantando junto, foi foda.
“Uma pessoa preta sempre terá o mesmo poder do seu povo”. Acho que isso passa por tudo que a gente falou sobre essa ideia da responsabilidade, da consciência e do compromisso do fazer. E puxo esse gancho pra entrar no filme Vozes do Silêncio. Onde tu te valeu e trouxe de uma cena de artistas negrxs gaúchos que estão nesse mesmo lugar de excelência nas suas áreas de atuação. Dona Conceição, dos favoritos desse que fala, que é uma genialidade absurda, multifacetado criativamente.
É, eu também acho foda. Ogan de Ogum, né? Tem que tá assegurado.
Também o Luis Ferreirah, que é parceirão do Dona Conceição e colaborou diversas conosco aqui para o site. E traz a Kaya Rodrigues pra dirigir, uma atriz que não se pode chamar de nova.
Então, o Luis eu conheci nessa noite lá do Agulha. A gente se conheceu e aquele sopro no meu ouvido falou: “Chama esse cara aí, que ele já tá em Porto Alegre, já conhece a dinâmica”. Por uma questão de logística, eu não ia conseguir viajar com a equipe pro Sul, o que iria atrasar demais a entrega. Pois esse filme surge como uma contrapartida do edital. Essa contrapartida seria só um documentário acerca dessas experiências pretas do Rio Grande do Sul, mas a própria B.art, quando ela escreveu o Stay Black, ela escreveu algo parecido, e aí quando eu vi que o trampo dela tava com a mesma temática, eu comecei a fazer pequenas alterações no meu trampo, peguei um texto da Winnie [Bueno], roteirzei o filme, e chamei o Luis pra fazer esse corre. E aí ele foi lá e chamou uma equipe.
Eu tinha essa história dos quatro personagens serem artistas do Rio Grande do Sul, era uma das minhas exigências, mas o resto da equipe eu deixei livre pro Luis, justamente por ele ter mais conhecimento das logísticas e mecânicas de como funciona Porto Alegre dentro dessa dinâmica. E ele foi muito feliz, eu e a Kaya foi muito bom. Isso que a gente tá fazendo é dar um start dentro de uma narrativa e de uma dinâmica dentro do Rio Grande do Sul contemporâneo, que atrasou em tratar as experiências gaúchas além do período escravagista. Eu consegui trazer pra contemporaneidade os corpos pretos e mostrar eles no agora, pra que a gente consiga daqui a algum tempo olhar pro nosso passado e saber que a gente teve outro marco depois do 20 de setembro, a gente teve outro levante.
É mais do que uma questão estética, é mais do que colocar o nosso nome como equipe, como produção e etc, é dar um start em um movimento que já se consolida aos poucos dentro do Rio Grande do Sul, mas que precisa dessa cabeça centrada, que consiga olhar e imaginar o Rio Grande do Sul como ele é ao invés de mimetizar as práticas do centro do país ou do Norte. Porque o que acontece muito com os nossos artistas pretos do Rio Grande do Sul é que eles acabam parecendo ser de São Paulo, parecendo ser do Rio, parecendo ser de outro lugar. Quando a galera faz um trap pra cá pro centro, pro Sudeste do país, tem muito a ver com o funk, tem muito a ver com essas dinâmicas que são próprias. Quando o funk se torna estilo de música periférico do Rio Grande do Sul, alguma coisa tá errado, porque não é originário nosso. Assim como as próprias dinâmicas de samba do Rio Grande do Sul tem uma diferença muito grande do resto do país, as outras dinâmicas periféricas também tem que ter, porque se não, o preto do Rio Grande do Sul, tá perdendo a sua identidade pra tentar participar, por isso eu tenho um grande problema com o resto do Brasil, porque a galera pensa que o preto do RS simplesmente é igual aos brancos que quiseram se separar um dia e que a gente que se foda e que vá caminhar sozinho.
E é isso que acontece. A gente acaba caminhando sozinho. E isso é um problema que eu tenho, ideológico, com outros lugares. De não conseguir mapear que o RS é feito de vários lugares, que tem movimento preto organizado, de não conseguir entender que, lá em 1986, quando teve o caso do [jogador de futebol] Júlio César, que teve um levante muito grande de juiz preto, de advogado preto, de todo esse movimento dentro da diplomacia, que saiu de dentro do RS pra exigir respostas do estado. A galera simplesmente invisibilizar essa história, eu acho ruim, e quando a gente se torna parte desse movimento de invisibilização, a gente ajuda a reverberar esse arquétipo de que o preto do RS ou ele não existe, ou ele se parece com os outros. E não mano, a gente curte frio, a gente curte vinho, a gente é mais quieto, a gente observa muito mais, porque a opressão no Rio Grande do Sul por ter sido maior faz com que a gente seja assertivo nas dinâmicas. A gente não é espalhafatoso, a gente não grita. A gente não pode fazer isso porque, como nós éramos poucos, toda vez que a gente se espalhava, mais a gente morria.
Então, a gente acabou criando uma comunidade secreta. Minha própria cidade de Pelotas, ela sempre teve baile de branco e baile de preto. “Ah, mas isso é segregação”, foda se, a gente precisa se divertir de alguma forma sem precisar parecer com os caras. Sem precisar se travestir como os caras. Então, quando eu trago toda essa dinâmica pra dentro do Vozes do Silêncio, e o nome vem do livro homônimo de 1994 escrito por Agostinho Mário Dalla Vecchia, ex professor da UFPEL e filósofo, que em 1994 criou um documento oficial onde ele percorre o interior do RS pegando relatos de pessoas que tiveram uma proximidade com a escravidão, seja com seu pai, seu avó, ou até por si mesmo. E pega relatos dessas pessoas, porque ele acreditava que o preto do RS nunca ia conseguir estabelecer um futuro sólido e concreto se não tivesse um passado documentado. E o preto do RS não tinha um passado documentado. E só em 1994 a gente tem esse documento oficial que são dois livros de Agostinho Mário Dalla Vecchia, que ele faz toda essa retomada de narrativas, e foi um livro que chegou até mim porque a minha bisavó dá uma entrevista pra ele, já no alto da sua esclerose, já estava cega e com Alzheimer e ainda assim ela conta a sua passagem e sobre o meu bisavô, que era um preto temido pra caralho no RS, porque ele não parava em charqueada nenhuma. Apanhava pra caralho, batia pra caralho, matava mesmo, tocava os zaralho e não sentava pra ninguém. E talvez, se eu não tivesse conhecido essa história dele, eu tivesse sido um preto sem boca, como todos os outros do RS, que precisam ser sem boca pra sobreviver, tá ligado? Que precisam negociar esse lugar, tanto esse espaço, pra conseguir sobreviver.
A gente nem tá mais invadindo a universidade, a gente tá saindo doutor e mestre da universidade com discurso, com propriedade de narrativa, e é esse momento agora, de a gente conseguir fazer um novo documento acerca das nossas vivências, mas sem pensar na dor e na mágoa. Mas pensar no nosso agora e na nossa construção de pensamento. E quando eu me vejo fazendo esse mesmo movimento de registrar oficialmente essa passagem preta, eu retomei o nome desse livro [Vozes do Silêncio], que me foi muito importante pra dar essa continuidade e tornar visíveis essas ideias, esses indivíduos e esses corpos pretos da minha cidade, tá ligado?_
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