Entrevista | Saskia embala desconfortos, deboches e coceiras no ácido “Pq”

23/09/2019

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Brenda Vidal

Por: Brenda Vidal

Fotos: Manuela Falcão/ Divulgação

23/09/2019

Porto Alegre sabe ser uma cidade ensolarada e tem no pôr do sol o seu máximo cartão-postal. Mas, a capital mais ao sul do país também sabe ser fria, escura e densa. Criada artisticamente entre o isolamento dos invernos na zona sul da cidade e as noites de festas eletrônicas pela áreas industriais, prédios abandonados e espaços públicos mal iluminados, Saskia tem pressa. Carrega a pressa de quem sabe caminhar por ambientes inóspitos, pressa de quem precisa estar sempre um passo à frente para não sucumbir, pressa de quem carrega a música dentro de si.

Em Pq, seu disco de estreia, ela chega com pressa de dizer o que precisa dizer, pressa de não deixar nada se perder pela peneira da criação, pressa de ritimizar, pressa de comunicar. Com apoio da Natura Musical e Secretaria da Cultura do Rio Grande do Sul, o álbum nasce entre Porto Alegre e Rio de Janeiro, e passa por muitas mãos, mentes e corações: a mentoria de Ava Rocha e Negro Leo, produção musical de Renato Godoy e Matheus Miranda, o Tabu, e participação de Edgar.

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Com uma sonoridade requebrante e desconcertante – com trap, distorções e graves articulando com sopros – aliada a composições críticas, diretas e irônicas, Pq é uma experiência visceral. Ora interno, ora externo, Saskia convoca a acidez, retribui a violência com deboche, faz do objeto sujeito, subverte signos e semânticas. Faz do incômodo da coceira a oportunidade para deixar arder, oportunidade de criar.

O lançamento rolou na última sexta-feira, dia 20. Horas antes de Pq cair no mundo, Saskia conversou com a NOIZE – com exclusividade – sobre o processo de concepção do disco, a experiência de criação coletiva e o sentidos de seu álbum de estreia. Solte o player abaixo e desça para explorar as camadas de Pq:

Do nome à sonoridade, Pq parece ser inquietação e provocação do início ao fim. Como foi o processo de materializar esses sentimentos a ponto do seu som transmitir essa sensação? 
Eu comecei a compor o som antes de descobrir o nome do álbum. Queria que o álbum transmitisse as minha coceiras, coisas que me incomodam, coisas que ardem. Conversando com o Tabu, antes de ir pro estúdio, inventamos uma linha de raciocínio para composição que transpusesse esses sentimentos incômodos. Pensamos em fazer algo sujo, odioso, ardoso de ouvir. No estúdio em PoA, ficamos um pouco mais de uma semana dentro de uma sala com todos os equipamentos que o pessoal da
Audioporto conseguiu nos preparar: uma série de sintetizadores e drumachines que eu nunca tinha visto ao vivo. Testamos e exploramos tudo. Um mês depois disso, fiz a residência do RedBull Station, onde entrei a fundo na minha própria cabeça e criatividade para começar a escrever várias letras que viriam a ser o rascunho do conceito do disco. Mas foi quando fomos pro RJ e ouvimos cada beat, unimos as ideias,  que então eu li o que ja tinha composto e lá me aprofundei em transcrever o que tava espalhado pelos meus cadernos e encrostado no meu inconsciente. Teve um dia específico que eu descobri o nome do álbum. Lá no RJ, conversando com Bernardo Oliveira por horas sobre piras randômicas. Fui dormir e acabei não dormindo, minha cabeça tava a mil! Eu anotava ideias pro futuro, pedaços de letras, pedaços de projetos. Olhei pra janela, céu limpo, o dia começando, os primeiros pássaros cruzando, e me veio na cabeça “o nome do álbum é ‘porque”. Então, eu comecei a escrever: “será que é por quê? será porquê? Que ‘Pq’ é esse?”. Enquanto eu escrevia, eu escrevi “Pq” várias vezes, até entender que “Pq” unia tudo o que eu queria dizer. É a pergunta, uma resposta e a explicação pra tudo que eu queria que o álbum fosse. A palavra que incomoda, a palavra que persegue, a palavra que você não quer ouvir, mas precisa. A coceira. Eu tinha tanta certeza do nome quando descobri que fiquei uma semana sem contar pra ninguém. Só pra guardar comigo a ideia um pouco. Estudar o ‘pq’, argumentar o ‘pq’, responder o ‘pq’ pra perguntar de novo: Pq?

Saskia, seu trampo foi muito baseado no “Do It Yourself” (Faça Você Mesmo), com uma criação muito autônoma e autêntica, você + seu pc. Como foi a experiência de trabalhar com a produção do Tabu e do Renato Godoy e contar com a curadoria/mentoria de Ava Rocha e Negro Leo? Eu tinha me acostumado a trabalhar sozinha. Junto com a minha personalidade, eu nunca tinha conseguido envolver outras pessoas no meu trampo, acabava por fazer tudo sozinha. Esse projeto começou quando, por ideia da Bruna Anele [produtora], eu chamei o Leo e a Ava para produzirem o álbum. Depois de vários telefonemas e áudios compridos, Black Leo e Ava estavam entendendo minha pira, eles sabiam que eu não tinha experiência de estúdio, e que meu processo de composição era diferente. Me lembro de Ava bater o pé pra dizer “tem que preservar o processo dela se não o álbum perde a cara”. Eu tava mais preocupada com
aprender a “fazer do jeito que os outros músicos fazem”, do que ter um álbum com a minha cara até então. Daí o Leo disse: “Sal, você precisa de alguém que manje de eletrônica com você, é a sua pira, não perde ela”. Então, um dia na praia eu pensei: “E quem mais guenta ouvir Death Grips o dia inteiro, produzir beat, tocar corda e tirar sarro do mundo sem se preocupar se o mundo entendeu a piada? Mateus Miranda Tabu“, tinha que ser ele; único bro que acompanhou de perto minha carreira e personalidade. Desde o mais bizarros dos beats daquela guria que chegou do nada em Porto Alegre, até a Saskia subindo nas caixas e nas mesas das festas na rua (risos). Ele tinha recentemente conversado comigo sobre esse estúdio em PoA, que tava meio escondido, mas que tinha muito equipamento que ninguém na cidade tinha. Ele conhecia o pessoal de lá e me disse que eles tavam muito afim de começar a partilhar produção na cena musical de PoA. “Na AudioPorto eles tão só por dale, tão só esperando alguém chegar com um projeto”, o Tabu tinha me dito. Então, eu cheguei a conclusão de que eu tinha um projeto, e que Tabu era a a única pessoa que ia entender minha confusão e traduzir ela para o resto das pessoas. Tabu se torna meu “tradutor offline” como eu curto dizer. Gravamos na AudioPorto e tínhamos a camada eletrônica do disco. Mas eu sou uma salada, eu queria misturar. O disco precisava dessa camada orgânica. Leo e Ava se puxaram muita pra conseguir que eu me conectasse com as pessoas certas que acreditariam na ideia. Os dois cariocas não pensaram duas vezes em me apresentar pra um tal de Bernardo Oliveira, dum tal dum selo chamado QTV. Eu fui no bandcamp, ouvi os discos lançados, e pela primeira vez senti que “crl, isso é a minha cara”, tudo experimental, tudo novo, e com uma grande dose de brasilidade fluindo do peso e do ruído. Depois encontrei Leo e ele só deu play num álbum chamado Meu Bagulho (2018) de um tal cabeça chamado Wallace Função. Eu sinceramente não acreditei no que eu tava ouvindo. Bateu de primeira. Pro Tabu também. Era Renato Godoy estraçalhando os samples num ritmo sem começo nem fim, misturando funk carioca com Death Grips, fazendo o que eu não tinha ouvido ninguém fazer. Eu tive certeza que eu queria que ele mixasse o álbum. Nessas de organizar as etapas do disco, Tabu disse: “A Sal vai precisar compor no Rio, ela compõe no quarto, ela precisa ir pra um homestudio de alguém que entenda ela”. Não deu outra. Renato mudou os planos que ele tinha feito, num estúdio convencional que estávamos de olho, e disse: “Vem pra cá, faço duas estações, uma com os monitores na sala, uma com os monitores no quarto, e você fica livre aqui em casa”. Foi a liberdade que eu precisava pra conceber o disco. Chegando no Rio, Bernardo Oliveira me recebe com o sorriso de um pagodeiro da poesia, professor das palavras certas. Ele, cabeça do selo QTV, me apresentou o Rio e no Rio que o meu filho (o Pq) ganha nome, corpo, propósito. Na casa de Renato, eu, ele e Tabu ficamos um mês unindo todas as ideias, organizando e espalhando elas entre as faixas. Tecelamos o disco até o último minuto. Depois, voltei pra minha casa em Porto Alegre pra finalmente ficar sozinha com minhas músicas, como eu fazia antes, que era de onde tudo de mim saia. Compus então por último a primeira faixa do disco [“Pq”] a faixa que une o que eu vi, vivi, perdi e achei de novo.

Sua voz tem uma versatilidade que impressiona. Ela emprega as entonações, as ironias, os gritos; é meio spoken word, meio canto. A decisão sobre o modo de interpretar as suas composições é mais intuitivo ou mais estruturado? Como você enxerga a voz como ferramenta pra enriquecer as semânticas de cada canção? A minha voz é subordinada à minha alma. Eu canto o que minhas cordas vocais assumem ser o que precisa ser cantado. Eu não estruturo, conceitualizo ou contextualizo as vozes que eu faço. Eu faço o beat e quando escuto se ele diz ter uma voz, e eu canto de acordo com o que a sonoridade pede. Busco nas minha letras o que transcreve aquele timbre e ritmizo de acordo com o compasso. Nada do que eu faço é premeditado. Rola um retroalimentação do improviso, onde um som puxa o outro e o arranjo final se faz sozinho.
Eu tenho uma voz que me permite transmutar ideias. Minhas cordas vocais soam como tá soando a minha alma. Minha alma conduz minha voz sendo conduzida pelo ruído. Eu não programo a minha voz, ela segue o caminho que o tímpano faz através do que ele escuta. Nesse álbum, os sons que saíram da AudioPorto e da QTV são sujos, pesados, debochados. Minha voz acompanhou esse ritmo. Como Ava disse, “respeite o seu processo”, e este sempre foi ouvir o que se tocava para cantar o que se pensava. É como eu tenho feito minha voz carregar a presença; fazendo dela tradutora do que eu escuto. Eu poderia cantar jazz, R’n’B, assim como cantar sertanejo, samba. Mas a minha música é Psico. Minha voz é Psico. Tudo o que eu faço é psicossomático, psicotrópico, psicolinguístico e psicótico. Eu psicoescrevo e psicocanto, quem conduz é a alma, quem traduz é a mente.

A sonoridade do disco foi marcada em duas etapas – a primeira, com as gravações guiadas pelo eletrônico; a segunda, pelo orgânico, correto? O resultado é um trap meio sujo, ruidoso, mas também com sopros; é desconcertante e requebrante. Como foi a costura de sons até chegar nesse resultado? Que dimensões a sua música alcança com esse encontro entre orgânico e eletrônico? Eu chamo de “compor” tudo aquilo que o cérebro pensa. A criatividade cerebral é infinita, transpo-la para um espaço de tempo psicológico é o que eu entendo por “música”. Eu nasci com a urgência de música dentro de mim. Por ter nascido assim, a música é – em mim – orgânica. Então, o primeiro impulso de expurgar ela de mim é sempre orgânico. Da voz às cordas, das batidas aos beats, sempre existiu uma correlação entre o que tá dentro de mim e o que eu posso traduzir numa máquina, sendo ela orgânica ou não. Eu descobri minha voz e logo depois o violão. Muito depois eu conheci as teclas (as máquinas). Sou apaixonada por fazer música, seja ela eletrônica, orgânica, mental ou alienígena. Então, toda ferramenta que me passa pelas mãos, eu uso pra recriar esse ofício, pra música seguir evoluindo dentro de mim. No disco,  inverti a ordem da correlação entre eletrônico e orgânico. Sempre comecei pelo orgânico, e daí então adicionava camadas eletrônicas, para cadenciar a sonoridade. Dessa vez, comecei na AudioPorto com os beats, que era no que eu tinha mais me aprofundado até então. O processo orgânico foi depois, chamando mais gente, abrindo espaço para outras ideias orgânicas, de outras mentes. E por último, pra desgosto de todo produtor que trabalha comigo, eu gravei as letras. Nas vozes, manifestei o que os sintetizadores, as batidas os sopros , pratos e cordas estavam dizendo.


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23/09/2019

Brenda Vidal

Brenda Vidal