Ave Sangria: o voo e a queda dos ícones da psicodelia nordestina

02/09/2014

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Ariel Fagundes

Por: Ariel Fagundes

Fotos: Reprodução

02/09/2014

A música psicodélica criada no calor nordestino é dona de uma riqueza estética sem paralelos e, sobre o sopro escaldante dos seus timbres, escondem-se episódios que ajudaram a definir os rumos da música brasileira mesmo sem alcançarem o estrelato. Exemplo disso é o Ave Sangria, grupo que existiu em Recife por um breve momento dos anos 70 e gravou só um disco. O suficiente para ameaçar a Ditadura Militar ao ponto de que seu álbum foi proibido um mês após seu lançamento.

Foi só a partir da difusão de informações proporcionada pela internet que a obra daqueles cabeludos subversivos se transformou em ícone cult. Hoje à noite, quatro dos seis membros do grupo farão uma apresentação histórica no Teatro de Santa Isabel, em Recife, o mesmo palco onde a banda fez as suas duas últimas apresentações em 28 e 29 de dezembro de 1974. Além disso, o evento marca o lançamento de reedições em vinil de 180g e CD do seu mítico álbum homônimo e também de um disco nunca lançado oficialmente que traz o registro do penúltimo show e se chamará Perfumes Y Baratchos.

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O improvável reconhecimento que o grupo está tendo 40 anos depois de gravarem seu único álbum é surpreendente se formos considerar a rápida trajetória do Ave Sangria. A maior parte dos seus músicos nasceu e viveu a vida toda na Vila dos Comerciários, região pobre de Recife onde a fama e a fortuna não costumam fazer pouso. “Vínhamos das classes operárias e conhecemos muito bem os problemas que o povo passa. Eu ainda moro hoje na mesma casa em que começou o Ave Sangria”, conta Almir de Oliveira, baixista e um dos pilares do grupo.

O embrião do Ave Sangria surgiu em 1968 quando Almir conheceu o cantor Marco Polo, que dividiu com Almir a função de compor as músicas da banda. O baixista tocava covers em conjuntos de bailes, mas ele queria mesmo era trabalhar de forma autoral, o mesmo que Marco, e houve uma identificação rápida entre a dupla. Mas pouco tempo depois de se conhecerem, o cantor saiu de Recife e passou um tempo entre São Paulo e o Rio de Janeiro. “Saí porque a cidade tava uma pasmaceira. Mas quando eu voltei, em 1972, Recife tava pegando fogo! Foi semelhante ao que houve na época do Manguebeat. Na volta, eu tinha uma série de composições já, tava procurando uma banda, aí surgiu o Tamarineira Village”, lembra Marco.

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Tamarineira Village era como o Ave Sangria se chamava quando foi formado. “Tamarineira é o nome de um bairro onde ficava um hospital psiquiátrico (também conhecido como Tamarineira) e nesse mesmo local ficava a Vila dos Comerciários, onde a maioria dos músicos morava. Aí ficou Tamarineira Village, que era também uma referência ao Greenwich Village, [bairro importante para a contracultura] de Nova Iorque”, explica Marco Polo. Durante 1973, o grupo chegou a se apresentar com esse nome em Salvador, Natal e João Pessoa carregando sempre a controvérsia junto com o violão.

“A banda começou a chamar atenção pela proposta rebelde e também pela mistura do rock com a música nordestina. Isso aconteceu porque a gente assimilou tudo que tocava no rádio, ao mesmo tempo em que escutávamos Beatles, ouvíamos também Luiz Gonzaga, que tocou muito aqui na Vila dos Comerciários, inclusive. Não pensamos em fazer música misturando baião com rock, isso foi resultado do processo de liquidificação musical que a gente vivenciou”, afirma Almir. E não era apenas o som que atraía olhares: o grupo ficou famoso por seu visual hippie escrachado que abusava de batons e beijos na boca entre os músicos em cima do palco. Pelo menos, essa é a lenda… mas há controvérsias:

“A gente queria fazer uma música e ter uma postura que deixasse claro que a gente não tava de acordo de forma nenhuma com a repressão, com o comportamento ditatorial. Os batons aconteceram mesmo. Os beijos, não”, jura Almir. Já Marco conta outra história: “O Israel Semente Proibida, nosso baterista, era um cara muito afetivo. E teve uma vez que, não contente em me abraçar, ele me deu uma bitoca. Não foi um beijo… Foi um selinho. Mas a gente percebeu que criava polêmica e ficamos usando isso como um recurso de choque. Isso aconteceu mesmo”.

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De qualquer forma, a estética da banda deixou a sociedade careta de cabelo em pé. “As pessoas passavam de carro gritando: ‘cabeludo veado’! Isso era constante, a gente nem ligava mais”, lembra Marco. “Me ameavam pra cortar o cabelo e tomar banho, diziam que hippie não tomava banho. Tive que andar com um punhal dentro da bolsa pra me defender. Eu não ia meter o punhal em ninguém, era só uma forma de intimidação pra me deixarem em paz, mas a gente incomodou muito. A gente vivia sendo monitorado porque o que a gente dizia nas músicas, a forma de escrever, as roupas, os cabelos eram sinais de que a gente não estava a favor daquele regime. Além das letras, tínhamos que mandar os cartazes pra censura estética pra eles darem o carimbo. Se botasse na rua sem o carimbo, eles arrancavam e iam te buscar”, conta Almir.

E isso tudo foi só o começo do melhor e do pior que a banda viveu. Depois do grande sucesso da androginia teatral dos Secos & Molhados e do rock abrasileirado dos Novos Baianos, as gravadoras perceberam que havia mercado para experimentações como essas no Brasil. Então, no fim de 1973, um olheiro da gravadora Continental chegou a Recife, viu um show do Tamarineira Village e ofereceu a eles um contrato para gravar um disco. Mas com duas condições: que a banda trocasse de nome, pois, segundo a gravadora, Tamarineira Village era complicado demais, e que houvesse uma estrutura mais profissional dentro do grupo. “O Tamarineira Village era o que se chama hoje de ‘coletivo’, era uma família. Mil gentes participavam, até quem não era músico e subia no palco só pra tocar um pandeiro. Era meio na brincadeira, naquele espírito de família hippie. Aí foram tiradas as pessoas que não eram profissionais e ficou só o núcleo de seis músicos”, explica o vocalista que criou o novo nome da banda.

A gravação do primeiro e último disco do Ave Sangria aconteceu no Rio de Janeiro em maio de 1974. “O produtor era um cara muito simpático, mas ele não entendia nada de rock. E a gente não entendia nada de gravação”, lembra Marco. “Quando a gente fez o contrato, pedi pra ter um pequeno naipe de orquestra, mas quando chegamos não tinha orquestra nenhuma. Chegamos no domingo e tínhamos que gravar tudo que desse na segunda. E não podia errar! Isso foi complicado. Fomos na gravadora tentar pedir mais tempo, mas não deu certo. Aí fizemos em uma semana mesmo. O disco ficou bom, mas com certeza podia ter ficado bem melhor”, diz Almir. “A capa não agradou porque a gente tinha um desenho original que era mil vezes melhor do que aquele. Quanto ao resultado da gravação, achamos duas coisas: não refletia o som real da gente. Nosso som era muito mais sujo, mais pesado. Ficou um pouco domado, a voz ficou muito na frente, eu gostava de uma voz mais dentro da massa sonora. Mas isso não chegou a nos deixar tristes ou decepcionados, pra gente era uma vitória fantástica. Gravar um disco era um milagre, se a gente conseguisse um resultado razoável, já ficava feliz”, diz Marco Polo.

Lançado em junho de 1974, Ave Sangria ficou apenas um mês e meio nas lojas – em agosto ele foi proibido pela Ditadura. E o pior é que a primeira faixa do lado B, “Seu Waldir”, fez bastante sucesso, tocava nas rádios e chegou a ficar em 11º lugar nas paradas das mais tocadas, segundo Almir. A boa recepção da faixa foi justamente o que marcou o início do fim da banda, tudo por causa da sua letra que falava sobre um amor homossexual. “Tinha um jornalista na TV que sempre terminava seu programa diário tocando nossa música e dizendo que era preciso uma providência porque ela era um atentado à moral da sociedade pernambucana. Dizem também que a mulher de um general ouviu ela e pediu uma providência ao general, que telefonou pra Polícia Federal, e por isso o disco teria sido recolhido das lojas”, lembra com pesar o vocalista da banda. “Um homem fazendo uma declaração de amor pra outro homem é uma coisa que não existia na música brasileira. Ah, Chico Buarque fez como se ele fosse uma mulher, mas isso é uma coisa – um homem falando com outro homem é outra. E ainda mais com usando termos como ‘senhor’, todo esse protocolo. Causou estranheza”, diz Almir, que estima que o disco tenha vendido cerca de 15 mil cópias antes da proibição.

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É triste e irônico como o sucesso foi a funda que abateu o Ave Sangria. O disco chegou a ser reeditado em dezembro de 1974 sem a música “Seu Waldir”, mas naquele ponto a banda já estava desolada. “Sentimos um clima muito ruim porque percebemos que tínhamos queimado o nosso cartucho. A gente tinha conseguido algo que era dificílimo e o disco foi proibido, foi um prejuízo pra gravadora. Dificilmente outra gravadora iria querer gravar a gente”, comenta Marco Polo. O grupo chegou a fazer mais alguns poucos shows depois disso, os dois últimos foram os do projeto Perfumes Y Baratchos, que juntou 2500 pessoas por dois dias seguidos em um teatro com lotação máxima de 900 pagantes.

Mas quem deu o golpe de misericórdia que o Ave Sangria não foram os militares, ele partiu das mãos de outro grande músico de Pernambuco: Alceu Valença. “Alceu nega, mas eu acho que muito do som dele começou a ser elaborado a partir do momento em que ele viu a gente tocando baião com guitarra”, opina Marco Polo. O fato é que em 1974, Alceu convidou os guitarristas Ivinho e Paulo Rafael, o baterista Israel Semente Proibida e o percussionista Agrício Noya – todos do Ave Sangria – para comporem sua banda de apoio, que já contava na época com grandes músicos como Zé Ramalho, Lula Cortês e Zé da Flauta. Os instrumentistas do Ave Sangria estiveram presentes em três dos melhores discos da carreira de Alceu: Molhado de Suor (1974), Vivo! (1976) e Espelho Cristalino (1977). Inclusive, Paulo Rafael toca com Alceu Valença até hoje e chegou a produzir discos mais recentes dele.

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E foi assim que o Ave Sangria parou de tocar. Almir e Marco são unânimes em dizer que não guardam nenhum ressentimento sobre tudo isso: “Foi uma questão de sobrevivência dos músicos. Alceu tinha dinheiro pra pagar eles e a gente não tinha. E, como o Ave Sangria foi destruído, não havia mais perspectiva”, diz o vocalista. Segundo Almir, era completamente impossível pensar em seguir a banda sem os quatro instrumentistas que saíram: “A gente já tava desestruturado, sem grana. Eu nunca tive um contrabaixo na minha vida. O Israel não tinha bateria. Ivinho tinha guitarra, mas não tinha amplificador. Aí ficou difícil”. “Foi uma cacetada na cabeça, tá entendendo? Achamos que o negócio ia dar muito certo, então foi um corte muito violento. E era muito difícil conseguir músicos da qualidade de um Ivinho ou Israel, que eram músicos excepcionais, muito acima da média”, afirma Marco.

É por essas e por outras que o show de hoje à noite é tão importante. Estarão no mesmo palco Marco Polo, Almir, Paulo Rafael e Ivinho, o que não acontece há quatro décadas. Israel infelizmente já faleceu e Agrício está muito debilitado e não tem condições físicas de tocar. “Tô feliz de ver uma coisa que fiz 40 anos atrás continuar viva e interessando a juventude. A grande maioria do público é gente jovem. Tá se mantendo vivo porque tem consistência”, declara Marco. Já Almir fica assombrado como o único álbum oficial se manteve vivo por muito mais tempo que a banda: “O disco do Ave Sangria tá fazendo carreira solo. O pessoal hoje conhece a banda pelo disco. Não é pela gente”.

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02/09/2014

Editor - Revista NOIZE // NOIZE Record Club // noize.com.br
Ariel Fagundes

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