Com raízes fincadas na cultura indígena brasileira, Supercordas mira as estrelas. Seu disco mais recente, Terceira Terra, une em um coquetel psicodélico o ritmo alegre da música circense, ruídos de microfonias e guitarras rasgadas e letras que refletem o caos atual e o futuro possivelmente catastrófico que se avizinha.
A faixa-título foi inspirada na mitologia guarani, que conta que nós vivemos no segundo mundo que já existiu (e que, um dia, dará lugar a um terceiro). Quem explica é o vocalista e guitarrista Pedro Bonifrate e o guitarrista Filipe Giraknob na entrevista que você lê abaixo.
A banda vive hoje dividida entre o Rio, São Paulo e Paraty, como vocês conseguem ensaiar? A distância atrapalha muito vocês?
Bonifrate: Tradicionalmente, a gente ensaia pouco. Até porque faz tempo que não moramos todos na mesma cidade. Se conseguimos tocar por umas boas horas uns dois dias antes dos shows, costuma ser suficiente. Mas volta e meia armamos uns esquemas mais imersos. Agora em agosto, por exemplo, como tínhamos que montar um novo show, com um novo baterista, ficamos uma semana ensaiando aqui em Paraty, num estúdio que um amigo está montando num lugar bem sossegado, com cara de sítio, que deixou a gente bem relaxado pra pensar nos arranjos e nos timbres. Depois é só manter o pique com doses mais módicas.
Terceira Terra é um disco que já impacta pela capa. Como surgiu aquela imagem?
Bonifrate: Foi a interpretação do Wilson Júnior, que fez todas as nossas capas, livremente inspirada no áudio que passamos de antemão, e num texto que eu escrevi sobre o álbum pra ele, com uma ou outra referência estética, mas tudo bem vago em termos visuais. Costumamos fazer assim com ele, e sempre surpreende positivamente. É um baita artista.
O álbum traz alguns convidados especiais, como foi trabalhar com eles e que importância eles tiveram no resultado final do disco?
Giraknob: Todas as pessoas que participaram do álbum de alguma forma são nossos amigos. É bom produzir com seus amigos, mas você não os chama por isso, chama porque sabe que eles podem trazer algo que o disco precisa. A importância é esta: trazer algum elemento que falta à canção.
Bonifrate: Cabe falar no Gui Jesus, que gravou e coproduziu o disco com a gente, e que esteve ali em todo o processo e foi o grande responsável pela sonoridade foda que o disco tem. O Mancha veio com as percussões dele e fez alguns takes sozinho e outros com o Valentino e eu acompanhando, ao vivo mesmo, o que foi bem legal. O Cacá (Rumbo Reverso, Fire Friend) fez uma gaita processada, que é um lance bem característico dele, e deu num belo detalhe climático pra faixa título. O Benke (Boogarins) passou pelo Canoa depois das nossas gravações, quando eu mesmo não estava presente, mas posso dizer que ele deu uma boa salvada nas guitarras das duas faixas em que tocou. Acho que ele tem uma sensibilidade timbrística muito afim à nossa, então foi como se fizesse parte da banda mesmo. No nosso último show, no Festival Fora da Casinha, ele tocou guitarra com a gente praticamente durante toda a apresentação, foi bem foda. Apesar de não ter tocado no disco, o também Boogarins Ynaiã está muito presente no desenrolar do álbum, já que tem tocado bateria com a gente.
Só pra avisar que agora teremos camisetas pra vender. Que tal nosso modelo?
Posted by Supercordas on Sexta, 16 de outubro de 2015
Primeira, segunda e terceira Terra… Como vocês chegaram a esse conceito? A ecologia é uma preocupação da Supercordas?
Bonifrate: Neste álbum, diferente dos outros, a gente não tinha um título ou um tema guiando as canções. O conceito veio da própria relação entre as faixas, e daí acabou sendo natural que a faixa-título fosse a última, “Terceira Terra”, que é uma canção que traz um arcabouço referencial da mitologia Guarani. Essas três Terras são criações de Nhanderu. A primeira era a dos deuses, a segunda é essa lama na qual atualmente chafurdamos, e a terceira é a terra sem males, aquele velho horizonte utópico que algumas pessoas, a exemplo dos Guarani, insistem em perseguir.
Giraknob: Lembro de responder a esta pergunta quando lançamos o Seres Verdes ao Redor. A ecologia deve ser uma preocupação de todas as pessoas e há bastante tempo. E isso se torna cada vez mais importante à medida que a humanidade intervém cada vez mais em todos os ecossistemas. Isto é: não se separar mais uma consciência e uma pratica ecológica (ou seja, uma consciência de que vivemos em um ecossistema integrado) das nossas ações cotidianas. Isso obviamente envolve a arte.
Bonifrate: Quando se fala em ecologia, parece que a gente entrou numa máquina do tempo e voltou ao início dos anos 90. Acho que esse tipo de questão deixou de ser preocupação de uma área específica do conhecimento, e passou a ser de todos os seres pensantes. Afinal, você pode ficar horas por dia sem água em casa em São Paulo, então a gravidade da situação atinge o cotidiano de todo mundo, de gente de (quase) todas as classes sociais, inclusive. É um problema comum a todos nós, e as pessoas que estão no poder não se sentem concernidas, porque não governam pela lógica da sobrevivência da espécie ou da qualidade de vida das pessoas ou da preservação das reservas naturais, governam pela lógica do lucro de quem as financia. Colar um selo verde em cima disso e se dizer “sustentável” não faz diferença nenhuma.
Tem um lado um tanto quanto apocalíptico esse disco. Vocês acreditam que o fim do mundo está próximo? O que a humanidade poderia fazer para impedir isso?
Bonifrate: O fim do mundo sempre esteve próximo pra humanidade. A forma como a sociedade o enxerga e o vivencia é que se transforma. Isso diz muito sobre como agimos no mundo, a partir da ideia de como ele pode vir a acabar. Eu escrevi uma dissertação de mestrado sobre uma profecia de um segundo dilúvio universal a partir de uma conjunção astral que rolou em 1524. Na época, os astrólogos causaram uma grande euforia coletiva ao prever isso, tratados e mais tratados foram escritos sobre o tema. No fim das contas não caiu uma garoa sequer, mas com tanta tinta gasta com ideias conflitantes você consegue pensar um bocado sobre aspectos relevantes daquela sociedade.
Relacionando isso à pergunta anterior e ao conceito do disco, teve uma coisa que o Eduardo Viveiros de Castro falou numa dessas FLIPs aqui em Paraty que me marcou bastante. Ele disse que nós temos muito a aprender, não só com os Guarani, mas com todas as etnias indígenas, porque atualmente o nosso mundo está acabando em termos de reservas naturais e culturais, mas o mundo desses povos já acabou ou está em processo de acabar há uns cinco séculos. O que muitos deles vivem hoje já é uma espécie de ficção científica distópica em que o céu já caiu sobre as suas cabeças, e continua caindo a cada dia que passa, com cada índio que morre assassinado por capangas do agronegócio, cada rio que seca pra abastecer plantações de soja transgênica e atrocidades desse tipo.
Giraknob: A ideia de que o mundo acaba de uma forma literal e física é quase uma obsessão humana. O que pra mim pode acabar ou entrar em colapso é a humanidade. O planeta vai ficar na dele e quem sabe até “expelir” a gente. Mas a preocupação que devemos ter é porque tornamos tantos lugares do planeta um lixo em nome dos nossos prazeres tolos. A praga não é a humanidade, é a cultura de consumo vigente!